quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Desmistificando a reforma agrária

 Por  Mario Lucio Machado Melo Junior

É impressionante a quantidade de mentiras, invenções, preconceitos, fábulas, interpretações desconexas e inverossímeis que me motivaram a escrever esse artigo para trazer o significado legal, político e social do processo de reforma agrária no Brasil, sem emitir juízo pessoal sobre o assunto, pelo menos nesse artigo.


Histórico

O governo de João Goulart, também conhecido como Jango, ocorreu entre 1961 e 1964, sendo marcado por forte ebulição política. Nesse governo, dentre as principais reivindicações populares estavam as “Reformas de Base”, entre elas as reformas agrária, educacional, eleitoral, tributária, bancária e urbana. Contudo, a que mais causou mobilização social para ser implementada foi a reforma agrária. A radicalização foi inevitável entre as Ligas Camponesas e os ruralistas do Congresso Nacional. 

Certamente a propaganda e a contrapropaganda dessa época criaram a falta de entendimento entre as pessoas, o que se estende até hoje. Mesmo assim, o propósito dessas propostas foi esmiuçado e amplamente debatido no meio da sociedade, até a queda do governo de João Goulart, o qual sofreu um golpe, sendo substituído pelo regime militar em 1964, gestão do marechal Castelo Branco — que promulgou a Lei Federal nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, que dispõe sobre o Estatuto da Terra.


Constituição Federal

Hoje, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, dedica o Capítulo III – Da política agrícola e fundiária da reforma agrária e define:

Que compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida na Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993;

As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro;

São isentas de impostos federais, estaduais e municipais as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária;

Não podem ser desapropriadas para fins de reforma agrária: a) a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; b) a propriedade produtiva.

Os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos, depois de emitidos.

A Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, regulamenta e disciplina disposições relativas à reforma agrária, previstas no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal de 1988. Resumidamente, a Constituição e essa Lei desmitificam as seguintes questões sobre a reforma agrária:


  1. Existem critérios bem definidos para a escolha de terras para fins da reforma agrária;

  2. A terra e as benfeitorias desapropriadas são pagas a preço de mercado;

  3. Os custos dessa desapropriação e outros feitos pela União são rateados entre os beneficiários que recebem títulos provisórios até a quitação desses investimentos;

  4. Se, por algum motivo, o beneficiário sai da área a que foi destinado, sem comunicar ao Incra, não poderá ser beneficiado em nenhuma outra área no Brasil e a pessoa que ficou em seu lugar é cadastrada no banco de candidatos, se tiver perfil para isso. O lote é reintegrado judicialmente ao Incra, por reintegração de posse, e destinado a outra família cadastrada, que assumirá os custos do assentamento.


Função social

Assim, fica bem claro que o dono de terras que não esteja cumprindo sua função social, ou seja, produzindo, não é prejudicado financeiramente. O imóvel não é tomado, ele é pago a preço de mercado. O beneficiário é selecionado, hoje, criteriosamente, pois suas informações pessoais são cruzadas com vários bancos de dados de instituições oficiais dos três poderes da República, em todo o território nacional. O lote da reforma agrária não é dado, tem um custo que é assumido pelo beneficiário. Se ele sair do assentamento original sem comunicar ao Incra, é automaticamente desqualificado do processo, não sendo mais possível ser beneficiário. 

O lote remanescente é imediatamente reintegrado, judicialmente ao Incra e destinado à outra família cadastrada e selecionada, não havendo forma legal de compra ou venda particular de terras destinadas ao processo de reforma agrária. Quem souber de alguma forma de ocorrência de irregularidade pode e deve acionar o Ministério Público, que certamente tomará as medidas legais cabíveis de correção.

Quando jovens, filhos de pequenos agricultores, resolvem se casar, constituindo suas próprias famílias e querem continuar na atividade produtiva agropecuária, procuram se estabelecer em terras, não encontram espaço para iniciar sua atividade, pois existe uma especulação do valor das terras, principalmente as que não cumprem sua função social. Isso se aplica também a trabalhadores rurais ou mesmo outras pessoas que aspiram entrar na pequena produção rural familiar. Sem a reforma agrária, mesmo essa imposta pelas elites agrárias, é impossível começar uma atividade produtiva, de megarrisco, imobilizando inicialmente um capital de alto valor em terras, ferramentas, equipamentos, insumos e máquinas, além do capital anual de custeio das safras. Isso gera uma profunda insatisfação de amplos setores da sociedade e insegurança política e social. Mesmo com essa reforma agrária legalizada e “aceita” pela bancada ruralista, ela anda em passos de tartaruga, quando anda, pois os sucessivos governos não viabilizam os instrumentos operacionais, institucionais e financeiros para realizá-la de forma ampla e massiva. 


Produtividade

Um número significativo de assentamentos — conquistados pelas entidades organizadas que representam os que lutam pela reforma agrária — se emanciparam com produção e produtividade espantosos. Existem cooperativas e associações produzindo alimentos saudáveis e outros insumos agrícolas, proporcionando rendimentos líquido muito superior ao capital especulativo das bolsas de valor a seus filiados ou outros pequenos agricultores familiares no entorno de suas regiões produtivas. 

Por que então existe tanta oposição da grande imprensa, da bancada ruralista do congresso, dos banqueiros, e de setores conservadores da sociedade ao processo de uma reforma agrária ampla no Brasil?

