sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Contra o Retrocesso na Moderação de Conteúdo da Meta e os Ataques à Regulação Democrática do Espaço Digital

 Coalizão dos Direitos na Rede

 


Nós, os signatários, manifestamos nosso mais veemente repúdio ao recente pronunciamento de Mark Zuckerberg, CEO da Meta, no qual ele anuncia medidas que representam um grave retrocesso na já problemática moderação de conteúdo nas plataformas Facebook, Instagram e Threads. Sob o pretexto de “restaurar a liberdade de expressão”, as propostas delineadas não apenas colocam em risco grupos vulnerabilizados que usam esses serviços, mas também enfraquecem anos de esforços globais para promover um espaço digital um pouco mais seguro, inclusivo e democrático.

Zuckerberg propõe substituir checadores de fatos por um sistema de “notas comunitárias” (seguindo o modelo problemático do X) e pretende reduzir drasticamente filtros de moderação, priorizando apenas violações “graves” (sobre terrorismo, exploração sexual infantil, drogas e fraudes). Ou seja, a empresa sinaliza que não terá mais ações de moderação de conteúdos contra desinformação, discurso de ódio e outras políticas de proteção a favor das pessoas mais vulnerabilizadas. O CEO da Meta explicitamente admite aceitar os riscos de que essas novas políticas possam filtrar menos conteúdos nocivos do que as anteriores.

Atualmente, já é notável ao redor do mundo serem falhas as Políticas de Moderação de conteúdo das redes da Meta, dando margem à práticas de violência de gênero, afetando a proteção de crianças e adolescentes, crescimento de grupos que propagam discurso de ódio e desinformação, além de outras violações de direitos humanos. As novas medidas propostas pioram a situação ao negligenciar os impactos reais dessas práticas de violência online, além de abrir caminho para a proliferação de conteúdos prejudiciais que desestabilizam sociedades e minam processos democráticos.

Outra mudança anunciada foi a adoção de uma abordagem caracterizada como “mais personalizada” para conteúdos políticos, ampliando a recomendação dessas mensagens. Em que pese a ausência de clareza sobre a medida, ela sinaliza a ampliação das “bolhas”, em detrimento do debate democrático aberto sobre temas de relevância pública. Estudos já mostraram como efeitos bolha potencializam a construção e reprodução de visões baseadas em desinformação, discurso de ódio e conteúdo prejudicial que limitam o debate democrático e a construção de sociedades mais justas.

O discurso da Meta se alinha com uma retórica preocupante que afronta iniciativas regulatórias legítimas e necessárias de governos e da sociedade civil em diversas partes do mundo, incluindo a América Latina, generalizando essas ações como “censura” ou “ataques a empresas estadunidenses”. Ao fazer isso, a Meta ataca de forma aberta os esforços soberanos e democráticos de nações em proteger suas populações contra os danos provocados pelas Big Techs. Com isso, prioriza, mais uma vez, os interesses estadunidenses e os lucros de sua corporação em detrimento da construção de ambientes digitais que prezam pela segurança de seus consumidores.

A proposta de “trabalhar com o presidente Trump para combater regulações ao redor do mundo” explicita uma posição alinhada a interesses que beneficiam as plataformas digitais por serem contrárias ao progresso regulatório que visa proteger direitos humanos fundamentais ao responsabilizá-las pelas externalidades negativas de seus modelos de negócios. Ou seja, ao contrário da proposta de “reduzir a tendência ao viés” (da moderação de conteúdo), essa política por si só é enviesada para uma ideologia contrária a direitos fundamentais. A Meta poderia promover a liberdade de expressão por meio de medidas de transparência e accountability, no entanto, opta por “simplificar” as medidas de moderação de conteúdo alinhado ao discurso propagado pelo recém-eleito governo de Trump.

O anúncio de Zuckerberg é emblemático de um problema estrutural: a concentração de poder nas mãos de corporações que atuam como árbitros do espaço público digital, enquanto ignoram as consequências de suas decisões para bilhões de usuários. Esse retrocesso não pode ser visto como um mero ajuste de políticas corporativas, mas como um ataque frontal desse monopólio de plataformas digitais às conquistas de uma internet mais segura e democrática.


Reafirmamos que a liberdade de expressão não pode ser usada como escudo para legitimar práticas que promovam violência, desigualdade e desinformação. O recente pronunciamento do CEO da Meta demonstra como a autorregulação das grandes plataformas digitais tem se mostrado insuficiente, sujeitando a adoção, atualização ou suspensão de qualquer política ao arbítrio unilateral das empresas.

