Cid Benjamin*
“Você
precisa escrever sobre futebol. Está um lixo. Estupro, corrupção
de jogadores, racismo sistêmico, mortes nos estádios. Se continuar
assim, honestamente, é melhor suspender tudo”. Esta frase acima é
de uma mensagem no WhatsApp que me foi enviada por um grande amigo, o
repórter Chico Otávio.
Ele
tem razão. Hoje, em todos os continentes da Terra, o futebol é
muito mais do que um esporte. Atividade que apaixona muitos milhões
(ou bilhões) de pessoas, movimenta uma quantidade gigantesca de
dinheiro. Mas em torno a ele se acumulam problemas graves.
Há
50 anos, no início dos anos 70, antes mesmo de o mundo inteiro
acompanhar as partidas dos principais times do planeta (mas já
depois da Copa do México, a primeira a ser transmitida ao vivo em
grande escala pela TV), estava eu no interior da Argélia, em pleno
deserto, e tinha dificuldades para me comunicar minimamente com os
moradores, que só falavam árabe. Lá pelas tantas, me ocorreu
lembrar Pelé e um problema foi resolvido. Fui logo identificado como
sendo brasileiro.
Já
na citada Copa de 70, o uso da seleção de Pelé pela ditadura
militar foi intenso. A propaganda oficial desenvolveu enorme esforço
para identificar o time brasileiro com o regime. E, em algum nível,
conseguiu, tal a força do futebol. Hoje, com a globalização e o
crescimento das telecomunicações o impacto dele na vida das pessoas
é muito maior.
E é maior para o bem e para o mal.
Por
isso, a advertência do Chico Otávio é mais do que oportuna. É
preciso tratarmos mais – e com mais seriedade - do futebol.
O
dinheiro que rola é gigantesco. Os clubes movimentam milhões,
dirigentes e empresários ganham fortunas de forma não muito
transparente e os salários pagos são astronômicos.
Nesse
quadro, é natural que esse mundo mexa com a cabeça de jovens de
origem pobre que são alçados a celebridades milionárias. Claro que
os que fazem sucesso são uma minoria, mas acabam representativos de
um caminho de ascensão social com que sonha a maioria.
Figuras
lamentáveis como Neymar tornam-se paradigma com seu sucesso, mas
também servem de modelo com seu individualismo e egocentrismo. Estão
dia e noite cercados de amigos (verdadeiros ou falsos) que vivem às
suas custas e de namoradas (apelidadas, de forma preconceituosa, de
“marias chuteiras”). Afinal, já disse o genial Nelson Rodrigues
que “o dinheiro compra tudo, até amor sincero”.
Essa
situação e esse estilo de vida sobem à cabeça de jogadores que
passam a se achar donos do mundo e estão na raiz de casos de
violência contra mulheres e até estupros. Afinal, naquele universo
machista, como admitir que uma moça não se disponha a transar com
eles? Fora os menos conhecidos, estão aí na mídia os casos de
Cuca, Robinho e Daniel Alves, que só agora têm recebido o merecido
repúdio da sociedade.
A
Liga da Grã-Gretanha, hoje a mais forte e prestigiada do mundo, há
alguns anos estava à beira do abismo, dentro e fora do campo. Foi
obrigada a tomar medidas drásticas para reconduzir o futebol e tudo
que o cerca a um patamar mínimo de civilidade.
A
bola da vez agora parece ser a Espanha, com sucessivos casos de
racismo, tratados com benevolência pela federação e pelos clubes.
Seu presidente, Javier Tebas, é apoiador do Vox, partido de
extrema-direita, e admirador do falecido ditador fascista Francisco
Franco, informou ontem o mestre Juca Kfouri em sua coluna.
E,
aqui, é preciso separar duas coisas. Uma coisa é a manifestação
isolada de um idiota. Nesse caso, o racista deve ser identificado e
punido. Mas é diferente quando um estádio em peso grita “macaco”
para humilhar e desestabilizar um jogador adversário, como foi feito
semana passada com o jovem Vinícius Júnior. Aí, é preciso punir o
time da casa, interromper a partida, considerando perdedor o time dos
racistas, e interditar seu estádio por determinado tempo.
Até
porque, nesses casos, não estamos diante apenas de um desvio grave,
mas individual. É própria do nazifascismo a imbecilização
agressiva de multidões. Isso é muito perigoso e o resultado é
conhecido de todos.
Outro
risco são as apostas. Em torno a elas floresce a corrupção de
clubes, jogadores e árbitros. As experiências – inclusive
internacionais – estão aí para quem quiser ver. E elas estão
crescendo enormemente no Brasil. As empresas de apostas hoje já
patrocinam os principais times e, até, competições nacionais.
Todos
reconhecem que as apostas são um foco de corrupção, mesmo seus
defensores. Alguns afirmam que não há como coibi-las porque – tal
como as “big techs” – estão sediadas fora do País. O cidadão
aposta num jogo do campeonato brasileiro, mas as empresas estão
sediadas não-sei-onde.
De
qualquer forma, assim como no caso das “big techs”, me recuso a
admitir que seja um problema insolúvel. E, assim como no caso das
“big techs”, é preciso enfrentá-lo.
Apelo ao amigo Wadih
Damous, que no Ministério da Justiça é responsável pela área da
defesa do consumidor, e é um competente advogado, para que busque
uma solução. E pergunto: não seria possível coibir a propaganda
desses sites de apostas no Brasil? Em caso positivo, eles se
esvaziariam.
Buscar
uma solução para esse problema e resolvê-lo o quando antes é
muito importante, por tudo o que o futebol representa na sociedade.
Afinal, já disse Eduardo Galeano, escritor uruguaio, autor do
clássico “Veias abertas da América Latina”: de todas as coisas
desimportantes, o futebol é a mais importante.
Estou de acordo
com ele.
PS
- Depois de redigido este artigo, o amigo Juca Kfouri me alertou que
a frase atribuída aqui a Eduardo Galeano teria sido dita por Artigo
Sachi, ex-treinador da seleção italiana. Bom, mesmo que Juca seja
corintiano, e não flamenguista, eu o reconheço como uma autoridade
maior em matéria de futebol. Embora eu me lembre de ter lido nas
redes Galeano dizendo a frase, Juca deve ter razão. Fica aqui,
então, essa ressalva.
Sacchi deve mesmo ter sido seu primeiro
autor.
*Jornalista
Ilustração: Cristóvão Villela