Nos próximos artigos apresentarei as razões pelas quais defendo uma ampla reforma agrária, os modelos produtivos realizados no Brasil e seus fundamentos tecnológicos e filosóficos. Falarei também sobre o sistema de comercialização e armazenamento globalizado e as políticas públicas reivindicadas pelos agricultores familiares, bem como sobre a necessidade de uma estratégia de segurança alimentar planejada nacionalmente.


Graduado pela UFRRJ em Engenharia Agronômica, modalidade fitotecnia, em 1981, durante a graduação foi monitor da disciplina de fertilidade dos solos e líder estudantil na agronomia. Fez pós-graduação em engenharia de irrigação e drenagem em 2002 na UFRRJ. É extensionista rural desde 1982 e foi requisitado para exercer funções públicas na Secretaria de Estado de Planejamento e Controle em duas gestões, Diretor Técnico e Presidente da empresa onde trabalha e, também foi Superintendente do Incra no Estado do Rio de Janeiro no período de 2004 a 2009.


terça-feira, 9 de novembro de 2021

Dignidade menstrual: uma urgência para o Brasil

 

Ilustração Carol Cospe fogo

Por Marília Arraes* 


Uma em cada quatro adolescentes brasileiras não tem um pacote de absorventes à mão quando a menstruação chega. Quase 20% não têm acesso à água em casa e mais de 200 mil estudam em escolas com banheiros sem condições de uso. Garantir a dignidade menstrual para meninas e mulheres brasileiras sempre foi uma das minhas preocupações. 

E foi por isso que desde que cheguei à Câmara Federal, em 2019, iniciei uma série de ações, pesquisas e articulações que culminaram com a uma proposta que nos levou a criação de um programa nacional que garante o acesso a produtos de higiene menstrual e ações de educação e divulgação de informações sobre a saúde menstrual.

Em 2019, apresentamos o primeiro projeto com foco no tema. Na ocasião, focamos na distribuição gratuita de absorventes para estudantes, em situação de vulnerabilidade, de escolas públicas de todo o país. Na sequência, outras dezenas de propostas se somaram à proposição inicial. 

No dia 14 de setembro deste ano, o projeto - que já havia sido aprovado na Câmara dos Deputados – foi votado e aprovado no Senado. Estava criado o Programa Nacional de Promoção e Proteção à Saúde Menstrual, uma iniciativa inédita, que tem como objetivo central garantir a saúde e a dignidade para milhares de meninas e mulheres.

Tabu e desinformação

O programa atenderá, inicialmente, estudantes de baixa renda matriculadas em escolas públicas; mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema; presidiárias e apreendidas, recolhidas em unidades do sistema penal e pacientes internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa.

A menstruação é um processo natural do ciclo reprodutivo feminino, começando na puberdade — em média, aos 13 anos — e encerrando por volta dos 50. Apesar de ser algo rotineiro, ocorrendo uma vez por mês (caso não haja fecundação), o assunto ainda é tabu para muitas pessoas, cercado de desinformação e falta de acesso a absorventes e outros itens de higiene.

O relatório Pobreza menstrual no Brasil: desigualdades e violações de direitos, publicado recentemente pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), evidencia a urgência em políticas públicas de saúde para zelar pela dignidade humana de meninas e mulheres que sofrem cotidianamente com a escassez de condições adequadas para o período menstrual.

Falta de acesso e infraestrutura

Pobreza menstrual é uma expressão utilizada para denominar a falta de acesso a produtos de higiene menstrual, de infraestrutura sanitária adequada em casa e na escola e de conhecimentos necessários para esse período do ciclo reprodutivo. As brasileiras que mais sofrem com essa situação são as que vivem em condições de pobreza e vulnerabilidade em ambientes rurais ou urbanos.

 O levantamento analisou dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de meninas entre 10 e 19 anos por meio da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS 2013), da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE 2015) e da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF 2017-2018), totalizando 15,5 milhões de brasileiras.

 Em se tratando dos domicílios, cerca de 713 mil meninas vivem sem acesso a banheiros, 900 mil não têm acesso a água canalizada e 6,5 milhões não possuem redes de esgoto em casa. Quando o assunto é infraestrutura escolar, 321 mil alunas estudam em estabelecimentos que não possuem banheiros em condições de uso. Mais de 4 milhões de meninas não possuem à sua disposição algum requisito mínimo de higiene, como papel, água ou sabão.

Problemas de saúde e evasão escolar

Quase 50% das garotas analisadas enfrentam, ainda, algum grau de insegurança alimentar. Cerca de 1 milhão delas vivem em situação de precariedade alimentar grave. Nesses casos, as famílias priorizam o consumo de alimentos em detrimento dos gastos com absorventes e outros produtos de higiene menstrual.

 Quando não há o acesso adequado a esses produtos, muitas mulheres improvisam permanecendo com o mesmo absorvente por muitas horas ou utilizando pedaços de pano, roupas velhas, jornal e até miolo de pão, resultando em problemas que variam desde alergia e candidíase até a síndrome do choque tóxico potencialmente fatal. A saúde emocional também é outro problema sério, ocasionando um aumento de evasão escolar.

 A pobreza menstrual é uma triste constatação de negligência por parte das autoridades para garantia mínima da dignidade feminina. É urgente investimentos em infraestrutura e acesso aos produtos de menstrual. Os absorventes poderiam ser disponibilizados em postos de saúde, por exemplo, assim como já é feito com preservativos e medicamentos — e a taxação de impostos poderia ser reduzida para baratear esses produtos. O saneamento básico em escolas deveria ser uma obrigação, assim como nos lares brasileiros. 

