terça-feira, 3 de agosto de 2021

DIVINA ELIZETH

 

Ilustração Guilherme Maia

Por GUILHERME MAIA 



Elizeth Cardoso – a grande intérprete que sobrevoava o chorinho, o samba-canção, o samba raiz, a bossa nova e o emaranhado de concepções musicais a que se convencionou chamar MPB – dominou todos esses estilos da arte brasileira com maestria e se impôs como a Divina entre os críticos mais criteriosos, como o caso de José Ramos Tinhorão. Conquistou o coração de gerações sempre elegante e em sintonia com os anseios populares.


Fruto do Brasil, seu canto foi se firmando com uma série de fatores que parecem mais uma crônica que reúne nossa realidade: teve de trabalhar desde menina para o sustento de sua família (tinha cinco irmãos) e, com isso, aos 10 anos já era balconista, cabeleireira e operária de uma fábrica de sabonetes; por outro lado, bebeu da mística do samba na casa da lendária mãe de santo Tia Ciata, local de encontro dos ícones da arte brasileira (imagine Donga, João da Baiana e Sinhô no mesmo lugar) e foi lá em meio à Praça Onze que Elizeth começou a forjar sua persona na arte brasileira.

Essa dualidade pobreza e arte é uma síntese da brasilidade, porque nunca se produziu cultura de identidade pelas elites retrógradas. Toda a cultura sempre emanou do povo e dessa forma popular foi-se construindo um sentido de pertencimento a uma arte própria e que se diferenciava da proveniente da Europa, por exemplo.

Vale salientar que mesmo os literatos da Semana de Arte Moderna de 22 e Villa-Lobos se alimentavam da expressão popular para dar requintes eruditos à identidade nacional.

Em meio a todo esse caldo, surge Elizeth, a grande cantora do Brasil! Ela, que cantava Ari Barroso, Jacob do Bandolim, Tom Jobim. Esteve lado a lado, piano e voz, com Radamés Gnattali (gênio absoluto de arranjos clássicos e populares e clássicos-populares) e lado a lado, violão e voz, com Rafael Rabelo. Impressiona essa versatilidade que transpõe gerações.

O mundo tremeu em 1968 quando Elizeth juntou o Zimbo Trio (trio histórico do jazz brasileiro e da bossa nova), Jacob do Bandolim e o Época de Ouro no Teatro João Caetano. Que coisa maravilhosa foi aquela noite, o público vindo abaixo quando ela cantou em duo com o Jacob do Bandolim o clássico Barracão de Zinco.

Tem uma história antológica contada pelo Ricardo Cravo Albin sobre como foi feita a gravação desse show único. Ricardo trabalhava no Museu da Imagem e do Som (MIS), tinha recebido uma matriz com discursos do presidente John Kennedy pelo consulado estadunidense. Nem pensou duas vezes, pegou o que recebera levou para o Teatro João Caetano e gravou por cima a preciosidade daquele encontro e eternizou um dos maiores momentos da arte brasileira!

Fez ele muito bem!

O Brasil e a Arte agradecem!  

Elizeth foi um ícone de resistência. Demonstrou com sua vida de lutas como o povo brasileiro tem uma força interior que não há elite retrógrada, violência e arbitrariedade policial ou mesmo políticos neofascistas que o derrubem.   


Abolicionismo penal: superar o estado atual

Ilustração Cacinho

Por Eduardo Alves


É fundamental iniciar esta conversa informando as marcas ainda mais danosas do capitalismo no Brasil. Não bastassem todas as perversas dores impostas às pessoas que são empobrecidas pela força danosa dos preconceitos, do controle e das múltiplas explorações organizadas pelo Estado, o sistema penal joga aos cárceres privados a maioria do povo. O abolicionismo penal, ainda que não seja sinônimo do abolicionismo social que buscamos conquistar a cada dia com o fim das explorações, do racismo e das discriminações, é parte desta mesma história e possui muito peso em escala mundial. Aqui as veias abertas que ardem não permitem equívocos e nos conclamam a ser assertivos: afinal, das pessoas encarceradas, 66,7% são não brancas, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado em 2021. Segundo o mesmo anuário, “em 15 anos, a proporção de negros no sistema carcerário cresceu 14%, enquanto a de brancos diminuiu 19%”. 

