terça-feira, 23 de maio de 2023

Concordando com Galeano

Cid Benjamin*





“Você precisa escrever sobre futebol. Está um lixo. Estupro, corrupção de jogadores, racismo sistêmico, mortes nos estádios. Se continuar assim, honestamente, é melhor suspender tudo”. Esta frase acima é de uma mensagem no WhatsApp que me foi enviada por um grande amigo, o repórter Chico Otávio.


Ele tem razão. Hoje, em todos os continentes da Terra, o futebol é muito mais do que um esporte. Atividade que apaixona muitos milhões (ou bilhões) de pessoas, movimenta uma quantidade gigantesca de dinheiro. Mas em torno a ele se acumulam problemas graves.


Há 50 anos, no início dos anos 70, antes mesmo de o mundo inteiro acompanhar as partidas dos principais times do planeta (mas já depois da Copa do México, a primeira a ser transmitida ao vivo em grande escala pela TV), estava eu no interior da Argélia, em pleno deserto, e tinha dificuldades para me comunicar minimamente com os moradores, que só falavam árabe. Lá pelas tantas, me ocorreu lembrar Pelé e um problema foi resolvido. Fui logo identificado como sendo brasileiro.


Já na citada Copa de 70, o uso da seleção de Pelé pela ditadura militar foi intenso. A propaganda oficial desenvolveu enorme esforço para identificar o time brasileiro com o regime. E, em algum nível, conseguiu, tal a força do futebol. Hoje, com a globalização e o crescimento das telecomunicações o impacto dele na vida das pessoas é muito maior.
E é maior para o bem e para o mal.
Por isso, a advertência do Chico Otávio é mais do que oportuna. É preciso tratarmos mais – e com mais seriedade - do futebol.


O dinheiro que rola é gigantesco. Os clubes movimentam milhões, dirigentes e empresários ganham fortunas de forma não muito transparente e os salários pagos são astronômicos.
Nesse quadro, é natural que esse mundo mexa com a cabeça de jovens de origem pobre que são alçados a celebridades milionárias. Claro que os que fazem sucesso são uma minoria, mas acabam representativos de um caminho de ascensão social com que sonha a maioria.


Figuras lamentáveis como Neymar tornam-se paradigma com seu sucesso, mas também servem de modelo com seu individualismo e egocentrismo. Estão dia e noite cercados de amigos (verdadeiros ou falsos) que vivem às suas custas e de namoradas (apelidadas, de forma preconceituosa, de “marias chuteiras”). Afinal, já disse o genial Nelson Rodrigues que “o dinheiro compra tudo, até amor sincero”.


Essa situação e esse estilo de vida sobem à cabeça de jogadores que passam a se achar donos do mundo e estão na raiz de casos de violência contra mulheres e até estupros. Afinal, naquele universo machista, como admitir que uma moça não se disponha a transar com eles? Fora os menos conhecidos, estão aí na mídia os casos de Cuca, Robinho e Daniel Alves, que só agora têm recebido o merecido repúdio da sociedade.


A Liga da Grã-Gretanha, hoje a mais forte e prestigiada do mundo, há alguns anos estava à beira do abismo, dentro e fora do campo. Foi obrigada a tomar medidas drásticas para reconduzir o futebol e tudo que o cerca a um patamar mínimo de civilidade.


A bola da vez agora parece ser a Espanha, com sucessivos casos de racismo, tratados com benevolência pela federação e pelos clubes. Seu presidente, Javier Tebas, é apoiador do Vox, partido de extrema-direita, e admirador do falecido ditador fascista Francisco Franco, informou ontem o mestre Juca Kfouri em sua coluna.


E, aqui, é preciso separar duas coisas. Uma coisa é a manifestação isolada de um idiota. Nesse caso, o racista deve ser identificado e punido. Mas é diferente quando um estádio em peso grita “macaco” para humilhar e desestabilizar um jogador adversário, como foi feito semana passada com o jovem Vinícius Júnior. Aí, é preciso punir o time da casa, interromper a partida, considerando perdedor o time dos racistas, e interditar seu estádio por determinado tempo.


Até porque, nesses casos, não estamos diante apenas de um desvio grave, mas individual. É própria do nazifascismo a imbecilização agressiva de multidões. Isso é muito perigoso e o resultado é conhecido de todos.


Outro risco são as apostas. Em torno a elas floresce a corrupção de clubes, jogadores e árbitros. As experiências – inclusive internacionais – estão aí para quem quiser ver. E elas estão crescendo enormemente no Brasil. As empresas de apostas hoje já patrocinam os principais times e, até, competições nacionais.