Cabe aos Estados e à sociedade civil fortalecer mecanismos regulatórios públicos e sociais que coloquem as pessoas e os direitos humanos acima dos lucros.

Exigimos que as plataformas lideradas por Mark Zuckerberg revejam essas medidas e assumam sua responsabilidade no combate ao discurso de ódio, à desinformação e à exploração online. Também conclamamos governos e organizações ao redor do mundo a intensificar os esforços para criar um arcabouço regulatório global que proteja os direitos digitais e garanta que o espaço digital seja um ambiente seguro, justo e democrático para todos.


Este é um momento crucial. O futuro do espaço digital depende de nossa capacidade coletiva de resistir a retrocessos e avançar em direção a uma governança digital centrada nas pessoas e no planeta.


  

8 de janeiro de 2025

Ilustração: Clóvis Lima

O Pavio Curto também assina!

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

DESAFIOS ÀS FORÇAS PROGRESSISTAS EM 2025

Por Frei Betto *

 

       Meu primeiro impulso foi intitular este texto de “desafios à esquerda”. Logo me dei conta de que, hoje em dia, resta pouco do que considero esquerda – que se empenha na superação do sistema capitalista. 

       Adoto “forças progressistas” porque a expressão inclui antibolsonaristas, apoiadores do atual governo Lula, os que se empenham para manter e ampliar a democracia formal, malgrado seu paradoxo de socializar a esfera política (sufrágio universal) e privatizar a econômica, excluindo a maioria da população brasileira de condições dignas de existência (moradia, saúde, educação, cultura,  oportunidades de trabalho, que resulta em redução significativa do desemprego etc.). 

       Abordo em seguida desafios que considero prioritários.



 

   A comunicação do governo

        Embora haja grandes feitos em apenas dois anos de governo Lula, após quatro de desmontes promovidos pelo governo Bolsonaro, poucos sabem que, em 2023, a economia brasileira cresceu 2,9% (alcançou R$ 10,9 trilhões), e em 2024, 3,5%; a renda dos trabalhadores aumentou 12% e consequentemente também o consumo das famílias; o programa Bolsa Família passou a atender 21,1 milhões de famílias (1 milhão a mais que em 2022);  recuperação do salário mínimo acima da inflação (embora o ajuste fiscal tenha limitado o crescimento real a 2,5%. Em 2025 deveria ser de R$ 1.528 e passa a R$ 1.518); reestruturação do IBAMA e da FUNAI; o novo programa Pé de Meia (que beneficia 3,9 milhões de estudantes do ensino médio); a instalação de mais de 100 unidades dos Institutos Federais;  o programa Mais Médicos, que atende populações mais vulneráveis, conta, atualmente, com quase 25 mil médicos contratados pelo governo federal; e o protagonismo do Brasil no cenário internacional (Brics, G20, COP30 etc.). Haveria muito mais a destacar.

       Apesar de tantos avanços, o governo falha na comunicação. Até agora não soube montar uma trincheira digital capaz de superar a influência da extrema-direita nas redes. Pesquisas indicam que 76% dos brasileiros se informam por redes digitais e sites de notícias. 

       A guerra digital exige um número expressivo de profissionais dedicados à comunicação digital, com a possibilidade de formar grandes influenciadores. O fenômeno eleitoral Pablo Marçal, que não dispunha sequer de um minuto de propaganda na TV, deveria servir para alertar sobre a importância dessa ofensiva. 

 

    A batalha ideológica

        Outro fator que julgo importante para que as forças progressistas não venham a ser derrotadas pelos neofascistas na eleição presidencial de 2026 é a batalha ideológica.

       Convém lembrar que o fim da ditadura militar, em 1985, não resultou de suas inerentes contradições. Pesaram sobretudo o desgaste ideológico com as frequentes denúncias de violações de direitos humanos, o testemunho de ex-presos políticos e de familiares de mortos e desaparecidos, a pressão internacional pela redemocratização do Brasil, e as grandes mobilizações populares como a Passeata dos Cem Mil, as greves operárias do ABC paulista e as concentrações pelas Diretas Já!

       Hoje, a esquerda se encontra órfã de referências ideológicas. Elas se multiplicavam antes da queda do Muro de Berlim (1989). Países socialistas serviam de parâmetros às utopias libertárias. O estudo do marxismo e a sua aplicação nas análises da realidade vigoravam. Havia uma militância aguerrida que atuava voluntariamente nas campanhas eleitorais. A extrema-direita se sentia acuada e a polarização da esquerda se dava com a social-democracia.