Mas, cravando de onde falamos, vale destacar o papel que têm os meios de comunicação nesse processo profundamente danoso levado pela PUNIÇÃO. Thomas Mathiesen, um norueguês nascido em 1933, começou a formular na década de 1950, sem olhar para América Latina e o Brasil, elementos fundamentais que nós do PAVIO CURTO precisamos chamar ainda mais atenção. Afinal, para esse teórico crítico da linha do ABOLICIONISMO PENAL, “A irracionalidade verdadeira da prisão é um dos segredos mais bem guardados em nossa sociedade. Se o segredo fosse revelado, destruiria as raízes do sistema atual e implicaria o começo de sua ruína”. Ou seja, nós da comunicação temos um papel fundamental em uma questão com profundo peso social, histórico, cultural e ideológico. São informações que as pessoas não podem ser impedidas de ter, as quais precisamos garantir para que o papel das punições em prisões seja evidenciado em todos os seus aspectos, tonalidades, espaço de ocupação social e condições de viver.

Acompanha a comunicação, bem próximo, o direito à educação para as pessoas. Combinando os astros, todas as pessoas mais punidas, as que mais se amontoam nos cárceres, são empobrecidas, negras, da periferia, com os direitos a sobrevivência e a educação impedidos pelo Estado. O Estado, principalmente em países que sofreram o peso danoso da neocolonização, faz valer sem restrição para a grande maioria da população os IMPOSTOS E AS PUNIÇÕES. Herança imposta do Iluminismo, existente desde o século XVIII, que ganhou mais “canhões de luzes” no liberalismo e no que é chamado de neoliberalismo. A guerra, tão facilmente reivindicada e implementada pelo capitalismo, possui também desde os iluministas, liberalistas, até os mais autoritários que predominam em países de capitalismo tardio como o Brasil, rios bravos de punições que se aproveitam do discurso mais mentiroso e ideologizado sobre “as pessoas perigosas”. Afinal, quem são as pessoas perigosas do Brasil? Há essas pessoas ou o perigo está no lugar que ocupam nas formações sociohistóricas com o controle do capital, com a apropriação do comum e com o Poder do Estado?

Edwin Sutherland, sociólogo e pesquisador estadunidense, espantou-se com as consequências da crise de 1929, quando alguns homens considerados “bem sucedidos” passaram a ser processados criminalmente. Sutherland iniciou uma pesquisa que envolvia dezenas de grandes corporações empresariais, profissionais liberais entre outros grupos compostos por pessoas consideradas “cidadãos acima de qualquer suspeita”, constatando que, apesar de nunca terem sido alvo do sistema de justiça criminal, de forma generalizada, cometiam inúmeros crimes, condutas ligadas à posição privilegiada de suas atividades profissionais, porém proibidas e criminalizadas. Ou seja, as pessoas que cometem aquilo que é classificado como crime na sociedade não são as pessoas consideradas “estragadas”. Não se trata da “outra pessoa defeituosa” ou qualquer tom pejorativo que se constitua para falar das pessoas que são dos grupos mais explorados, marginalizadas, criminalizadas das diversas formas que o poder capitalista encontra.

Assim sendo, é mais que importante que todos os grupos sociais comprometidos com a superação do capitalismo ou com o enfrentamento das desigualdades enfrente necessárias ações para o abolicionismo penal. Desde proposições como RENDA BÁSICA UNIVERSAL E INCONDICIONAL para fazer com que o Estado garanta a subsistência de todas as pessoas e não se baseie no poder da cobrança, do controle e da punição, até a divulgação de ideias e notícias comprometidas com o verdadeiro são ações fundamentais que acumulam nesse campo.