Os dados apresentados demonstram a necessidade prioritária de políticas públicas para reverter o problema e é isso que estamos fazendo e continuaremos a fazer!



*Marília Arraes é deputada federal (PT-PE) em primeiro mandato e a única mulher da bancada pernambucana na Câmara.  Antes foi por três vezes vereadora do Recife, onde iniciou sua atuação política no movimento estudantil e de juventude. É advogada formada pela Universidade Federal de Pernambuco e neta do ex-governador Miguel Arraes. 

*Carol Andrade é conhecida como Carol Cospe Fogo, trabalhou em agências de publicidade como diretora de arte e ilustradora. Cartunista e chargista. É a primeira mulher a receber o prêmio Angelo Agostini como melhor cartunista/caricaturista do Brasil em 2019. Colaboradora do coletivo Pavio Curto

Por que devemos nos envolver com as mudanças climáticas e ficar de olho na realização da COP 26?



1ª parte

Por Angelo José Rodrigues Lima*

Ilustração Carol Cospe Fogo


Para iniciar a conversa, O que são mudanças climáticas? 

A conversa sobre mudanças climáticas se inicia quando o matemático francês Jean Baptiste Joseph Fourier (1768-1830) foi o primeiro a considerar a atmosfera da Terra uma grande estufa, o que criava um ambiente favorável à vida de plantas e animais. Ele afirmou que os gases atmosféricos absorvem energia (calor), elevando a temperatura da superfície da Terra.

O efeito estufa é um fenômeno natural que faz com que a temperatura da superfície da Terra seja favorável à existência de vida no planeta. Se ele não existisse, a temperatura média da superfície da Terra seria -18°C, ao invés dos 15°C que temos hoje, ou seja, 33°C menor.

Para entender o efeito estufa, pense em um ônibus parado sob a luz do sol. Os raios chegam como radiação solar visível, passam pelos vidros e aquecem o interior (calor). Esse calor (radiação infravermelha) procura sair pelos vidros, mas tem dificuldade de passar por eles. Ou seja, uma parte fica presa dentro do ônibus, aquecendo-o.

O mesmo ocorre com a atmosfera da Terra. Alguns gases, como vapor d’água e gás carbônico (CO2), funcionam como o vidro do ônibus, deixando entrar a radiação ultravioleta, mas dificultando o retorno do calor para o espaço.

Quando aumenta a concentração de gases na atmosfera (por exemplo, do gás carbônico), o efeito estufa fica mais intenso e, portanto, fica mais difícil o calor ir para o espaço. Essa diferença causa o aquecimento da baixa atmosfera, elevando a temperatura média da Terra e causando mudanças climáticas, que são alterações significativas do clima que estão acontecendo em todo o planeta que se relaciona com o aquecimento global.

O aquecimento global é o aumento da temperatura média dos oceanos e da camada de ar próxima à superfície da Terra, que pode ser consequência de causas naturais e atividades humanas. Isto se deve principalmente ao aumento das emissões de gases na atmosfera.

Mas o aquecimento da terra não seria apenas parte de um ciclo, algo natural? 

Sim, é verdade que a terra já passou por vários ciclos de temperaturas. Porém o aquecimento que está acontecendo agora é inédito. Tanto as temperaturas estão ficando altas, quanto a velocidade das mudanças da temperatura.


Tela de computador com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente

Interface gráfica do usuário

Descrição gerada automaticamente

Figura 1: Dados da mudança de temperatura média no planeta desde 1880 até 2019.


Qual a leitura da figura? 

A temperatura média da Terra foi totalmente alterada. Em 2019, já se dizia que haveria 70% de chance de 2020 ser o ano mais quente de todos os tempos. E isto foi confirmado em 2020.

Mas o que é COP? Qual o significado desta sigla? Qual a importância das COPs?

A história da abordagem se inicia principalmente com a realização de conferências que trataram de discutir sobre acordos internacionais para enfrentar as mudanças climáticas.

A primeira reunião que apresentou em suas negociações rodadas específicas sobre
as alterações climáticas aconteceu em 1992 durante a Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro (ECO-92), da qual resultou o
texto da Convenção do Clima, assinado e ratificado por 175 países, reconhecendo a
necessidade de um esforço global para o enfrentamento das questões climáticas. Com a entrada em vigor da referida Convenção, os representantes dos diferentes países passaram a se reunir anualmente para discutir a sua implementação, estas reuniões são chamadas de Conferências das Partes (COPs.)

Conferência das Partes (COP – Conference of the Parties) é o órgão supremo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, adotada em 1992. É uma associação de todos os países membros (ou “Partes”) signatários da Convenção, que, após sua ratificação em 1994, passaram a se reunir anualmente a partir de 1995, por um período de duas semanas, para avaliar a situação das mudanças climáticas no planeta e propor mecanismos a fim de garantir a efetividade da Convenção.

Portanto, já foram realizadas 25 Conferências das Partes (COPs) e agora em 2021 acontecerá a 26ª Conferência das Partes, que será realizada em Glasgow, na Escócia.

Como parte do preparativo destas Conferências, o IPCC prepara relatórios para discussão entre seus membros, mas o que é o IPCC?