       Isso acabou. Os tempos são outros. E sombrios. A direita se encontra em ascensão eleitoral no mundo. Sua máxima expressão, Donald Trump, ocupa o cargo mais poderoso do planeta. A direita passou a fazer intensa (des)educação política do povo, enquanto as forças progressistas deixaram Paulo Freire dormitar nas prateleiras. 

        As forças progressistas perderam a capacidade de promover grandes mobilizações populares diante da falta de educação política do povo, da excessiva burocratização dos partidos progressistas, da perda de referências históricas e do esgarçamento do movimento sindical.

 

    Empreendedorismo

        O fenômeno do empreendedorismo não é novo. A novidade é ter se tornado um modismo para as classes populares. Vários fatores concorrem para isso: retrocessos e perda dos direitos trabalhistas, precarização das relações de trabalho, desarticulação das estruturas sindicais, supremacia da financeirização sobre a produção, esgarçamento das relações sociais provocado pelas redes digitais etc. 

       O neoliberalismo, em sua era digital, mina as relações corporativas. A uberização das condições de trabalho e a síndrome dos influenciadores internáuticos, bem como a monetização das redes, criam a ilusão de que todos podem ascender socialmente sem muito esforço. Basta ousar ser patrão de si mesmo. É a nova versão do self-made man. * ("Este é um termo inglês que se refere a uma pessoa que alcançou o sucesso por meio de seus próprios esforços, habilidades e determinação, sem depender de ajuda externa).  *nota do canal

        Outrora a elite era constituída pela nobreza. Na medida em que os títulos nobiliárquicos foram sendo substituídos pelos títulos da Bolsa de Valores, o sangue azul cedeu lugar aos milionários que alcançaram o topo da pirâmide social graças ao empreendedorismo.

       Há que acrescer a isso a despolitização da sociedade, agravada desde a queda do Muro de Berlim. Como falar de sociedade pós-capitalista se o socialismo real fracassou? Como incutir nas novas gerações a consciência crítica se o marxismo já não está em voga? Como ampliar o espectro social e eleitoral das forças progressistas se elas abandonaram o trabalho de base? 

       São desafios que ainda não encontram respostas. E a falta de respostas acelera a ascensão da direita. Faz com que se repitam fatos surpreendentes, como a vitória de Lula sobre Bolsonaro, nas eleições de 2022, por apenas pouco mais de 2 milhões votos, em um universo de 156 milhões de eleitores. Ou a reeleição de Trump em 2024, vitorioso no colégio eleitoral e no voto popular. 

       Hoje, o eleitor, desprovido de consciência de classe, de relações corporativas (como as sindicais) e imunizado pelos impactos da grande mídia graças às suas bolhas digitais, busca eleger quem lhe possa garantir um lugar ao sol na praia das oportunidades. Na falta de referências revolucionárias (Vietnã, Sierra Maestra, figuras como Mao Tsé-Tung e Fidel) ele vota pensando, primeiro, na prosperidade individual, e não coletiva. 

       Os eleitores pobres manifestam seu inconformismo ao dar apoio aos que ostentam a bandeira da “antipolítica”. Decepcionados com os políticos tradicionais, preferem os arrivistas, os messiânicos, os que ousam contrariar o perfil da institucionalidade política e se glamourizam pelo histrionismo.

       Convém ressaltar que aqueles que se encontram sociologicamente na pobreza não mais se consideram pobres. Para eles, pobres são aqueles que vivem em situação de rua. Um episódio demonstra bem o que assinalo: durante a campanha eleitoral à prefeitura de São Paulo, em 2024, um líder do MTST visitou uma invasão urbana. Não se tratava de ocupação. Um terreno privado havia sido invadido por inúmeras pessoas induzidas por um espertalhão que cobrou por cada espaço em que barracos precários foram erguidos.

       Na conversa com um dos invasores, o líder do movimento social indagou como ele se sentia naquela situação de pobreza. O cidadão, vendedor ambulante, reagiu: “Não sou pobre. Tenho um terreno, uma casa e paguei por esse espaço.” Espaço que, com certeza, passado o período eleitoral, o dono da área pedirá reintegração de posse e todos serão expulsos dali pela Polícia Militar. 