Nós temos assertividade sobre o grupo social do qual fazemos parte e o grupo político de qual, como sujeitos, construímos em formas de representação. Neste sentido, não temos dúvidas: o papel do Estado não é a garantia da punição para as pessoas mais oprimidas, marginalizadas, as que mais sofrem o peso desastroso da exploração. Somos, sim, comunicadoras e comunicadores comprometidas e comprometidos com a democracia e com a liberdade. Neste sentido, não há dúvidas, seja o “lugar de fala” de pessoas oprimidas, marginalizadas e exploradas, são os lugares de solidariedade ativa que nos unifica na ação comprometida com o verdadeiro. E, neste sentido, o tema do ABOLUCIONISMO PENAL é fundamental para, além de bons debates e estudos que nutram potentes pensamentos que façam fluir inteligências coletivas na vida. Para além disso, que seja a bandeira crítica do abolicionismo penal seja também uma aspecto fundamental para nos mobilizar contra todo o tipo de racismo, machismo, patriarcalismo, patrimonialismo e poder que desapropria as pessoas do comum e impõe as variadas formas de exploração como modelo de Estado.

Na formação social brasileira, não há fronteiras entre as necessárias ações anticapitalistas que unificam a luta pela superação do racismo, do machismo e da exploração. E, neste sentido, o BEM VIVER, como forma de organização economia, política e social e a CONVIÊNCIA entre as pessoas diferentes, mas não desiguais, nos coloca o compromisso por educação e comunicação como instrumentos críticos, para a Vida e a Liberdade a serem conquistadas. Temas, como abolicionismo penal, possuem o desafio de nutrir a inteligência solidária e coletiva para superar o capitalismo e fazer a comunicação mais criativa e comprometida com o viver.


AQUI E AGORA

Ilustração Guilheme Maia


ELE NÃO!

Por Guilherme Maia e Rodrigo Cosenza

Estamos em um tempo de revelações, da exposição das mazelas arraigadas em nosso pensar e fazer coletivo. Isso em relação aos incontáveis preconceitos e práticas de violência direta e simbólica praticadas pelos arcaicos donos do poder no Brasil - a classe dominante de nosso país.

O Brasil era um país onde não havia racismo? Provou-se que não. O Brasil era de uma cordialidade indelével e que compensava desigualdades e concentração de renda? Também se demonstrou à vista de todos que isso é uma tolice que mais servia para conter a contestações e revoltas do conjunto da população frente ao grau de exploração a que é submetida.

O fato de não ter havido uma ruptura estratégica com os grupos de poder que estruturaram a ditadura militar – seja pelas condições ou possibilidades dadas à época – permitiu que, por duas décadas, o ovo da serpente fosse chocado livremente na chamada “Nova República”.

Resistência

Na História do Brasil sempre foi importante a resistência cultural – uma verdadeira trincheira – formada por artistas e intelectuais orgânicos das gerações passadas, que  combateram por meio da estética e da lírica. Criticavam e apontavam perspectivas de um convívio mais livre e justo, que superasse uma realidade de pobreza material e exploração, mas também para agitar as massas promovendo a mobilização de encontro à conjuntura extremamente desfavorável que se apresentava.

As forças progressistas e as forças reacionárias sempre disputaram como se estabeleceriam as regras e, por vezes, tivemos vislumbres de avanços, a muito custo e com a reação pronta e disposta a cobrar o preço. Exemplos foram a criação e instalação do Sistema Único de Saúde, o SUS, que teve como protagonistas os comunistas brasileiros; o Estatuto das Cidades ou o Sistema Único da Assistência Social (SUAS). Todos foram grandes avanços em nossa possibilidade de coletividade cidadã, mas sempre bombardeados com restrições orçamentárias e propagandas ideológicas de descrédito almejando sua privatização total. A luta está aí, como sempre esteve.

Somos vítimas de um projeto de domínio que passa pelo entorpecimento da consciência coletiva. E também pela manipulação da revolta que turvou o sentimento de pertencimento à uma nação em um chauvinismo culminando na ascensão de um fascista de cores auriverdes. Patriotismo de fachada, posto que o que de fato temos é o desmonte do Estado e dos bens e serviços públicos.  Vemos assim a impossibilidade de formação de identidade nacional real e aberta ou mesmo uma globalização participativa entre culturas. O que temos é o desmonte até mesmo da cultura popular em seus sentimentos mais enraizados!

Elite predatória

A classe dominante brasileira que fomenta o atual estado de coisas é predatória e impõe e usufrui de uma concentração obscena de renda e de riquezas, sempre saudosa da República Velha, talvez até da escravidão do tempo do Império. Para garantir seu poder a elite leva a cabo o projeto autoritário de agora.