Criado em 1988 pela Organização Mundial de Meteorologia (WMO) e pelo Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas (UNEP), o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) é um órgão científico sob os cuidados das Nações Unidas (ONU). Ele não busca conduzir pesquisas ou coletar dados, mas analisar as informações científicas, técnicas e socioeconômicas mundiais, para compreender as mudanças climáticas, divulgando de tempos em tempos um relatório sobre o tema.

estrutura do IPCC é dividida em cinco partes. Enquanto as principais decisões são tomadas por uma assembleia de representantes dos governos, as revisões e relatórios do IPCC são efetuados por três grupos de trabalho. O “Grupo de Trabalho I” é responsável pela “base física e científica da mudança do clima”; o “Grupo de Trabalho II” se ocupa do “impacto da mudança de clima, adaptação e vulnerabilidade”; e o “Grupo de Trabalho III” analisa a “mitigação das mudanças climáticas”. Além desses três grupos, há ainda a “Força Tarefa de Inventários Nacionais de Gases de Efeito Estufa”, que desenvolve e define uma metodologia para calcular e reportar a emissão dos gases de efeito estufa.

Como o IPCC colabora com as Conferências entre as Partes?

Por meio de suas avaliações, o IPCC determina o estado do conhecimento sobre a mudança do clima, identifica onde há consenso na comunidade científica, e em que áreas mais pesquisas são necessárias. Os relatórios resultantes da avaliação do IPCC devem ser neutros, relevantes para a política, e não devem ser prescritivos. Além disso, as avaliações constituem insumos fundamentais para as negociações internacionais que visam ao enfrentamento da mudança do clima.

Os Relatórios de Avaliação do IPCC consistem nas contribuições de três Grupos de Trabalho e em um Relatório de Síntese que integra essas contribuições e quaisquer relatórios especiais preparados durante o mesmo ciclo de avaliação. Os Relatórios Especiais do IPCC tratam de questões específicas acordadas entre os países membros, e os Relatórios de Metodologia fornecem diretrizes práticas para a preparação de inventários de gases de efeito estufa. O IPCC já produziu pelo menos seis grandes relatórios.

Em seu mais recente relatório, publicado há dois meses, o IPCC, indicou que, no atual ritmo, em no máximo duas décadas será atingido o patamar de 1,5ºC de aquecimento.

E é neste contexto que os líderes mundiais voltam a se reunir a partir de 31 de outubro em Glasgow, na Escócia, para a 26ª Conferência sobre Mudanças Climáticas da ONU (COP-26), onde discutirão o fato de que o Planeta está em um ponto crítico em relação às mudanças climáticas, que estamos muito atrás do cumprimento do Acordo de Paris e em um caminho que pode ser catastrófico se ações drásticas não forem tomadas para parar com o aquecimento global.

Nesta primeira parte do artigo, tentamos mostrar como é o funcionamento da COP e o que gira em torno dela. Na segunda parte do artigo, na próxima edição do Pavio Curto, falaremos dos efeitos das mudanças climáticas e como isso vem ampliando os desafios para garantirmos qualidade de vida para toda a população do mundo.

* Doutor em Geografia em Análise Ambiental e Dinâmica Territorial (UNICAMP/2018), Mestre em Ciências de Planejamento Energético, área de concentração em Planejamento Ambiental (COPPE/UFRJ/2000); Especialista em Instrumentos Jurídicos, Econômicos e Institucionais para o Gerenciamento de Recursos Hídricos (UFPB/2000) e Biólogo (UFRRJ/1988). Atualmente ocupa o cargo de Secretário Executivo do Observatório da Governança das Águas.

* Carol Andrade é conhecida como Carol Cospe Fogo, trabalhou em agências de publicidade como diretora de arte e ilustradora. Chargista e cartunista, é a primeira mulher a receber o prêmio Angelo Agostini como melhor cartunista/caricaturista do Brasil em 2019.Colaboradora do coletivo Pavio Curto

Milton Santos - Intelectual da Periferia, Pensador do Mundo


 Ilustração Cacinho 

Por Jorge Luiz Barbosa*

Milton Santos nasceu no interior da Bahia, em Brotas de Macaúbas, em 3 de maio de 1926. Educado pelos pais, professores do ensino básico, Milton Santos segue para Salvador ainda muito moço para completar seus estudos em um ginásio-internato. Ali, já começou a lecionar, aos 15 anos de idade, para os alunos mais novos. 

Seu interesse dedicado à geografia, à filosofia e à história já começaria a formar sua cultura científica, social e humanística.  Formou-se em Direito, em 1948, na UFBA, formação/ profissão praticamente exclusiva para famílias brancas, abastadas e de mando na sociedade baiana e brasileira. 

O advogado estava apenas no diploma. O caminho seguido era mesmo o de professor de geografia, consolidado em 1958, com a sua Tese de Doutorado O Centro da Cidade de Salvador, defendida na Universidade de Estrasburgo (França).  Sua habilidade para ensinar foi sempre acompanhada da qualidade de sua escrita. Daí ter combinado o exercício de redator do jornal A Tarde com o de docente de geografia humana da Universidade Católica de Salvador e da Universidade Federal Bahia, até ser preso e exilado com o Golpe Civil-Militar em 1964. 

Crítica ao capitalismo

O exílio, com seus sofrimentos de solidão e de imposição de ausências, fez Milton Santos viver em desassossego. Morar em cidades diferentes (Paris, Bordeaux Toulouse, Nova York, Toronto, Lima, Dar-es-Salaam, Caracas) para ensinar em universidades diferentes, vivendo situações instáveis de trabalho, acabaram por forjar o intelectual e cidadão cada vez mais atento, ousado e profundamente crítico às condições sociais vividas em geografia plurais. 