        

       O fator religioso

        Outro importante fator que explica como a esquerda perdeu a mística e a direita “saiu do armário” é a inversão da motivação religiosa. Entre as décadas de 1970 e 1990, a principal rede de organização e mobilização popular no Brasil eram as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e as pastorais populares, inspiradas pela Teologia da Libertação. Isso foi desmantelado com os 34 anos (1978-2013) de pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI. Coincidiu com o espantoso crescimento das Igrejas evangélicas, cuja maioria de fiéis faz uma leitura salvacionista da Bíblia (pauta de costumes) e não libertária como faziam as CEBs. 

       A Igreja Católica, que havia feito “opção pelos pobres”, viu os pobres optarem pelas Igrejas evangélicas, nas quais encontram acolhimento e suporte social, inexistentes na maioria das paróquias católicas. Acresce-se a isso o erro de os legisladores brasileiros isentarem as Igrejas de pagar impostos como IPTU, ISS e imposto de renda sobre dízimos e doações. Assim, muitas novas Igrejas surgem para facilitar a lavagem de dinheiro…

       As forças progressistas, acuadas pelo fundamentalismo religioso dotado de inegável poder eleitoral, ainda não sabem como enfrentar esse fator que constitui o substrato cultural de nosso povo. E o governo não encontrou ainda uma estratégia que se contraponha ao fenômeno do conservadorismo religioso, cujo impacto cultural e político é significativo.

       Em resumo, a direita pode, sim, vencer as eleições presidenciais de 2026 caso o governo Lula e as forças progressistas não recalibrem suas estratégias na comunicação, nas trincheiras digitais, na educação política da população, na questão religiosa, no trabalho de base dos partidos políticos progressistas.

       Políticas sociais, por mais necessárias e eficientes que sejam, não mudam a cabeça do povo. Só uma ofensiva cultural, ideológica, será capaz de disseminar na população brasileira um novo consenso progressista como o que elegeu Dilma Rousseff duas vezes e Lula, três.

 

Frei Betto é escritor e educador popular, autor de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual:   www.freibetto.org


Os 434 que ainda estão aqui e os 8.350 que não

Por GUSTAVO GUERREIRO*



“Ainda estou aqui” ganhou destaque nas últimas semanas como um grito de resistência no cinema nacional, narrando a dor dilacerante de uma família que teve seu pai arrancado pela ditadura militar. Como o filme magistralmente retrata, conhecemos os 434 – sabemos seus nomes, suas histórias, suas lutas. São os mortos e desaparecidos políticos que habitam a memória coletiva do povo brasileiro, cujas famílias ainda buscam justiça. 

Mas há outros gritos de um Brasil profundo, igualmente dolorosos, que parecem não encontrar eco na consciência social dos brasileiros: os 8.350 indígenas assassinados no mesmo período. Por que suas histórias não ganham as telas? Por que seus nomes não estão gravados nos monumentos à memória? Por que suas famílias não têm o mesmo espaço para clamar por justiça? Talvez porque, para boa parte dos brasileiros, eles nunca estiveram verdadeiramente “aqui”.

Quando o filme de Walter Salles nos apresenta as imagens de uma família feliz à beira-mar, somos tocados pela brutalidade com que a ditadura destroçou aquele cotidiano de classe média. É uma história que precisa, sim, ser contada e lembrada. No entanto, enquanto famílias como a de Rubens Paiva eram dilaceradas nos centros urbanos, um genocídio silencioso se desenrolava nas profundezas do Brasil, longe dos olhos da imprensa e da sociedade civil.


Relatório Figueiredo 

O Relatório Figueiredo (que leva o nome do então procurador federal Jader de Figueiredo Correia, designado para apurar irregularidades no antigo Serviço de Proteção aos Índios), redescoberto apenas em 2013 pela Comissão Nacional da Verdade, revela uma face ainda mais trágica do regime militar: a execução sistemática de povos indígenas inteiros. Não foram apenas mortes isoladas, mas um projeto de Estado que via nos povos originários um “obstáculo ao progresso”. Comunidades inteiras foram dizimadas para dar lugar a estradas, hidrelétricas e principalmente fazendas. Crianças foram assassinadas nos braços de suas mães, idosos foram queimados em suas ocas, lideranças foram envenenadas. A brutalidade é tão descomunal que beira o inacreditável – talvez por isso mesmo tenhamos optado por não acreditar.

É curioso, e profundamente perturbador, como o Brasil construiu uma hierarquia invisível do luto. Quando um professor universitário, um jornalista ou um deputado era morto pela ditadura, sua morte ecoava (e ainda ecoa) nos corredores da história. Seus nomes são lembrados, suas histórias são contadas, filmes são feitos. Mas quando centenas de Xavantes, Cinta Largas ou Waimiri-Atroari eram massacrados, o silêncio era – e ainda é – ensurdecedor. Não seria este um sintoma de um racismo estrutural tão profundamente arraigado que nem mesmo os setores mais progressistas da sociedade conseguem superá-lo?