Todos reconhecem que as apostas são um foco de corrupção, mesmo seus defensores. Alguns afirmam que não há como coibi-las porque – tal como as “big techs” – estão sediadas fora do País. O cidadão aposta num jogo do campeonato brasileiro, mas as empresas estão sediadas não-sei-onde.


De qualquer forma, assim como no caso das “big techs”, me recuso a admitir que seja um problema insolúvel. E, assim como no caso das “big techs”, é preciso enfrentá-lo.
Apelo ao amigo Wadih Damous, que no Ministério da Justiça é responsável pela área da defesa do consumidor, e é um competente advogado, para que busque uma solução. E pergunto: não seria possível coibir a propaganda desses sites de apostas no Brasil? Em caso positivo, eles se esvaziariam.


Buscar uma solução para esse problema e resolvê-lo o quando antes é muito importante, por tudo o que o futebol representa na sociedade.
Afinal, já disse Eduardo Galeano, escritor uruguaio, autor do clássico “Veias abertas da América Latina”: de todas as coisas desimportantes, o futebol é a mais importante.
Estou de acordo com ele.

PS - Depois de redigido este artigo, o amigo Juca Kfouri me alertou que a frase atribuída aqui a Eduardo Galeano teria sido dita por Artigo Sachi, ex-treinador da seleção italiana. Bom, mesmo que Juca seja corintiano, e não flamenguista, eu o reconheço como uma autoridade maior em matéria de futebol. Embora eu me lembre de ter lido nas redes Galeano dizendo a frase, Juca deve ter razão. Fica aqui, então, essa ressalva.
Sacchi deve mesmo ter sido seu primeiro autor.



*Jornalista


Ilustração: Cristóvão Villela

domingo, 21 de maio de 2023

Sobre a memória, Stuart e o bolsonarismo no Flamengo

 

Cid Benjamin*



Na última segunda-feira, dia 8 de maio, o Ministério Público Federal pediu, oficialmente, à diretoria do Flamengo, informações sobre o paradeiro de uma placa em homenagem a Stuart Angel Jones, ex-remador do clube e militante político contra a ditadura, morto na tortura na base aérea do Galeão, no Rio de Janeiro.

Os restos mortais de Stuart nunca foram encontrados. Em setembro de 2019, seu assassinato foi reconhecido num atestado de óbito que caracteriza a morte como “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistêmica e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”.

Agora, o MP deu dez dias para o clube informar o que foi feito da placa. Desde 2010, ela estava num memorial na sede de remo do Flamengo, na Lagoa, como parte de um projeto intitulado Lugares da Memória. Foi retirada de lá em 2016, quando foram realizadas obras no local.

Além disso, os procuradores regionais dos Direitos do Cidadão Jaime Mitropoulos, Júlio José Araújo Junior e Aline Caixeta lembraram ao presidente do Flamengo que constitui obrigação do Estado e direito da sociedade o resgate e a preservação da história de mortos e desaparecidos durante a ditadura militar, incluindo a conservação e a restauração de monumentos alusivos `repressão política.

Segundo afirmaram os procuradores, esta é “uma forma de garantir às gerações futuras o direito de conhecer as violações sistemáticas dos Direitos Humanos praticados pelo Estado, de modo a prevenir, inibir ou, pelo menos, mitigar as chances de que voltemos a repetir no futuro as violações já cometidas no passado”.

Lembrou também o MP que cabe aos agentes públicos e particulares responsáveis pelos bens relacionados à preservação da memória prestarem informações que possam auxiliar na sua localização.

O Ministério dos Direitos Humanos se somou a esse esforço e tem um projeto de reinauguração da placa. Por meio de Nilmário Miranda, assessor especial de Memória e Verdade, também intimou o clube para que informe seu paradeiro. Há suspeitas de que a diretoria do Flamengo, controlada por bolsonaristas, a tenha posto no lixo.

Em reportagem publicada no “Globo” (5/5/2023) e assinada pelo jornalista Chico Otávio, um dos mais importantes repórteres do País, há a informação de que, embora procurada pelo jornal, a diretoria do clube preferiu não se manifestar.

Stuart foi meu companheiro de militância política no movimento estudantil em 1968 e, posteriormente, na resistência armada à ditadura, como integrante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro. Estivemos juntos na primeira ação de guerrilha urbana de que cada um participou, em fevereiro de 1969.

