sexta-feira, 17 de junho de 2022

Os Generais e o SUS

Por Sylvio da Costa Jr.


Foi comemorado no dia 17 de maio o aniversário de 34 anos do SUS, pelo fato de nesse dia ter sido instituída na Constituição de 1988 os alicerces do então novo sistema de saúde, entre seus artigos nº196 a nº200.

O Sistema Único de Saúde é motivo de orgulho do povo brasileiro e, como chamamos de forma recorrente, um patrimônio do pais. Ele muda a lógica e a prática da oferta de saúde, uma vez que abandonamos um sistema federalizado na gestão e na assistência de saúde e estabelecemos um sistema municipalizado de cuidados, no qual saímos de uma oferta de serviços de saúde apenas para os brasileiros no mercado formal de trabalho e passamos a oferecer saúde a todos brasileiros e estrangeiros, trabalhadores formais ou não.

Esse modelo de saúde não advém de um parto sem dor ou de um nascimento ao acaso, como um raio em céu azul. Poeticamente, podemos afirmar que ao morrer o velho nasceu o novo; ou que ao cabo de uma ditadura militar e ao início da Nova República, o SUS foi implantado. Essas afirmações estão corretas, mas é importante contextualizá-las cronológica e historicamente, para que não acreditemos que o SUS nasceu de uma eventualidade — ou que uma cegonha o trouxe do além — a partir de meia dúzia de pessoas que se reuniu e teve a ideia genial de criar um sistema de saúde para todos.

Como estabelecido na Constituição Federal de 1988, em seu Artigo nº 196, “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas(...)”.  Logo, quando abordamos a temática da saúde pública, é impossível olharmos de maneira analítica sem entendermos a importância da variável econômica como produtora de saúde, ou de doença, a depender de suas consequências sociais. De tal modo, a oferta de cuidados em saúde também se organiza a partir do padrão epidemiológico da sociedade ou do território. Políticas econômicas que geram pobreza e miséria social para o conjunto da população geram também padrões de determinadas patologias e doenças. Nesse sentido, a saúde e a economia são campos ideológicos de disputas e conflitos que apresentam múltiplos vasos comunicantes. Em um ambiente economicamente degradado, ou seja, em uma economia doente, a população também adoecerá. 

Indo ao ponto do presente artigo, uma vez dado o golpe militar em 1964, e radicalizado em 1968 com o AI-5, o pais viveu economicamente uma sucessão de crises permanentes, com conseqüências no campo da saúde e no padrão de adoecimento da população. O golpe de 1964 interrompeu o debate que estava vivo na sociedade brasileira sobre as chamadas reformas de base, como a reforma agrária, a reforma tributária, a reforma urbana e a reforma sanitária. A quebra do regime democrático não só adiou a resposta para enfrentar os problemas e conflitos vividos pelo país naquele momento, mas prolongou e dificultou, por conseguinte, uma solução robusta para situações complexas. Assim, a ditadura foi um governo de crises sobrepostas, uma seguida da outra. O próprio período de crescimento econômico que o pais experimentou entre os anos de 1968 e 1973, conhecido como ‘milagre econômico’, se deu baseado em políticas econômicas de profundo arrocho salarial (reduzindo o salário mínimo em 1/3 de seu poder de compra) e ataque aos sindicatos — tudo com a justificativa de cortar a alta inflacionária. Como também recentemente, em 2016, o governo Temer, fruto também de um golpe, aprovou a ‘Reforma Trabalhista’, um ataque duríssimo ao sindicalismo nacional, sob a alegação de flexibilizar a contratação de mão de obra e gerar crescimento econômico. O resultado concreto disso foi que chegamos a 2022 sem direitos e sem crescimento econômico, assim como os anos do ‘milagre econômico’ foi para milhões de brasileiros um infortúnio.

Com a contenção à fórceps do poder de compra e grave crise social, a inflação no fim dos anos 60 caiu na marra. Foi realizado em seguida um processo de industrialização e investimento em infraestrutura do país, entre outras coisas, baseado majoritariamente no endividamento externo, como se não houvesse amanhã. Essa política de industrialização a jato e sem planejamento promoveu um fenômeno social nunca revertido, chamado ‘êxodo rural’, por meio do qual milhões de brasileiros das regiões mais pobres, notadamente o Norte e o Nordeste, saíram em caravanas, veículos precários de transporte chamados ‘paus de araras’, fugindo da miséria e do abandono para tentar uma vida melhor nas grandes cidades. Como o sistema de saúde da época era de usufruto apenas para os trabalhadores de carteira assinada, esse contingente gigantesco de pessoas estava entregue á própria sorte, no tocante a saúde, e sem acesso a consultas, exames e cirurgias. A assistência de serviços de saúde para o grosso da população nesse período se dava por entidades filantrópicas ou religiosas, nas quais os recursos eram escassos e a oferta de serviços se mostrava precária diante da massa gigantescas de brasileiros desassistidos.  Para se ter idéia, a mortalidade infantil era absurda. Morriam crianças pobres como moscas Brasil à fora. Mortes por diarréia infecciosa, subnutrição e fome faziam o país ser comparado internacionalmente a nações africanas em guerra.