A própria esquerda, em sua narrativa de resistência à ditadura, muitas vezes reproduziu uma visão urbano-centrada da história. Enquanto contabilizamos meticulosamente os 434 mortos e desaparecidos políticos – número que por si só já deveria nos horrorizar -, deixamos escapar por entre os dedos da memória mais de 8 mil vidas indígenas. Em 2014, participei como ouvinte de duas sessões de audiência da Comissão Nacional da Verdade em Dourados, Mato Grosso do Sul, com a finalidade de dar voz aos Guarani Kaiowá, Ñandeva, Terena, Kadiwéu, Kinikinau, Ofaié e Guató sobre casos de violação de seus direitos. Percebi, atônito, que os relatos dos indígenas indicaram que os números do Relatório estavam muito abaixo da realidade. Não se trata de estabelecer uma competição macabra de qual tragédia foi maior, mas de compreender que nossa memória coletiva é seletiva e essa seleção não é inocente.


Genocídio de povos indígenas

O projeto desenvolvimentista da ditadura militar não foi apenas um plano econômico; foi uma sentença de morte para diversos povos originários. Enquanto nas cidades se perseguiam aqueles que se opunham ao regime, nas florestas e cerrados se executava um projeto de extermínio muito mais amplo. A construção da Transamazônica, celebrada como obra faraônica do “milagre econômico”, foi na verdade uma estrada pavimentada com sangue indígena. Cada quilômetro de asfalto representava dezenas de vidas ceifadas, culturas destruídas, cosmologias interrompidas.

Quando analisei durante meses documentos como o Relatório Figueiredo para minha tese de doutorado, intitulada “O militar e o Índio: a influência das Forças Armadas na Política Indigenista Brasileira”, descobri que a violência não era apenas física. Era também burocrática, sistemática e institucionalizada. O próprio Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que deveria proteger as populações indígenas, transformou-se em um instrumento de extermínio. Muitos funcionários públicos da época, que deveriam defender os indígenas, tornaram-se algozes. Laudos foram falsificados, terras foram griladas, e comunidades inteiras foram declaradas “extintas” com uma simples canetada.

Este apagamento continua até hoje. Enquanto filmes, livros e documentários constantemente revisitam – e com razão – as histórias dos perseguidos políticos urbanos, quantas obras abordam o massacre dos Waimiri-Atroari durante a construção da BR-174? Quantos brasileiros sabem que os Cinta Larga foram dizimados com dinamite lançada de aviões, no chamado Massacre do Paralelo 11? Ou que crianças Tapayuna foram envenenadas com arsênico em um suposto ato de “pacificação”?


"Brasil profundo"

A disparidade na preservação dessas memórias revela muito sobre nossa sociedade. Os 434 mortos e desaparecidos políticos tinham nome, sobrenome, família que podia recorrer à justiça, amigos que podiam contar suas histórias, documentos que provavam sua existência. Já os indígenas assassinados eram vistos pelo Estado como números inconvenientes, estatísticas incômodas de um “Brasil profundo” que precisava ser “civilizado” a qualquer custo.

É sintomático que apenas em 2013, com a Comissão Nacional da Verdade, tenha-se começado a olhar mais sistematicamente para esses crimes. Mesmo assim, o capítulo sobre violações de direitos indígenas foi incluído apenas após intensa pressão de pesquisadores e ativistas. É como se precisássemos constantemente lembrar à sociedade brasileira que os povos indígenas também são parte desta história – e suas mortes também precisam ser contadas, lembradas e reparadas.

Quando assistimos a “Ainda Estou Aqui” e nos emocionamos com a luta de Eunice Paiva por justiça, precisamos lembrar que também existem milhares de outras histórias de dor e resistência que ainda aguardam para serem contadas. Histórias de povos que, apesar de todas as tentativas de extermínio, também “ainda estão aqui”. Sobreviveram não apenas à violência física e ao etnocídio, mas à violência do esquecimento.


A luta de Eunice Paiva

A verdadeira dimensão da ditadura militar brasileira só será compreendida quando o Brasil olhar para além dos centros urbanos, quando pudermos contar não apenas as histórias que nos são próximas e familiares, mas também aquelas que nos são propositalmente distanciadas. Reforço aqui que os 434 e os 8.350 não são números que competem entre si – são faces diferentes de um mesmo projeto de poder que escolhia quem podia viver e quem devia morrer.