A deturpação dos sentidos, como uma desenvolvida máquina de alienação em massa, alça essa desorientação ao fazer político e isso é uma produção cultural, mesmo que pelo DarkSide. É, sim, uma produção cultural, porque põe de ponta cabeça o entendimento por produções de realidades estéticas, seja da retórica, seja da diagramação de memes e quejandos. Trata-se de uma anticultura, de uma antiarte. É o pensamento de quem domina as condições materiais e políticas se fazendo hegemônico na arte, na cultura, nas diversas formas de expressão.

Por isso, a organização antifascista e democrática precisa produzir cultura e manifestar a beleza do criar artístico com as reivindicações políticas de liberdade, da diversidade e da superação da exploração. Da arte mais simplória às elaborações mais sofisticadas, é preciso apontar para a emancipação humana. Seguir e avançar no caminho de gente como Carybé, Portinari, Jorge Amado, Chico Science, Gonzaguinha, e tantos outros.

Nós aqui demos nossa pequeniníssima contribuição. Compusemos a música Ele Não para marcarmos a época em que vivemos, pois temos de produzir e participar de nosso tempo, para sermos plenos em nossa vida! 

“Vamos acordar e viver um novo dia

Nossa liberdade conquistar”

Entoa a música antes do ápice “Ele Não!”.

Já sabemos que “Ele Não”! Agora falta cantarmos, desenharmos e encenarmos isso para deixar nossa marca em nossa época ou, ainda, combater com as mesmas armas a produção de alienação de massas pela propaganda ideológica do neofascismo. A liberdade e fraternidade de uma humanidade emancipada é nossa pulsão!


Transparência seletiva: entre a mensagem e a prática

 

Ilustração Clovis Lima


Júlio Araújo Jr. 


Na semana passada, reportagem de O Estado de São Paulo noticiou uma possível ameaça do ministro da defesa ao presidente da Câmara dos Deputados. Ele teria dito que, caso não haja a aprovação da legislação sobre voto impresso, as eleições de 2022 não ocorrerão.


Ambos negaram a ameaça, mas em nota o ministro defendeu a discussão sobre o voto impresso. Disse que todo eleitor deseja mais transparência e legitimidade no processo eleitoral e que o debate acerca do voto eletrônico auditável por meio de comprovante impresso é legítimo.


Por reforçar a desconfiança nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral, as declarações causaram forte preocupação quanto aos rumos da nossa democracia. Para piorar, a utilização do termo “transparência” para justificar o chamado voto auditável não trouxe qualquer justificativa. O argumento parece soar interessante e afinado com o espírito democrático, pois indica uma suposta defesa da publicidade acima de tudo e de todos. O curioso, no entanto, é que o mesmo emissor da mensagem conduziu a intervenção federal no Rio de Janeiro em 2018, marcada justamente por críticas pela falta de transparência.


Pude analisar essa questão em ação civil pública contra a União e o Estado do Rio de Janeiro que tramita na Justiça Federal do Rio de Janeiro. Houve três pontos centrais que indicam a falta de transparência na intervenção federal. Em primeiro lugar, faltou transparência nas respostas aos questionamentos dos órgãos públicos: as respostas do gabinete da intervenção eram genéricas e não possuíam detalhamento sobre as ações adotadas.


Em segundo lugar, os relatórios oficiais não responderam a diversos questionamentos da sociedade civil, sobretudo em relação à Baixada Fluminense, tendo havido um descompasso entre os relatórios apresentados pelo Gabinete de Intervenção e aqueles elaborados por outros entes e pela sociedade civil. Além disso, no âmbito do Conselho de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (Consperj), as preocupações trazidas pela sociedade civil foram muitas vezes ignoradas.


Em terceiro lugar, segundo a ação, os gestores da intervenção não detalharam certos recursos empregados ou previstos durante a intervenção federal, tanto no que se refere ao chamado “legado” da intervenção quanto à aplicação de recursos orçamentários e avaliação quanto à eventual necessidade de nova intervenção no futuro.


O Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) constatou o mesmo problema. No relatório “A intervenção federal no Rio de Janeiro e as organizações da sociedade civil”, o Ipea apontou a falta de transparência das ações no âmbito da segurança pública e, em relação às medidas de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) - operações policiais que contavam com apoio das forças armadas - , constatou a ausência de detalhamento nos objetivos e nos procedimentos de intervenção.


Tudo isso mostra que o termo “transparência” pode atender bem à tentativa de mostrar sintonia com o Estado Democrático de Direito, mas quando utilizado sem fundamento ou sem provas, pode tornar visíveis as contradições entre a mensagem e a prática. Afinal, a transparência demanda consciência e postura atenta ao permanente escrutínio público e à necessidade de que a publicidade nos atos do Estado e de seus agentes é a regra.


Usar seletivamente a expressão não contribui para o funcionamento das instituições democráticas e aumenta o descompasso entre o real e o virtual. Quando a transparência não é lembrada na hora certa, o argumento pode parecer casuístico e desprovido de sinceridade, reforçando os temores quanto à veracidade das declarações sobre a (não) ocorrência de eleições.


Governador Gay ou BolsoGay?

Ilustração Clovis Lima


Por Sylvio da Costa Jr.


A integralidade da assistência no SUS deve ser entendida como a promessa do sistema de saúde de tratar a todos brasileiros em toda sua complexidade de saúde, uma promessa ambiciosa e corajosa dada às possibilidades do processo saúde-doença, com questões que fogem muitas das vezes do campo específico da saúde. Como escrito em nossa Constituição Federal, no Artigo nº196, a saúde deve ser garantida “mediante políticas sociais e econômicas”, haja vista as repercussões no campo da saúde de escolhas e decisões de ordem política e econômica. Assim, o SUS assegura o atendimento integral aos usuários em um cenário de constantes mudanças de perfis epidemiológicos e de adoecimento da nossa população. 


Como testemunho do enorme esforço do SUS de assegurar cuidados em saúde dos mais variados ao conjunto de nossa sociedade, no ano de 2010, eu, o autor deste texto, fui contratado pela Organização Panamericana de Saúde/Organização Mundial da Saúde (Opas/OMS) e cedido ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) para acompanhar três Comissões Intersetoriais de Saúde existentes na rotina e na dinâmica no CNS. As Comissões Intersetoriais que eu acompanhava eram: Saúde do Trabalhador (CIST), Comunicação em Saúde (CICS) e Comissão Intersetorial de Saúde da População de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CISPLGBTT). 


Cada comissão apresentava suas demandas, suas propostas, suas dinâmicas e seus desafios, mas sem duvida a CISPLGBTT foi a Comissão mais desafiadora, devido aos enormes obstáculos existentes no sistema de saúde inserido em uma sociedade machista, homofóbica e muito violenta, mas por outro lado com conselheiros de Saúde corajosos e dispostos a modificar esse cenário a partir da garantia de direitos pelo SUS. 


Em diversas oportunidades acompanhei como consultor da Opas no CNS, por exemplo, as dificuldades de acesso ao serviço de transsexualização no SUS, no qual a política existe, mas na prática há um conjunto de dificuldades de acesso aos serviços, pois muitas vezes o ordenamento jurídico não dialoga com os problemas existentes. A transsexualidade traz à tona a discussão sobre aceitação ao outro e a dificuldade de reconhecimento dos direitos de todos brasileiros. 


Presenciei diversos relatos sobre as dificuldades na aquisição de hormônios masculinos, que geralmente são hormônios anabolizantes. Dada a dificuldade de acesso a esses insumos, a venda ocorre de maneira rotineira em mercados legais com falsificações de receitas para aquisição de hormônios e até em mercados ilegais, como bocas de fumos, expondo assim homens trans a diversas possibilidades de riscos. Ou ainda a fila de espera de mais de sete anos para cirurgia de readequação sexual, ou mais ainda as dificuldades de acessar o sistema de saúde para consultas de rotina para trans e travestis. Logo, o debate não era para criação de redes paralelas de cuidados em saúde, pois as políticas devem estar incluídas no bojo do sistema, respeitando suas especificidades.


Por conseguinte, a discussão sobre a saúde população LGBTQIA+ e a integralidade do SUS aflora imediatamente a discussão ética e civilizatória sobre a garantia de direitos, em que a discriminação gera sofrimento e uma condição social desfavorável, além da falta de empatia, irmã siamesa da violência.