Seus livros As cidades do Terceiro Mundo e o Espaço Dividido: os dois circuitos da economia nos países dos subdesenvolvidos — publicados em 1971 e 1975, respectivamente, em francês e inglês, originados no nomadismo — são demonstrativos da consolidação de um intelectual que afina a leitura do Brasil e da América Latina para entender o mundo.  

Sua construção intelectual defendia um território de fala e de escuta do conhecimento tão bem expressa na obra ético-política O Trabalho do Geógrafo nos Países do Terceiro Mundo. Intelectual do mundo fazendo da periferia a centralidade da crítica ao capitalismo. 

Milton Santos retorna ao Brasil no fim dos anos de 1970 (inclusive para que seu filho Rafael nascesse baiano). Volta a lecionar nas universidades brasileiras (UFRJ, USP e UFBA, onde recupera sua cátedra interrompida), trazendo uma bagagem de livros e artigos publicados em diversos idiomas. Todavia, seu olhar para mundo e para Brasil torna-se cada vez mais apurado, sensível e inventivo. 

Globalização

Milton Santos revoluciona a geografia brasileira com o seu livro Por uma Geografia Nova (1978) e daqui atiça reflexões originais para a geografia mundial (recebeu, em 1994, o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud; além dos títulos de doutor honoris causa em mais de 20 universidades pelo mundo ao longo de sua carreira). Seus estudos, pesquisas e ensaios se multiplicam em livros, artigos (inclusive em jornais) e conferências. 

Seu empenho em compreender as relações sociais, os meios técnicos e a produção do espaço geográfico revelam-se em seus mais recentes trabalhos Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional (1994), Da totalidade ao lugar (1996), Metamorfose do espaço habitado (1997), que desembocam na sua obra maior: A Natureza do Espaço (1996), no qual buscou “a criação de uma teoria geral do espaço humano como uma contribuição da geografia à reconstrução da teoria social“.

Em 2000, publica Por uma outra globalização, do pensamento único à consciência universal. Pensador da Periferia colocando o mundo sob a crítica à globalização: “o estágio atual da globalização está produzindo mais desigualdades (...) crescem o desemprego, a pobreza, a fome a insegurança do cotidiano, num mundo que se fragmenta e onde se ampliam as fraturas sociais”.

Herança escravocrata

O debate ardorosamente crítico da globalização não deixa em segundo plano as profundas contradições da cidadania mutilada em nosso país: “O modelo cívico brasileiro é herdado da escravidão, tanto o modelo cívico cultural como o modelo cívico político. A escravidão marcou o território, marcou os espíritos e marca até hoje as relações sociais. “

  A coragem crítica esteve sempre envolvida com a criação de sínteses para desvelamento da sociedade e seu espaço produzido. São referenciais importantes os conceitos de formação socioespacial, território usado, espaço como sistema de objetos e ações, meio técnico científico-informacional que se envolvem decisivamente com as questões relativas à cidadania, ao direito e à justiça em seus escritos publicados e falas públicas.  E assim alimentava sua convocação às utopias: “O mundo é formado não apenas pelo que já existe, mas pelo que pode efetivamente existir. “

A crença nas possibilidades da mudança estava depositada nos lentos, justamente homens e mulheres que viviam seus territórios comuns, suas esperanças compartilhadas, suas lutas cotidianas por direitos.  Favelas e periferias ganhavam o centro do debate do legado intelectual, ético e político de Milton Santos. 

 

“Ser negro no Brasil é, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado.”

“O poder da geografia é dado pela sua capacidade de entender a realidade em que vivemos.”

“A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une.”

Milton Santos

 

* Professor Titular de Geografia da UFF/RJ; fundador do Observatório de Favelas e do Instituto Maria e João Aleixo

* Cacinho é formado pela Faculdade de Cinema e TV da Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO/ Juiz de Fora, em 2006, foi responsável pelo Núcleo de Animação da Groia Filmes, até o ano seguinte, quando abriu sua própria produtora, a AGente QUE FEZ – ANIMAÇÕES, também em Juiz de Fora/MG, tem mais de 20 curtas metragens e muitos prêmios em festivais de cinema e animação. Ministra oficinas e cursos de animação em escolas, universidades, clubes e festivais de cinema e vídeo. Foi chargista do jornal impresso TRIBUNA DE MINAS, durante o ano de 2018. Em 2019, funda em sociedade com o chargista André Ribeiro a revista digital DUAS BANDAS E UM CUJUNTINHO, que é uma homenagem a extinta revista BUNDAS do Ziraldo e em 2020 junto com o Coletivo PAVIO CURTO do qual é coordenador, iniciou os trabalhos de charges, caricaturas, ilustrações e animações para a revista digital de mesmo nome.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Um ensaio crítico após o filme Marighella

 Por Eduardo Alves*


O filme Marighella (diretor Wagner Moura), lançado em 2019, tem a envergadura de um filme biográfico. Não se trata de uma fácil biografia, pois Carlos foi uma pessoa que assumiu conscientemente o lugar social e histórico que ocupava no capitalismo. Foi um ser humano que se destacou como estudante, ativista, poeta, revolucionário, guerrilheiro, enfim, alguém que poderia ter muitos filmes com aspectos distintos de suas múltiplas contribuições. Livros, como Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo (de Mário Magalhães), existiram como suporte na vida e nos ensinamentos de quem abraçou o BEM VIVER em todas as dimensões humanas. 