É profundamente simbólico – e talvez não por acaso – que Eunice Paiva, após perder seu marido para a violência da ditadura, tenha dedicado grande parte de sua vida à defesa dos povos indígenas. Como advogada e ativista, ela compreendeu que a luta por justiça e memória não podia se restringir apenas aos círculos urbanos e intelectualizados. Ela entendeu, como poucos em sua época, que a dor da perda e o direito à existência não conhecem barreiras sociais ou étnicas. Sua militância em defesa dos povos indígenas nos ensina que a verdadeira resistência à opressão deve ser ampla, inclusiva e profundamente humana.

Hoje, quando falamos em reparação histórica e justiça de transição, precisamos expandir nosso olhar. Não é possível haver justiça sem a inclusão de todas as vítimas da violência estatal. Não podemos mais aceitar que alguns mortos sejam mais chorados que outros, que algumas histórias sejam mais dignas de serem contadas que outras. Continuar luta de Eunice Paiva pela visibilidade e pelos direitos dos povos indígenas é honrar sua memória.


Ainda estamos aqui

As mortes e desaparecimentos de indígenas não são apenas números em uma estatística macabra – são populações inteiras, com suas culturas, línguas, cosmologias e formas próprias de existir. Cada vida indígena perdida durante a ditadura representou também a perda de conhecimentos milenares, de formas únicas de compreender e se relacionar com o mundo. O Brasil precisa urgentemente incorporar essas 8.350 tragédias à memória coletiva de seu povo, não como uma nota de rodapé, mas como parte fundamental da narrativa histórica sobre a violência do Estado brasileiro.

Não podemos mais fingir que não sabemos, nem escolher quais mortos vamos chorar. É hora de expandir nossa capacidade de indignação e empatia. É hora de reconhecer que cada vida indígena perdida é uma perda irreparável para toda a humanidade. Que cada história não contada é uma violência que se perpetua. Que cada silêncio nosso é também uma forma de cumplicidade.

Ainda estamos aqui, sim. E precisamos estar aqui para contar todas as histórias, honrar todas as memórias, chorar todos os mortos. Porque só assim poderemos construir um futuro verdadeiramente democrático, onde a vida – toda e qualquer vida – seja sagrada e inegociável. Este é o verdadeiro legado que Eunice Paiva deixou. Esta é a luta necessária.

 

*Gustavo Guerreiro é Indigenista na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades, editor da Revista Tensões Mundiais. Doutor em Políticas Públicas. Especialista em questões militares. Diretor de Pesquisas do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz).


Publicado originalmente em red.org.br em 15/01/2025

Ilustração: Senado Federal

O papel da esquerda nas eleições municipais

Luis Carvalho*


O ano eleitoral para o pleito municipal se inicia e com ele a corrida nas diversas cidades do país. Embora muitas pessoas não considerem as eleições municipais como tendo muita importância elas são a principal forma de aferir os caminhos políticos brasileiros. Muito por conta do histórico e legado que o Brasil possui.

Uma das primeiras formas de administração do Brasil colônia foram as chamadas câmaras municipais. Elas se constituíam na forma de administrar as capitanias e fortalecer as pequenas localidades, posteriormente transformadas em cidades. Dessa estrutura emergiam os principais nomes e debates em torno dos temas que envolviam anseios nacionais.

Há um abismo histórico do período colonial até os dias atuais, mas a importância das Câmaras Municipais continua, uma vez que elas são o elo mais “próximo” do povo com a política. Sendo assim, impõem-se à esquerda a missão de encurtar esse espaço, envolver no debate e eleger representantes ao legislativo municipal.

Na contramão do modelo adotado em grande parte do país em que o político é eleito e não dá nenhuma satisfação do mandato a esquerda necessita atuar junto aos coletivos e aproximar-se dos anseios populares de maneira a fazer do mandato uma verdadeira representação dos interesses do povo.