Isto posto, em 1º de julho de 2021 o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, do PSDB, afirma no “Programa do Bial”, da Rede Globo, que é gay e que é “um governador gay, e não um gay governador”. Na estrutura social brasileira, encharcada de preconceitos, é importante ver um governador de Estado assumindo sua homossexualidade, todavia a orientação sexual deve trazer consigo suas lutas e bandeiras. Eduardo Leite é governador de Estado, a pergunta que faço é: ele ser gay fez com que a população LGBTQIA+ ampliasse direitos durante sua gestão? Não! Ou ainda, ele foi um ator de destaque nas muitas pautas, inclusive no campo da saúde, da população LGBTQIA+? Também não!


Logo, a pauta identitária não deve sobrepor-se à pauta de projeto de país e de sociedade. Esse governador, em 20 de julho de 2020, afirmou no programa Roda Viva, da TV Cultura: “Não tenho arrependimento (do voto em Bolsonaro em 2018) porque, dadas aquelas circunstâncias, acho que seria muito ruim o retorno do PT ao poder, depois de tudo que tinha acontecido". Assim Eduardo Leite, passados dois anos da eleição de 2018, afirma que votaria novamente em Bolsonaro, um político de extrema-direita, machista, homofóbico e violento, em detrimento do outro candidato, o professor da USP e doutor em Filosofia, Fernando Haddad. Na eleição que o Governador gay não se arrepende do voto, o candidato Bolsonaro lançou como expediente eleitoral informações falsas e caluniosas, via WhatsApp, embrulhadas em preconceitos da pior natureza, como “distribuição nas escolas de kit gay para menores de 6 anos” pelo então ministro da Educação, Haddad; ou ainda que, por ordem do candidato do PT, haviam sido distribuídas nas escolas e creches de São Paulo mamadeiras em formato de pênis. Essas mentiras de baixo nível foram criticadas pelo então candidato a governador do Rio Grande do Sul na época? Não! Vale lembrar que atualmente os deputados tucanos do Rio Grande do Sul, sob forte influência do governador, votam em massa na agenda econômica e política do governo Bolsonaro no Congresso Nacional, dando sustentação ao governo de extrema-direita de Bolsonaro – como no caso da votação da privatização dos Correios e da Eletrobrás. 


Assim tudo indica que a afirmação do governador gaúcho no “Programa do Bial” não foi um ato de coragem coisa nenhuma, mas sim uma entrevista armada, em um ambiente protegido e balizado por um cálculo eleitoral para viabilizar um candidato da chamada 3ª via, ou direita tradicional. Cria-se assim um fato novo, mas desprovido de conteúdo, haja vista que, por exemplo, no campo da economia a agenda do Eduardo Leite e do PSDB é exatamente a mesma do Bolsonaro, e no campo da saúde o estado do Rio Grande do Sul, na gestão Leite, em nada avançou na pauta de gênero. De maneira pensada o governador, e seus apoiadores, fizeram o seqüestro de uma pauta importantíssima para tentar interditar o debate dentro de uma fração do campo progressista e beliscar votos de uma parte da juventude porque o governador, de modo oportunista, se declarou gay.


Além da questão identitária, é necessário levar em consideração a política por trás, caso contrário teremos um identitarismo desprovido de conteúdo que em nada vai promover ampliação de direitos. Exemplificando o oportunismo eleitoral do identitarismo desprovido de conteúdo político, o que podemos falar do golpe misógino contra uma mulher, Dilma Rousseff, orquestrado pelo PSDB de Eduardo Leite, no qual chegou-se ao ponto de apoiadores do golpe de 2016 espalharem adesivos de carro com uma montagem da ex-presidenta de pernas abertas no tanque de combustível? O governador gay foi solidário à presidenta mulher? Não, nada.


As demandas do SUS e as pautas da saúde da população LGBTQIA+ são importantes e devem ser lavadas com a seriedade que merecem e não usadas de maneira oportunista por pescadores de águas turvas como o pré-canditato tucano. Eduardo Leite não é um governador gay, como ele charmosamente coloca em uma entrevista chapa branca, mas sim BolsoGay – um gay apoiador de um governo fascista, que tem em comum com Bolsonaro o mesmo projeto de país, promotor de desigualdades.