Muito chamaram a atenção, no filme, o contexto e o texto. O filme veio em um momento muito adequado e tratou com impulsos críticos o que foi a ditadura, operada diretamente pelos militares, mas planejada nos cadernos dos civis capitalistas que atuavam no Estado e que se assumiam donos do COMUM apropriado.

Os donos do poder — que se apropriam do comum para a obtenção do lucro e fazem vulto de shows, narrativas e mentiras, com proibições para as condições de subsistência e de existência da maioria das pessoas, com o controle do “saber” — apoiaram as ações com uniformes militares à frente. 

Bem viver

Marighella era poeta, criativo, comprometido com a vida e se dedicou à verdade e ao compromisso com o BEM VIVER. Para ele, já cedo, a escolha evidente pelo Partido Comunista, ainda do Brasil, era, em seu tempo, a maior demonstração do reconhecimento sócio-histórico e de sua compreensiva escolha como sujeito político em favor da vida, da liberdade e da democracia em todas as dimensões. 

Portanto, não há dúvidas em afirmar que o filme foi bem-vindo, com um personagem que não foi persona em vida e que existiu fazendo com que sua existência atingisse raios maiores que o limite de seu corpo. O que viveu Marighella em nossa história, sua posição crítica na formação social brasileira profundamente desigual e sua dedicação de organização, acolhimento, formação e luta por outra organização das pessoas na história e na economia são elementos que precisam ser conhecidos. Principalmente pelas pessoas brasileiras, mesmo para as que supostamente sabem, mas que não sabem, pois a maioria das pessoas no Brasil é impedida de, ao menos, ter conhecimento da existência de pessoas como Marighella. 

Nesse sentido, o filme muito contribuiu e traz para a cena da vida e dos ensinamentos o que nunca deveriam sair. Não seria possível, portanto, iniciar sem afirmar que o filme foi bem-vindo para impulsos de uma organização coletiva que preze pela inteligência e que conquiste e assegure o viver em todos os sentidos e dimensões.

Dominicanos

No texto de vida de Marighella, que foi cravado no contexto do capitalismo brasileiro, entre vários ensinamentos, muito se pode aprender sobre o papel dos freis dominicanos frente à ditadura militar (vale sempre lembrar que também civil) vivida diretamente pelas pessoas do Brasil, a partir de 1964. Impactos fortes sobre: de um lado os que buscavam revolucionar as bases da organização social capitalista e, de outro, os grupos sociais que produziram a guerra contra aqueles, impondo a ditadura aos que resistiram, lutaram contra e se organizaram para impedir e superar tal absurdo humano. Vale lembrar alguns ensinamentos como em Batismo de sangue (o livro) de Frei Beto e as importantes falas de Frei Oswaldo no lançamento do filme Batismo de Sangue

Frei Oswaldo era o dominicano que iniciou a ponte entre Marighella e os frades. Foi enviado para a Europa, pois seus superiores avaliaram que sua exposição era muito ampla e exigia cuidados necessários. Mas nos dias atuais, esse mesmo frei, que viveu com Tito o martírio de seu suicídio, nos ensina que a organização de enfrentamento à ditadura não teve fim no contexto desse tempo de terror. 

Afirma com disposição e entusiasmo que, apesar do período da ditadura iniciada formalmente em 1964 ter sido “traumático para os dominicanos envolvidos e para a Ordem em seu conjunto”, nos dias atuais estão espalhados nos vários cantos do país e estão no tempo do agora envolvidos com diversas organizações religiosas e humanitárias com ações de combate ao trabalho escravo, defesa dos direitos indígenas, das mulheres e dos presidiários, dentre várias outras ações humanitárias. 

O PCB — ainda Partido Comunista do Brasil quando Marighella se filiou — já havia alterado o nome quando a ditadura explícita é deflagrada em 1964, o que foi elemento das múltiplas discordâncias que geraram novas siglas organizativas. No filme só aparecem a ALN e o MR8, mas já se poderia falar de Polop, POC, PCBR, entre outras, gestadas ou em gestação. E, certamente, influenciaram os contornos de Marighella na política, principalmente porque há uma pontinha do Araguaia, no qual o grande conhecido foi o PCdoB, pois a ALN fora antes dizimada pelas tropas da ditadura.

O autor desses escritos nasceu um ano antes do dia em que Marighella foi assassinado - por obra da emboscada articulada pelo delegado Fleury. Essa realidade não passava ou sequer poderia se alojar na consciência de quem vos escreve, que, com apenas um ano de idade naquele contexto, nada imaginava, pensava ou sabia sobre a situação política vigente. 

Sentia, apenas tangencialmente, as sombras da história, pois isento de influência da ascendência direta, de pai e de mãe — que não tinham conhecimento para além das propagandas mentirosas —, não se tinha muito espaço para tais sentimentos. Elementos singulares que carrego na história e que se desenvolveram como potência crítica no solo fértil da construção coletiva diante da materialidade concreta da história e da análise objetiva desta, como enfrentamento da mentira. Nela assumi, desde muito jovem, o lugar da aproximação com o verdadeiro, sob a correspondência entre meu lugar na história concreta e minha consciência.