Por vezes e de forma equivocada concebeu-se o poder somente sob o prisma econômico e político sem levar em consideração as demais implicações do mesmo. O amadurecimento após algumas experiências fracassadas e, sobretudo, com a ascensão de candidatos outsiders (banalizando a política e achincalhando instituições) a concepção deve ser entendida num sentido mais consubstancial e teórico conforme podemos observar na definição de Sader: “O poder é uma relação social, da mesma forma que o capital. A alteração de sua natureza, a construção das bases de um novo poder é, portanto, um processo político, entendido este como síntese das relações econômicas e sociais, institucionais e militares” (SADER, 2003, p.21)

Nesse sentido, o poder ou a forma como esse é exercido deve ser stricto senso representativa, ou seja, necessita levar em consideração as verdadeiras demandas populares. Já dizia o filósofo argentino Enrique Dussel que o poder deve ser obediencial, isto é, obedecer mais do que dominar. A dinâmica de uma esquerda popular deve ser de atuar em obediência às demandas. Por isso deve estar em consonância com os desejos populares.

De mesma sorte há de se pensar em mecanismos que visem romper com alguns problemas estruturais e deixam as populações periféricas em situação de vulnerabilidade por isso, a iniciativa de uma vereança de esquerda deve se configurar como crítica e radical. Aqui tomamos emprestado o conceito de Vazquéz quando afirma:

Para que a crítica vingue, tem que ser radical. “Ser radical – diz Marx é atacar o problema pela raiz. E a raiz para o homem é o próprio homem”. Crítica radical é crítica que tem o homem como centro, como raiz, o homem; crítica que responde a uma necessidade radical. “Em um povo, a teoria só se realiza à medida em que é a realização de suas necessidades” (VÁZQUEZ, 2007, p.117).

Nesse sentido, as demandas da classe trabalhadora, isto é, das pessoas que produzem a riqueza da sociedade e são privadas das benesses desse lucro precisam ser contempladas, minimamente e de forma digna. Por isso iniciativas populares devem levar em conta essa crítica tanto quanto sua radicalidade em enfrentar os problemas de frente.

Algumas alternativas têm surgido com o intuito de organizar de forma coletiva tanto a sociedade, quanto o poder nela exercido. Lembramos que somente com uma boa base teórica se pode conseguir êxito. Uma das formas utilizada ultimamente são os mandatos coletivos no poder legislativo, que tendem a se aproximar das propostas coletivas implementadas em alguns países de inspiração socialista.

Contudo, como estamos num sistema democrático complexo que guarda em seu seio algumas instituições conservadoras a dinâmica assume seu grau de dificuldade na equivalência da política conforme atesta Benjamin:

A ideia central também se inspira nos clássicos. Sociedade de classes necessitam de instituições políticas muito complexas, porque nelas é preciso gerenciar um poder exercido sobre os homens. A dominação de alguns sobre as maiorias exige grandes aparatos burocráticos, político-militares e ideológicos. Nesses sociedades, em última análise e política seria a gerência desses aparatos e dessas relações de poder. Daí a necessidade de um Estado (BENJAMIN, 2003, p.143-144).

Diante de um Estado conservador e com tendências a contemplar a necessidade das classes superiores a alternativa de esquerda, coletiva e organizada serve justamente como contraponto e proposição, uma vez que, sua vocação é defender as classes subalternas e trabalhadoras. Os ideais que envolvem ambas são antagônicos, pois se de um lado visa-se a manutenção do poder e privilégios de outro se busca a conquista de direitos e afirmação de valores básicos como vida, saúde, educação, cultura, etc.

 

Referências:

BENJAMIN, César. Marx e o socialismo. São Paulo: Expressão Popular, 2003.

SADER, Emir. Poder, cadê poder? São Paulo:  Boitempo, 2003.

VÁZQUEZ, Adolfo Sanchez. Filosofia da práxis. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales. São Paulo: Expressão Popular, 2007.


*Filósofo

Lula pisa em ovos com os militares*

Cid Benjamin**

Na semana passada o presidente Lula mostrou, mais uma vez, que pisa em ovos quando entra em pauta um assunto que incomode os militares. Às vésperas do 60º aniversário do golpe de 1964, Lula descumpriu a promessa de reabrir a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos. O compromisso tinha sido assumido tanto por ele e pelo ministro de Direitos Humanos, Sílvio Almeida. Este último chegou a informar que o decreto para que a comissão voltasse a funcionar estava pronto, já na mesa do ministro da Casa Civil, Rui Costa.

Sílvio e Rui ficaram num jogo de empurra, mas Lula logo entrou em campo e mostrou que a hesitação não era dos ministros. Era dele mesmo. Numa justificativa canhestra para lavar as mãos, o presidente disse que não estava interessado em “ficar remoendo o passado”. Lembrou que na época do golpe de 1964 tinha 17 anos e que “os generais que estão hoje no poder” eram crianças na época da ditadura. Disse, também, que, na época, passou fome, com a mãe e os irmãos, e não quer ficar lembrando isso.