O poder fardado

Ilustração Cristovão Villela


Por Marlucio Luna



No fim de julho, o ministro da Defesa, general Braga Netto, mandou um recado em forma de ameaça ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL): sem voto impresso, não haverá eleições em 2022. Logo surgiram temores de um golpe militar, algo inconcebível há cinco anos. O Brasil, no melhor estilo república bananeira, vive preocupado com a possibilidade de um ataque à democracia liderado pela Forças Armadas. Os fardados se atribuem – sem jamais consultar a sociedade – o papel de “senhores da ordem”. Vivemos novamente o medo de uma ditadura.


Mas por que os militares brasileiros se sentem hoje com força para fazer ameaças veladas ou explícitas à ordem democrática? A resposta é a Lei de Anistia, aprovada em 1979 e que “perdoou” os crimes cometidos pela esquerda armada durante a ditadura militar. Entretanto, ela também isentou aqueles fardados que sequestraram, torturaram, mataram, ocultaram cadáveres, fizeram atentados terroristas e perseguiram todo e qualquer cidadão que discordasse dos ditadores. Na verdade, a legislação deveria chamar-se “Lei da Autoanistia”. 


Com a Lei da Anistia, os criminosos fardados ganharam a impunidade. O sentimento de estar acima da lei contaminou as gerações posteriores do oficialato brasileiro. Isso fez com que a ideia de poder político das Forças Armadas se mantivesse latente na mentalidade dos militares tupiniquins. Após a redemocratização, ao longo das décadas, cultivou-se uma atitude quase que de subserviência aos fardados. Qualquer menção a uma possível revisão da Lei de Anistia recebia o rótulo de “revanchismo” e logo surgiam os defensores da necessidade de “manter a estabilidade da democracia”. Havia ainda quem afirmasse ingenuamente que as Forças Armadas tinham assumido um papel “profissional e de respeito à Constituição”.


Em 2008, ocorreu um grande movimento de revisão da Lei de Anistia. Pela primeira vez, houve a oportunidade política de abrir caminho para punir os responsáveis por crimes contra a humanidade – que são imprescritíveis. As condições políticas eram propícias, pois vivíamos o segundo mandato de Lula, a economia crescia e o Brasil assumia um papel de liderança no cenário internacional. Mas o que aconteceu? Lula determinou que o então ministro da Justiça, Tarso Genro, avisasse aos comandantes militares que o Executivo era contra a revisão. Foi montada uma operação para esvaziar a proposta de mudanças na lei. Medo, covardia, acordo político? O leitor escolhe a opção que mais agradar.


Hoje, os militares brasileiros ocupam seis mil cargos no (des)Governo Federal. O pessoal fardado voltou a sentir o gosto do poder político – e de todas a$ vantagen$ derivadas dele. Não importa se o (des)governo prime pela mediocridade, falta de projetos e corrupção. O importante para o alto oficialato das Forças Armadas é garantir “boquinhas” e engordar os já robustos contracheques. Também não incomoda o fato de haver militares acusados de participação em esquemas de corrupção em diversas esferas da administração federal.


Conheço alguns militares que discordam dos movimentos antidemocráticos do ministro da Defesa e até questionam o papel das Forças Armadas. Mas esses preferem calar, até para manter cargos e oportunidades profissionais. Para eles, vou usar uma expressão gaúcha que aprendi com o amigo colorado César Oliveira. Esses tais militares com senso crítico “acadelaram-se” (viraram cadelas dos poderosos). Na hora decisiva, preferem pensar apenas em seus próprios intere$$e$.


Histórico desabonador – Excetuando-se a já consagrada competência em pintar meio-fio e a tradicional concessão de medalhas e condecorações aos seus integrantes, as Forças Armadas têm pouco a mostrar de útil. Patente (com trocadilho) mesmo, há apenas a série de episódios vergonhosos – de golpes de estado a assassinato de opositores, passando pelo desprezo à democracia.