Compromisso com a vida

Marighella trazia isso em comum, antes mesmo de mim na cronologia, sem que nem me passasse pela cabeça. E de muitas pessoas, ainda hoje, não passa pela cabeça, mesmo após 50 anos do assassinato desse grande homem que foi fundamental para ilustrar e ampliar o conhecimento coletivo comprometido com a vida e com o verdadeiro em nossa sociedade; essa sociedade capitalista, cada vez mais necrocapitalista, na qual Marighella já havia se assumido, desde lá, marxista, leninista, revolucionário e comunista.

Vale muito lembrar que, pelas palavras do próprio pai, Carlinhos, seu filho, foi carregado de amor em todas as dimensões da sua vida. Ele não veio para matar: veio para assumir o seu lugar de sujeito para impedir a matança orquestrada pelo capitalismo. Matança da vida em vida, matança que leva a grande maioria das pessoas para a morte da vida, a morte da subjetividade, a morte da potência humana e a morte do corpo.

Muitos assassinados são e seguem a ser hoje, repetição, sob outras formas, da história. Mais de meio milhão padeceu pela política atual que existe na pandemia, na qual a mentira do Estado apenas fala — pois não pode deixar de fala — de 446 mil assassinados pela necropolítica que atinge com mais força os que são interditados à vida. 

É, Marighella pegou outro tempo, mas tempo em que já era absurdamente óbvio que nascer, viver e morrer não são fases naturais; são organizadas pela política.

Ativismo crítico

Para além disso, vale lembrar que Marighella não se apresentava como um acadêmico do marxismo, e sim como um “ativista crítico” vinculado ao marxismo. Isso faz muita diferença e vale a pena ter acesso e ler A crise do marxismo, publicado por Perry Anderson em 1983 e traduzido para o português em 1985. Haverá, assim como ainda há, quem diga que não foi, que foi pouco ou que faltou — ou algo assim — para em marxista chegar. Seguem, assim, com todas as crises e dimensões diferenciadas, os grupos e as formações sociais que não conseguem unificar para firmar um basta ao capitalismo nem ao menos a um governo, como hoje vivemos. 

Nesse caminho, medir o grau de mais ou menos marxista se torna armadilha que cresce em esquerdismo e decresce em análise objetiva da realidade, o que gera, dentre outros perigos, o policiamento, o identitarismo e o esvaziamento da diversidade na unidade. A despeito da medida marxista, Marighella foi um ser substancialmente político, que se reconhece como sujeito, que se dedica à luta pela liberdade e pela dignidade humana e que vê no marxismo a principal terra teórica para pensar e agir concreta e consequentemente na realidade, para superar a ordem opressora dominante.

Vale dizer, e não poderia ser diferente, que um filme não poderia dar o sentido amplo, completo e magnânimo que teve a vida de um ser humano como Marighella. Destaca-se que sua neta biológica — e que é devidamente referenciada na trajetória e na formação sócio-histórica de seu avô — foi eleita vereadora em 2020, em Salvador, e atua em um dos partidos de esquerda do Brasil: o PT. Há muito o que falar, produzir e aprender com a passagem de Marighella neste mundo e muito o que ensinar, do livro ao filme, para aprender coletivamente em favor da vida.

Marighella presente! 

*Poeta, cientista social pela UFRJ, cursou Ciências Econômicas, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ. Com 16 anos, Eduardo já era secretário de juventude do Partido dos Trabalhadores - PT. Posteriormente, atuou como secretário de formação política do partido, junto aos diretórios municipal, estadual e nacional, sendo também da secretaria nacional. Foi da Teologia da Libertação e atuou na Juventude Operária Católica e em Pastorais. Em Brasília, foi assessor do Sindicato do Servidores Públicos Federais - SINDSEP-DF, por dois anos, e assessor da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal - CONDSEF, por onze anos. Foi assessor do vereador Adilson Pires em seu primeiro mandato no Rio de Janeiro e foi chefe de gabinete do deputado estadual Marcelo Freixo, por seis anos. Foi coordenador da Escola Popular de Comunicação Crítica - ESPOCC e, nos tempos de produção destes ensaios, foi diretor do Observatório de Favelas, situado no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, atuando no Instituto Maria e João Aleixo - IMJA. Atualmente, Eduardo é coordenador pedagógico do projeto de formação política do Instituto Pensamentos e Ações para a Democracia - IPAD. Colaborador do coletivo Pavio Curto


É preciso refundar a República

Texto Edson Diniz

Ilustração Mani Ceiba


“E o povo assistiu a tudo bestializado”! Essa frase, atribuída ao deputado e defensor da República, Aristides Lobo (CARVALHO, 1997), diz muito sobre o 15 de novembro e a Proclamação da República brasileira, em 1889. O deputado se referia a um fato concreto: as tropas do exército brasileiro desfilaram pelo Centro da cidade do Rio de Janeiro, naquela tarde, enquanto a população apenas assistia, ao que julgou ser uma “parada militar”, sem saber o porquê.

À frente do desfile militar estava o marechal Deodoro da Fonseca, espécie de “herói” da guerra do Paraguai e militar respeitado no exército. Ele acabara de destituir o ministro Ouro Preto, chefe do governo imperial, que se encontrava, naquele momento, reunido com seu gabinete, no quartel do próprio exército (GOMES, 2013).

O fato mais curioso desse episódio foi que Deodoro dissolveu o governo, mas não proclamou a República de imediato (SCHWARCZ, 1998). Alguns observadores da cena no Campo de Santana, onde as tropas estavam reunidas, afirmaram que o velho Marechal teria mesmo repreendido alguns presentes quando estes deram vivas à República. Era notória a simpatia de Deodoro pelo imperador D. Pedro II. 

