Por Mario Lucio Machado Melo Junior
É impressionante a quantidade de mentiras, invenções, preconceitos, fábulas, interpretações desconexas e inverossímeis que me motivaram a escrever esse artigo para trazer o significado legal, político e social do processo de reforma agrária no Brasil, sem emitir juízo pessoal sobre o assunto, pelo menos nesse artigo.
Histórico
O governo de João Goulart, também conhecido como Jango, ocorreu entre 1961 e 1964, sendo marcado por forte ebulição política. Nesse governo, dentre as principais reivindicações populares estavam as “Reformas de Base”, entre elas as reformas agrária, educacional, eleitoral, tributária, bancária e urbana. Contudo, a que mais causou mobilização social para ser implementada foi a reforma agrária. A radicalização foi inevitável entre as Ligas Camponesas e os ruralistas do Congresso Nacional.
Certamente a propaganda e a contrapropaganda dessa época criaram a falta de entendimento entre as pessoas, o que se estende até hoje. Mesmo assim, o propósito dessas propostas foi esmiuçado e amplamente debatido no meio da sociedade, até a queda do governo de João Goulart, o qual sofreu um golpe, sendo substituído pelo regime militar em 1964, gestão do marechal Castelo Branco — que promulgou a Lei Federal nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, que dispõe sobre o Estatuto da Terra.
Constituição Federal
Hoje, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, dedica o Capítulo III – Da política agrícola e fundiária da reforma agrária e define:
Que compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida na Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993;
As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro;
São isentas de impostos federais, estaduais e municipais as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária;
Não podem ser desapropriadas para fins de reforma agrária: a) a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; b) a propriedade produtiva.
Os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos, depois de emitidos.
A Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, regulamenta e disciplina disposições relativas à reforma agrária, previstas no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal de 1988. Resumidamente, a Constituição e essa Lei desmitificam as seguintes questões sobre a reforma agrária:
Existem critérios bem definidos para a escolha de terras para fins da reforma agrária;
A terra e as benfeitorias desapropriadas são pagas a preço de mercado;
Os custos dessa desapropriação e outros feitos pela União são rateados entre os beneficiários que recebem títulos provisórios até a quitação desses investimentos;
Se, por algum motivo, o beneficiário sai da área a que foi destinado, sem comunicar ao Incra, não poderá ser beneficiado em nenhuma outra área no Brasil e a pessoa que ficou em seu lugar é cadastrada no banco de candidatos, se tiver perfil para isso. O lote é reintegrado judicialmente ao Incra, por reintegração de posse, e destinado a outra família cadastrada, que assumirá os custos do assentamento.
Função social
Assim, fica bem claro que o dono de terras que não esteja cumprindo sua função social, ou seja, produzindo, não é prejudicado financeiramente. O imóvel não é tomado, ele é pago a preço de mercado. O beneficiário é selecionado, hoje, criteriosamente, pois suas informações pessoais são cruzadas com vários bancos de dados de instituições oficiais dos três poderes da República, em todo o território nacional. O lote da reforma agrária não é dado, tem um custo que é assumido pelo beneficiário. Se ele sair do assentamento original sem comunicar ao Incra, é automaticamente desqualificado do processo, não sendo mais possível ser beneficiário.
O lote remanescente é imediatamente reintegrado, judicialmente ao Incra e destinado à outra família cadastrada e selecionada, não havendo forma legal de compra ou venda particular de terras destinadas ao processo de reforma agrária. Quem souber de alguma forma de ocorrência de irregularidade pode e deve acionar o Ministério Público, que certamente tomará as medidas legais cabíveis de correção.
Quando jovens, filhos de pequenos agricultores, resolvem se casar, constituindo suas próprias famílias e querem continuar na atividade produtiva agropecuária, procuram se estabelecer em terras, não encontram espaço para iniciar sua atividade, pois existe uma especulação do valor das terras, principalmente as que não cumprem sua função social. Isso se aplica também a trabalhadores rurais ou mesmo outras pessoas que aspiram entrar na pequena produção rural familiar. Sem a reforma agrária, mesmo essa imposta pelas elites agrárias, é impossível começar uma atividade produtiva, de megarrisco, imobilizando inicialmente um capital de alto valor em terras, ferramentas, equipamentos, insumos e máquinas, além do capital anual de custeio das safras. Isso gera uma profunda insatisfação de amplos setores da sociedade e insegurança política e social. Mesmo com essa reforma agrária legalizada e “aceita” pela bancada ruralista, ela anda em passos de tartaruga, quando anda, pois os sucessivos governos não viabilizam os instrumentos operacionais, institucionais e financeiros para realizá-la de forma ampla e massiva.
Produtividade
Um número significativo de assentamentos — conquistados pelas entidades organizadas que representam os que lutam pela reforma agrária — se emanciparam com produção e produtividade espantosos. Existem cooperativas e associações produzindo alimentos saudáveis e outros insumos agrícolas, proporcionando rendimentos líquido muito superior ao capital especulativo das bolsas de valor a seus filiados ou outros pequenos agricultores familiares no entorno de suas regiões produtivas.
Por que então existe tanta oposição da grande imprensa, da bancada ruralista do congresso, dos banqueiros, e de setores conservadores da sociedade ao processo de uma reforma agrária ampla no Brasil?
Nos próximos artigos apresentarei as razões pelas quais defendo uma ampla reforma agrária, os modelos produtivos realizados no Brasil e seus fundamentos tecnológicos e filosóficos. Falarei também sobre o sistema de comercialização e armazenamento globalizado e as políticas públicas reivindicadas pelos agricultores familiares, bem como sobre a necessidade de uma estratégia de segurança alimentar planejada nacionalmente.
Graduado pela UFRRJ em Engenharia Agronômica, modalidade fitotecnia, em 1981, durante a graduação foi monitor da disciplina de fertilidade dos solos e líder estudantil na agronomia. Fez pós-graduação em engenharia de irrigação e drenagem em 2002 na UFRRJ. É extensionista rural desde 1982 e foi requisitado para exercer funções públicas na Secretaria de Estado de Planejamento e Controle em duas gestões, Diretor Técnico e Presidente da empresa onde trabalha e, também foi Superintendente do Incra no Estado do Rio de Janeiro no período de 2004 a 2009.