Mais tarde, em abril de 1970 fui preso e, dois meses depois, enviado para o exterior, em troca do embaixador alemão, que fora sequestrado por grupos guerrilheiros. Stuart foi capturado em maio do ano seguinte.

Na ocasião, outro preso na base aérea do Galeão, Alex Polari, o viu ser torturado com choques elétricos, depois de pendurado no pau-de-arara. Testemunhou, ainda, que Stuart foi arrastado pelo pátio do quartel, amarrado ao parachoque de um jipe militar. E atestou ter visto militares colocarem sua boca no cano de descarga do jipe, o que, certamente, o matou pela inalação de monóxido de carbono.

Retomar essa placa e voltar a exibi-la ao público para que as novas gerações conheçam a história de Stuart é parte do esforço para que os chamados anos de chumbo não caiam no esquecimento.

Nós, brasileiros, estamos atrasados na recuperação da memória desse período. Isso é consequência da forma em que chegou ao fim a ditadura militar em nosso país. Ela não foi derrubada, mas saiu de cena num processo que os próprios militares controlaram.

Isso deixou enormes limitações na reconstrução da democracia. Nos nossos vizinhos dificilmente alguém se elegeria presidente da República pregando teses nazifascistas como as que Bolsonaro teve o desplante de sustentar ao longo de sua trajetória política.

Os demais países do chamado Cone Sul desenvolveram iniciativas muito mais expressivas no campo da recuperação da memória. Argentina, Uruguai e Chile construíram importantes museus, com denúncias dos crimes das ditaduras militares. Eles têm ampla visitação e estão sempre cheios de visitantes. Sua existência contribui para que a barbárie não se repita. Além disso, muitos dos principais responsáveis pelos crimes contra os direitos humanos e a humanidade foram levados aos tribunais e condenados, em processos que tiveram ampla divulgação na imprensa.

Homenagear Stuart não é só homenagear um jovem assassinado aos 25 anos por lutar pela democracia e contra a opressão. É homenagear também toda uma geração que jogou a vida e seu futuro em busca da construção de um mundo melhor.

Recuperar a placa com seu nome e reconstruir o memorial é parte da luta para que não se repitam aqueles anos.

E é também mostrar ao País e aos fascistas que hoje dirigem o Flamengo que quem melhor representa as cores rubro-negras não são eles, mas gente como Stuart.

 

*Jornalista

Ilustração: Flamengo Antifacista

Dia da Luta Antimanicomial

 

Angela Monteiro*



No dia 18 de maio comemora-se o Dia da Luta Antimanicomial no Brasil que remete a um longo histórico de lutas importantes como a I Conferência Nacional de Saúde Mental em Brasília em 1987, com o tema “Por uma Sociedade sem Manicômios”, seguido da promulgação da Lei 10.216 - 2001, também nomeada Lei Paulo Delgado e Lei da Reforma Psiquiátrica, marco legal que trata da proteção dos direitos das pessoas com transtorno mental, e redireciona o modelo de assistência no país.

Os chamados manicômios ou hospícios, existiam como espaços de isolamento e depósito de pessoas com transtornos mentais ou marginalizados pelo sistema, permanecendo abandonados e excluídos do convívio familiar e social, sofrendo maus tratos e tratamento desumano, muitos morreram e de lá nunca saíram.

O Movimento da Reforma Psiquiátrica vem de encontro a essa cultura e lógica manicomial e excludente defender um modelo de cuidado em liberdade, com base territorial e comunitária, por equipe multidisciplinar, atualmente realizada pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que tem o ponto estratégico os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Muitos avanços foram realizados em 22 anos para reordenação de uma rede de cuidados e substitutiva ao modelo manicomial, fechamentos de leitos psiquiátricos, expansão de rede de serviços, um movimento que envolveu trabalhadores, usuários, familiares, sociedade civil, ministério da saúde, na consolidação de um política pública de saúde mental, mas sabemos que há muito ainda a ser feito diante dos desafios da atualidade.

E por falar em saúde mental, a quem interessa essa luta hoje?  Quem está livre ou imune à dor existencial, ao sofrimento humano e psíquico, aos momentos de crise?  Será mesmo “coisa de maluco”, de “gente doida”?

O que é ser normal em um mundo com tantas desigualdades, contradições e injustiças sociais, um mundo que destrói sua própria morada, terra e seus habitantes em nome da acumulação de capital, lucro e poder. Que loucura é essa?