Cabem aqui quatro observações:

Primeiro: a questão não é pessoal, e a idade de Lula em 1964 não vem ao caso. Ele hoje ocupa a Presidência e tem que agir como primeiro mandatário da nação.

Segundo: os generais não estão mais no poder, como afirmou Lula, num ato falho.

Terceiro: ninguém está pensando em punir os generais hoje na ativa pelos crimes de seus antecessores no Exército, como insinuou o presidente.

Quarto: punir golpistas e torturadores não é remoer o passado. Não se constrói a democracia fechando os olhos para o passado e passando a mão na cabeça de criminosos.


Vale a pena lembrar quando a Lei da Anistia foi aprovada, em agosto de 1979, ainda durante a ditadura. A lei votada no Congresso foi a possível naquele momento. Era aquilo, ou nada. Tanto a oposição parlamentar como o movimento popular agiram corretamente ao aceitá-la. Mas isso não impedia que, mais adiante, a questão fosse reaberta e a lei, revista. Afinal, suas aberrações são gigantescas.


Primeiro, deixou de fora perseguidos com condenação pelo que a ditadura chamou de “crimes de sangue” (ações de guerrilha em que tivesse havido mortos ou feridos). Eles só saíram da prisão depois, com a reformulação da Lei de Segurança Nacional, diminuindo as penas, o que beneficiou alguns presos. Mas a discriminação foi descabida. A jurisprudência internacional e a Declaração de Direitos Humanos da ONU reconhecem a legitimidade de revoltas, mesmo armadas, contra regimes de opressão.


Um segundo ponto: os militares usaram um artifício grosseiro para uma autoanistia. O projeto afirma beneficia autores de “crimes conexos” a crimes cometidos pelos perseguidos políticos. Ora, crime conexo é um crime menor cometido para tornar possível outro, mais importante. E engloba este último. Assim, por exemplo, o uso de documentos falsos para viabilizar um crime maior é conexo a ele.


Mas a ditadura deu à lei uma redação propositalmente ambígua, tentando não permitir a punição dos agentes da repressão política. Vejamos o que diz a lei.


“Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. Assim, o crime de tortura ou de assassinato de presos estaria supostamente relacionado com outros “crimes”, praticados com motivação política.


É um artifício grotesco, que só pode ser aceito de má-fé. Ao torturar ou assassinar presos políticos, os agentes do Estado teriam cometido crimes conexos àqueles cometidos pelos opositores presos. E, por isso, seriam também anistiados. No limite — e esse exemplo funcionou na prática — o torturador que estuprou uma presa teria cometido um crime conexo ao dela. E foi anistiado. O absurdo salta aos olhos.


Um terceiro ponto: a tortura e o assassinato de presos políticos nos porões não teriam sido “crimes de sangue”? Como, então, seus autores foram beneficiados pela anistia?


Quarto: houve centenas de casos de “desaparecidos”, sem que os autores dos crimes tivessem sido identificados e julgados. Esses não poderiam ser “casos em aberto”? Basta ver quantos episódios, inclusive no Primeiro Mundo, envolvendo mulheres mantidas em cativeiro por maníacos às vezes durante anos. Como se pode afirmar que os casos de desaparecidos não possam ter sido coisa semelhante? Embora não seja provável, do ponto de vista legal não se pode garantir que sejam casos encerrados. A rigor, mereceriam investigação.


Quinto: nas situações dos desaparecidos e torturados não se pode falar em prescrição dos crimes, mesmo que muitos anos tenham se passado. O Brasil firmou tratados internacionais que consideram imprescritíveis a tortura e o desaparecimento forçado de opositores políticos. Tais crimes não são passíveis de anistia.


Enfim, como se vê, o quadro é mais complexo do que pintou Lula.


E, por que é importante não fechar os olhos, como ele defendeu?


A responsabilização e o julgamento público dos torturadores — dando-lhes todas as garantias que suas vítimas não tiveram — além de fazer justiça, ajudaria a criar anticorpos na sociedade para que a barbárie não se repita. Afinal, o futuro da tortura está ligado ao futuro dos torturadores. Assim, os culpados teriam que ser responsabilizados. Mesmo que, tempos depois, com a página virada, depois de conhecida pela sociedade, pudessem até mesmo ser anistiados.


Por isso tudo, é de se lamentar a posição de Lula.


* Publicado originalmente no canal MyNews

**Jornalista


4 de março de 2024