Mesmo os trabalhadores no mercado formal de trabalho, aqueles que tinham acesso ao Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (Inamps) nunca tiveram atendimento gratuito. O antigo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e, depois, Inamps atuavam essencialmente por meio de convênios com a rede privada, ao invés de investirem na ampliação e qualidade da rede própria de serviços. O atendimento era majoritariamente conveniado com a rede privada, criando uma enxurrada de dinheiro público para ampliação da rede privada de serviços médicos.  O modelo de saúde gerido pelos militares não era apenas desigual, era perverso. Mesmo com um pequeno contingente de trabalhadores tendo direito ao usufruto do acesso à saúde, muitas vezes o cidadão não podia fazê-lo porque esse acesso era pago em clinicas e hospitais conveniados. 

O melhor retrato do “milagre econômico” foi a frase atribuída a Delfim Netto, ministro da Economia da época, dizendo que “o bolo precisa primeiro crescer para depois ser repartido”. Era como se ele dissesse: o crescimento econômico nesse momento não é para todos. Jamais foi. Durante o milagre econômico, o bolo realmente cresceu, mas nunca foi repartido de forma equilibrada e equânime. O próprio presidente da época, o general Emilio Garratazu Médici, afirmou que "a economia vai bem, mas o povo vai mal”, dando bem a dimensão do buraco em que estávamos metidos. Cabia perguntar: a economia vai bem para quem, cara pálida? Um famoso economista liberal, Edmar Bacha, apelidou o Brasil de então de “Belindia”, uma nação fictícia, formada pela união da Bélgica com a Índia, onde habitavam juntas, em um equilíbrio catastrófico, um pequeno país rico, branco, que consome bens e produtos importados (a Bélgica) e uma imensa nação pobre e desigual (a Índia). Estava claro que o milagre brasileiro era um gigante com pés de barro. O milagre econômico agiu como um cirurgião inapto, que não sabendo o que fazer diante de um paciente gravemente enfermo, o anestesia, mas não o opera, deixando-o lá, em um nirvana passageiro, enquanto a doença evolui.

Com a primeira crise do petróleo, em 1973, quando os países produtores árabes se negaram a vender óleo para países aliados de Israel, o sonho pueril do milagre brasileiro acabou de forma trágica, uma vez que toda fonte de energia no Brasil era importada e baseada no petróleo. E, no segundo choque em 1979, com a revolução do Irã, a ditadura ficou de joelhos. Decorrente da falta de organização e planejamento da ditadura militar para administração do pais a crise econômica explodiu, pois naquele momento tínhamos um pais com os mesmos problemas do passado e alguns adicionais, como alto endividamento externo e a hiper inflação. O fim da ditadura não se deu por fruto da generosidade dos generais, mas por conta do caos social e econômico quase ingovernável. O pais estava no fim dos anos de 1970 economicamente caindo aos pedaços.

O último general que governou o pais entregou ao governo Sarney, em 1985, uma inflação de 215% ao ano e uma crise intitulada de “colapso da dívida externa”. De tanto endividar o pais em fundos, bancos e organismo internacionais, como por exemplo o FMI, o Brasil não conseguia honrar compromissos externos básicos de pagamento de empréstimos, todos em dólar. A ditadura militar leva o país para um pântano de hiperinflação, associado a um crescimento econômico pífio, com o desemprego nas alturas, e um endividamento externo que funcionava como uma mão estrangulando e asfixiando o pescoço do Brasil. A ditadura militar entrega a nação para os governos civis subseqüentes nesse cenário, com um boom de desigualdade e altíssima concentração de renda, uma verdadeira selvageria social. A herança da ditadura no campo da economia levou o governo civil subseqüente à moratória da divida externa. Em 1987, diante do obvio, o país quebrou!

Vale lembrar para os mais novos, aqueles que não viveram nem estudaram esse período, que a ditadura militar não produziu apenas repressão, mortes e torturas, como se isso já não fosse muito. Tudo que os governos civis tentaram fazer a partir de 1985 foi consertar o estrago militar promovido no país do ponto de vista econômico e social. 

O SUS nasce, a rigor, como uma resposta corajosa diante da gravíssima crise social que o Brasil vivia.

Essa crise monumental obviamente carrega junto de si o sistema de cuidados em saúde e de aposentadorias. O Inamps vai à lona.  Impossível falar da origem do SUS sem contextualizar o momento social, econômico e político da época. O SUS não nasce de parto normal, muito menos sem dor, mas em um país em convulsão. Por isso, devemos nos orgulhar não apenas do sistema de saúde que temos hoje, por si só, mas também de todos os brasileiros que, tijolo por tijolo, ajudaram e ajudam a construir o mais ambicioso sistema publico de saúde do mundo. Viva o SUS, viva o povo brasileiro e viva a democracia. Ditadura nunca mais!


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