No entanto, há episódios que se destacam na longa lista de aberrações. A Guerra do Paraguai, cujas vitórias brasileiras em batalhas são cantadas em prosa e verso pela historiografia oficial, foi palco de um dos mais vergonhosos episódios envolvendo militares brasileiros: a Batalha de Acosta Ñu, em agosto de 1869. Os 20 mil militares brasileiros dizimaram a tropa de 3,5 mil paraguaios. Um detalhe explica o porquê da vergonha: o contingente inimigo era formado por crianças e adolescentes com idades de 9 a 15 anos. O massacre se estendeu a mulheres, idosos e crianças com menos de 9 anos que acompanhavam o Exército paraguaio.


Ao longo da História do Brasil, os ataques à democracia e os atos de repressão às camadas populares contaram sempre com a participação efetiva das Forças Armadas. Os fardados jamais se sentiram culpados por fazer o serviço sujo para as elites, fossem elas nacionais ou estrangeiras. O pior: em raríssimos casos foram condenados pelos crimes cometidos no “desempenho de suas funções”. Basta ver a falta de punição para os militares que assassinaram com mais de 80 tiros o músico Evaldo Santos em 2019, quando realizavam uma operação irregular no Rio de Janeiro. O caso se arrasta na Justiça Militar e não há sinal de que haverá punição para os envolvidos no crime.


Vizinhos dão exemplo – Os nossos vizinhos da América do Sul também viveram ditaduras militares sangrentas. A transição democrática seguiu o roteiro pautado pela distensão política, com aprovação de leis de anistia, porém com denúncias de crimes cometidos por fardados. A diferença é que torturadores, assassinos e sequestradores que agiam sob o manto do autoritarismo receberam castigo. 


A Argentina é um exemplo nessa área: quatro ex-presidentes (Rafael Videla, Roberto Viola, Leopoldo Galtieri e Reynaldo Bignone) e um membro da Junta Provisória que assumiu o poder após o golpe em 1976 (o almirante Emilio Massera) foram processados, julgados e condenados. Terminaram seus dias cumprindo pena. 


A série de julgamentos iniciada na primeira década do século, que resultou em 43 condenações de militares e agentes da repressão, mostrou a robustez da democracia no país, servindo de exemplo para toda a América Latina. Hoje, a sociedade argentina não teme os militares – que, por sua vez, continuam longe da política.


O Uruguai também processou, julgou e prendeu antigos hierarcas do período ditatorial. Sete militares cumprem hoje pena por assassinato, tortura, sequestro, ocultação de cadáver – crimes cometidos contra opositores da ditadura. A redemocratização do país não passou por acordos políticos que garantissem a impunidade dos fardados.


Houve ainda punições de caráter político. Em 2019, o então presidente Tabaré Vásquez, exonerou o ministro da Defesa, Jorge Menéndez; o comandante do Exército, José González; o subsecretário de Defesa, Daniel Montiel e dois integrantes do Tribunal de Honra do Exército. O crime cometido por eles: omissão no julgamento de um militar envolvido na morte do guerrilheiro tupamaro Roberto Gomensoro, em 1973. A decisão de Vázquez ocorreu em plena campanha eleitoral. Não passou pela cabeça de nenhum uruguaio que a medida poderia colocar em risco a democracia.


Integrantes da Operação Condor – uma parceria das ditaduras sul-americanas para eliminação de opositores – tentaram se esconder na Itália. Mas fracassaram em seu objetivo. Os 24 militares presos, julgados e condenados pela Justiça italiana tinham participado de execuções de presos políticos na Bolívia, no Chile, no Uruguai e no Peru. De nada adiantou atravessar o Atlântico. A impunidade não é garantida – exceto no Brasil, é claro.


Na realidade brasileira, o poder das armas ainda assusta. Há quem se sinta às portas de um golpe militar. Há ainda aqueles que minimizam a capacidade de articulação dos fardados para uma virada de mesa no jogo democrático, mas não a descartam. Não ter aproveitado a chance de, em 2018, rever a Lei de Anistia e deixar de colocar os Ustras da vida na cadeia: eis o grande erro. Agora passamos o dia vendo generais, brigadeiros e almirantes querendo ditar as regras sobre as eleições de 2022. Eles têm, desde sempre, certeza da impunidade.