O que falar da loucura em uma sociedade que reforça o modelo medicalizante abusivo, o diagnóstico que estigmatiza, o silenciamento de vozes e subjetividades?

Quem acolhe, quem escuta, quem sustenta a crise? De que crise estamos falando? A crise mundial, do sistema? É uma pista.

Uma sociedade antimanicomial é antes de tudo uma sociedade que não segrega, não exclui ou penaliza pessoas que sofrem ou são diferentes.

Antimanicomial é um posicionamento em defesa da democracia, da liberdade, da inclusão e da garantia de direitos humanos, do cuidado humanizado e integral.

A luta é em defesa da vida! E todas as vida importam!

Essa luta não está ganha e por isso mesmo não podemos parar, é sempre bom lembrar que trancar não é tratar. Manicômio nunca mais!

 

*Assistente social - Trabalhadora do Sus no campo da saúde mental há 26 anos, mestranda do Instituto de Medicina Social (IMS)-UERJ

 

Ilustração: Cacinho

Sem anistia para os convivas da Selma

 

Cid Benjamin*



De forma espontânea surgiu nas ruas e nas redes sociais a expressão “Sem anistia”, exigindo punição (com julgamento, claro) para os participantes da intentona do dia 8 de janeiro. Na ocasião, a Câmara dos Deputados, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal foram invadidos e depredados por hordas fascistas num ato terrorista que tinha o nome em código de “Festa da Selma”. O objetivo era forçar uma intervenção militar que abrisse caminho para um golpe.

A expressão “Sem anistia” – que tem como objetivo demonstrar que não se pode contemporizar com aquele ato de natureza golpista – foi usada largamente pelo líder do Psol, Guilherme Boulos, num duro discurso na Câmara dos Deputados na última quarta-feira, dia em que foi aberta a CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) que investiga os acontecimentos daquele dia.

Alguns se perguntaram: não seria mais acertado perdoar os golpistas, de forma a facilitar um entendimento e o esfriamento dos ânimos?

No caso, não.

Não penso que se deva fazer política com ressentimento. Nunca. Mas é preciso ver as coisas sem perder a perspectiva política.

Sidarta Gautama, o Buda, nascido há mais de 400 anos antes de Cristo, já dizia que guardar rancor é como segurar carvão em brasa para jogar num desafeto. “Você é que sai queimado”, ensinava.

Tinha razão.

Depois dele, Pepe Mujica, uma das grandes figuras da atualidade, tem insistido sempre em que o ressentimento é mau conselheiro, tanto na vida, como na política.

Também tem razão.

Por que, então, não anistiar os golpistas de 8 de janeiro?

Porque o fascismo está vivo e tem que ser combatido e extirpado, em defesa dos interesses gerais da sociedade.

Antes de se corromperem os sandinistas tinham uma expressão boa: “Implacáveis na luta, generosos na vitória”.

O exemplo do Vietnã também é ilustrativo. Em janeiro de 1968, as forças que lutavam contra a ocupação norte-americana realizaram a chamada a Ofensiva do Tet. A maior parte das cidades mais importantes foi total ou parcialmente tomada e até a embaixada dos Estados Unidos em Saigon teve uma bandeira vietnamita hasteada em seu terraço. A fotografia correu o mundo inteiro

As forças vietnamitas fizeram grande número de prisioneiros. Os culpados de crimes mais graves foram rapidamente julgados e, muitos deles, fuzilados.

O objetivo da ofensiva não era expulsarem os Estados Unidos naquele momento, mas mostrar à opinião pública mundial e norte-americana a força da resistência e a impossibilidade de os norte-americanos vencerem aquela guerra. Este objetivo foi alcançado.

Seis anos depois, em abril de 1974, os americanos foram obrigados a deixar o Vietnã. Houve também grande número de presos, acusados de terem cometido crimes ao colaborar com a ocupação. A maior parte foi anistiada. A guerra tinha acabado e a situação estava sob controle.

Se o fascismo bolsonarista estivesse morto, os golpistas de 8 de janeiro poderiam ser anistiados. Mas está vivo e continua como ameaça à democracia, aos direitos humanos e à independência nacional. Passar a mão na cabeça dessa gente é criar cobras, correndo o risco de que, daqui a pouco, com seu veneno, ela ameace a nação.

É como dizem os espanhóis, “cria corvos e eles arrancarão teus olhos”.

Por isso, têm razão as ruas quando exigem: “Sem anistia”.

 

*Jornalista