Na verdade, a República só foi proclamada “oficialmente” mais tarde, na Câmara de Vereadores, de forma improvisada, na presença de poucos, e confirmada à noite em reunião onde se encontravam militares e políticos, na casa do próprio Deodoro. Havia um boato de que o Imperador ordenaria a prisão dos conspiradores e isso pode ter contribuído para a decisão do Marechal que, até o último instante, se mostrava hesitante em dar o golpe na monarquia.


Golpe militar

O fato é que assim nascia a República Brasileira, apoiada em um golpe militar e sustentada pelos fazendeiros ricos do oeste paulista – instalados no Partido Republicano - interessados na dinamização da economia, o que o Império já não conseguia oferecer. Destaca-se, ainda, o apoio dado pela classe média urbana, influenciada pela filosofia positivista que afirmava a “ordem e o progresso” como caminhos para o desenvolvimento social, numa perspectiva conservadora e que não correspondia a um ideal de democracia verdadeiramente participativa. 

No final das contas, mais do que a ação de indivíduos, a República Brasileira expressava o desejo das elites em superar a economia escravista, substituindo-a pela economia capitalista. Essa atendia plenamente aos anseios dos novos donos do poder no Brasil e não do povo trabalhador. 

Assim, quando nos perguntamos sobre o que mudou de verdade para a maioria da população brasileira no dia seguinte, ou seja, no dia 16 de novembro de 1889, a resposta invariavelmente é: absolutamente nada! Os ex-escravizados continuaram sem qualquer apoio ou assistência para que pudessem se integrar à sociedade na condição de pessoas livres, os mais pobres continuaram sem acesso aos seus direitos básicos e as desigualdades sociais, econômicas, étnico-raciais e de gênero, só aumentaram. 

A verdade é que desde então, a República Brasileira nunca consolidou o ideário de uma “res publica”, expressão latina que pode ser traduzida como “coisa pública” ou como “assunto público”. Pelo contrário, ela sempre foi tratada como algo privado, pertencente aos mais ricos e poderosos, e excluindo os trabalhadores e trabalhadoras. 

Não é à toa que dos nossos 132 anos de República, poucos foram os momentos realmente democráticos. Como vimos, ela já nasceu sob o comando de dois militares: os Marechais Deodoro da Fonseca (1889-1891) e Floriano Peixoto (1891-1894). Depois, até a década de 1930, o país viveu sob o domínio das oligarquias cafeeiras do sudeste. Esse domínio foi interrompido por Getúlio Vargas que chegou ao poder também por um golpe de Estado. Entre 1937–1945, Getúlio governou como verdadeiro ditador (Estado Novo). Deposto Vargas, em 1945, e depois de um breve período de relativa democracia, temos o golpe civil-militar de 1964, que mergulhou o país numa onda de mortes e tortura. A partir de 1988, com a nova constituição e com a eleição para presidente, em 1990, consolidamos um novo período democrático. 


Retrocesso

Em todos os movimentos golpistas a nossa elite econômica esteve envolvida. Todas as vezes em que o projeto de República e de país desigual esteve minimante ameaçado, usou-se o recurso do golpe contra a democracia. Como foi o caso mais recente, o golpe parlamentar que derrubou o governo legítimo de Dilma Rousseff, em 2016. 

O fato é que hoje temos pouco a comemorar em mais um 15 de novembro. Neste ano, perdemos mais de 600 mil pessoas para a COVID-19, houve aumento da fome e da pobreza e tivemos retrocessos inimagináveis nos direitos básicos de nossos cidadãos. Tudo isso patrocinado pelo governo Bolsonaro, um governo incompetente, inconsequente e que não se importa com o destino do país, principalmente dos mais pobres.

Por isso, mais do que comemorar a proclamação da República, o que precisamos fazer é refundá-la radicalmente. Uma refundação apoiada na ideia de democracia popular, sobretudo a partir dos movimentos sociais, para atender aos anseios e necessidades da maioria da população e não dos grupos privilegiados que desde os tempos coloniais se perpetuam no poder.

Precisamos de uma República verdadeiramente “pública”, popular, e que garanta o bem comum; só assim deixaremos de ser os “bestializados” para sermos os donos da nossa história. É possível, mas precisaremos estar juntos na defesa de nossa democracia, agora mais do que nunca!


Referências:

SCHWARCZ. Lilia Moritz. Nas Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

CARVALHO. José Murilo de. Os bestializados:  o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1997

GOMES. Laurentino. 1889:  como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da monarquia e a proclamação da República no Brasil. São Paulo: Globo, 2013.

Sobre o autor: Edson Diniz é Morador da Favela da Maré por 40 anos, é graduado em história pela UERJ, mestre emeducação brasileira e doutor em sociologia da educação pela PUC-Rio. Cofundador da Redes de Desenvolvimento da Maré, criador do Núcleo de Memória e Identidade dos Moradores da Maré (NUMIM). Atualmente, desenvolve pesquisas nas áreas de sociologia da educação, segurança pública, história das favelas, direitos humanos, arte, cultura e memória das favelas. Colaborador do coletivo Pavio Curto

* Mani Ceiba (Fernanda Vaz) é desenhista, ilustradora, ceramista. Artista plástica formada pela EPA e faz bacharelado em artes visuais. Faz parte do coletivo Pavio Curto. Membro da direção do grupo de artes borboletadágua.