quarta-feira, 16 de junho de 2021

Brasil é mesmo “o país das cantoras”?

 

Ilustração Mani Ceiba


Chris Fuscaldo e Leandro Souto Maior 


Muito se diz que o Brasil é o país das cantoras, mas quase nunca se pergunta se isso de fato é uma verdade, e raramente se analisa o contexto no qual as mulheres se inserem no mercado da música brasileira. As cantoras que se destacaram ao longo da história surgiram com tanta força que acabaram chamando muito a atenção, a começar pelas mulheres que desfilavam suas vozes exuberantes nas rádio, as famosas “cantoras do rádio”, passando por Elis Regina, Maria Bethânia e, tempos depois, Ivete Sangalo e tantas outras intérpretes que fizeram a crítica nos convencer de que vivíamos no “país das cantoras”.  

Fato é que sentimos um imenso carinho pelas vozes femininas que embalaram nossas vidas, mas a verdade nua e crua é que o Brasil não é o país das cantoras. No nosso país, as mulheres são menos de 8% dos arrecadadores de direitos autorais, segundo dados de 2020 do ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição). Esses dados dão conta de todo tipo de profissional da música, mas afunilando para cantoras e compositoras, a porcentagem muda muito pouco e segue abaixo dos 8%. Isso nos mostra que as mulheres se destacam como intérpretes, mas mesmo assim ainda não ocupam os mesmos espaços de protagonismo que os artistas do sexo masculino. 

A maior parte das cantoras foi historicamente tratada como “musa”, mulheres que brilham na frente do palco. Muitas bandas querem ter uma mulher à frente porque mulheres chamam a atenção pela beleza, pela atitude, pelo figurino... É isso que muitos músicos esperam de uma mulher, e não exatamente uma voz ativa. Por que as mulheres têm que usar a própria imagem, mas são tão impedidas de produzir, compor, tocar? As mulheres sofreram para fazer valer suas vontades, isso sem falar que muitas ainda eram apagadas por seus companheiros, ouviam comentários ofensivos de familiares e eram tratadas com preconceito em reportagens tendenciosas. 

Chiquinha Gonzaga

A primeira delas foi Chiquinha Gonzaga, que no início do século XIX precisou abrir mão da família para conseguir impor seu talento, chegando a ser a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. Compositora e pianista popular quando essas áreas eram reservadas aos homens, além de ter participado do movimento pela libertação dos escravos através de sua música, vendendo suas partituras para angariar fundos destinados à causa, Chiquinha foi a responsável pela criação da primeira associação de arrecadação de direitos autorais no Brasil. A pianista não cantava – só tocava – mas até hoje mulheres e homens devem agradecer a ela por terem lucro pela execução de suas composições. Tudo isso, ela fez lutando, claro. 

Marlene, uma das mais famosas cantoras da história da música brasileira, cantava na rádio escondida. Quando a mãe descobriu, levou uma surra: “Você é a vergonha da família. Artista, você. Isso é até pecado”, dizia a mãe, enquanto batia nela. Marlene tinha 19 anos e vivia em uma época na qual se acreditava que mulher que se dedicasse a este tipo de atividade não passava de uma prostituta. Ela acabou fugindo de casa. Na história do samba, também tentaram esconder as mulheres: Dona Ivone Lara, primeira mulher compositora de samba-enredo cantado na avenida, teve suas primeiras composições creditadas como sendo de seu primo, mestre Fuleiro. 

No rock, território predominantemente masculino, Rita Lee foi expulsa dos Mutantes por Arnaldo Baptista, baixista e seu marido na época. “Machismo? Sim, havia muito. E ainda existe, ainda que mais velado”, diz a pioneira guitarrista Lucinha Turnbull, que sabe do que está falando: em um universo repleto de rapazes, ela desbravou e fez história como o grande nome feminino da guitarra brasileira.

Maysa

A cantora Maysa foi outra que teve que escolher entre vida pessoal e profissional quando começou, na década de 1950. A cantora Joyce, em 1967, apresentou a autoral Me disseram em um festival da canção e foi vaiada por sua letra feminista. Era uma época em que as mulheres ainda não tinham voz como compositoras. Como instrumentistas, a coisa piorava: a própria Joyce conta que a vida inteira ouve as pessoas falarem que ela “toca que nem homem”. 

Anastácia, que foi namorada e parceira de Dominguinhos, antes via seu primeiro companheiro, que era também seu produtor, rasgar suas composições e jogá-las no lixo. A forrozeira era tinhosa e remendava os pedaços de papel. Já para Roberta Miranda, muitas vezes foi oferecido o registro de sua composição por alguma dupla famosa em troca de ela incluir o crédito de mais alguém na canção. Ela nunca aceitou e isso tornou sua jornada mais difícil no mundo sertanejo. 

A história dessas mulheres que se destacaram mostra uma série de dificuldades que elas passaram para conseguir viver de música (e terem que aceitar que o lugar canônico não era para elas). A revista Rolling Stone Brasil publicou em 2017 uma lista dos 100 maiores artistas da música brasileira, apenas 16 eram mulheres. O meio musical é machista e nunca foi um espaço livre para as mulheres, reflexo da nossa sociedade patriarcal. E o preconceito se alastra: até as jornalistas mulheres têm seu profissionalismo contestado, eventualmente são tratadas como groupies e assediadas sexualmente ou moralmente por integrantes de bandas, produtores e até seus próprios colegas de trabalho. 

Oito por cento ainda é muito pouco. O que podemos fazer para mudar essa realidade? Primeiro, parar para pensar na relevância das mulheres e, simplesmente, respeitá-las e considerá-las para novas oportunidades de trabalho. O resto, vamos debatendo depois. Esse é um assunto que não acaba aqui.

Ilustração Cristovão Villela

Sem comentários:

Enviar um comentário