Texto Edson Diniz
Ilustração Mani Ceiba
“E o povo assistiu a tudo bestializado”! Essa frase, atribuída ao deputado e defensor da República, Aristides Lobo (CARVALHO, 1997), diz muito sobre o 15 de novembro e a Proclamação da República brasileira, em 1889. O deputado se referia a um fato concreto: as tropas do exército brasileiro desfilaram pelo Centro da cidade do Rio de Janeiro, naquela tarde, enquanto a população apenas assistia, ao que julgou ser uma “parada militar”, sem saber o porquê.
À frente do desfile militar estava o marechal Deodoro da Fonseca, espécie de “herói” da guerra do Paraguai e militar respeitado no exército. Ele acabara de destituir o ministro Ouro Preto, chefe do governo imperial, que se encontrava, naquele momento, reunido com seu gabinete, no quartel do próprio exército (GOMES, 2013).
O fato mais curioso desse episódio foi que Deodoro dissolveu o governo, mas não proclamou a República de imediato (SCHWARCZ, 1998). Alguns observadores da cena no Campo de Santana, onde as tropas estavam reunidas, afirmaram que o velho Marechal teria mesmo repreendido alguns presentes quando estes deram vivas à República. Era notória a simpatia de Deodoro pelo imperador D. Pedro II.
Na verdade, a República só foi proclamada “oficialmente” mais tarde, na Câmara de Vereadores, de forma improvisada, na presença de poucos, e confirmada à noite em reunião onde se encontravam militares e políticos, na casa do próprio Deodoro. Havia um boato de que o Imperador ordenaria a prisão dos conspiradores e isso pode ter contribuído para a decisão do Marechal que, até o último instante, se mostrava hesitante em dar o golpe na monarquia.
Golpe militar
O fato é que assim nascia a República Brasileira, apoiada em um golpe militar e sustentada pelos fazendeiros ricos do oeste paulista – instalados no Partido Republicano - interessados na dinamização da economia, o que o Império já não conseguia oferecer. Destaca-se, ainda, o apoio dado pela classe média urbana, influenciada pela filosofia positivista que afirmava a “ordem e o progresso” como caminhos para o desenvolvimento social, numa perspectiva conservadora e que não correspondia a um ideal de democracia verdadeiramente participativa.
No final das contas, mais do que a ação de indivíduos, a República Brasileira expressava o desejo das elites em superar a economia escravista, substituindo-a pela economia capitalista. Essa atendia plenamente aos anseios dos novos donos do poder no Brasil e não do povo trabalhador.
Assim, quando nos perguntamos sobre o que mudou de verdade para a maioria da população brasileira no dia seguinte, ou seja, no dia 16 de novembro de 1889, a resposta invariavelmente é: absolutamente nada! Os ex-escravizados continuaram sem qualquer apoio ou assistência para que pudessem se integrar à sociedade na condição de pessoas livres, os mais pobres continuaram sem acesso aos seus direitos básicos e as desigualdades sociais, econômicas, étnico-raciais e de gênero, só aumentaram.
A verdade é que desde então, a República Brasileira nunca consolidou o ideário de uma “res publica”, expressão latina que pode ser traduzida como “coisa pública” ou como “assunto público”. Pelo contrário, ela sempre foi tratada como algo privado, pertencente aos mais ricos e poderosos, e excluindo os trabalhadores e trabalhadoras.
Não é à toa que dos nossos 132 anos de República, poucos foram os momentos realmente democráticos. Como vimos, ela já nasceu sob o comando de dois militares: os Marechais Deodoro da Fonseca (1889-1891) e Floriano Peixoto (1891-1894). Depois, até a década de 1930, o país viveu sob o domínio das oligarquias cafeeiras do sudeste. Esse domínio foi interrompido por Getúlio Vargas que chegou ao poder também por um golpe de Estado. Entre 1937–1945, Getúlio governou como verdadeiro ditador (Estado Novo). Deposto Vargas, em 1945, e depois de um breve período de relativa democracia, temos o golpe civil-militar de 1964, que mergulhou o país numa onda de mortes e tortura. A partir de 1988, com a nova constituição e com a eleição para presidente, em 1990, consolidamos um novo período democrático.
Retrocesso
Em todos os movimentos golpistas a nossa elite econômica esteve envolvida. Todas as vezes em que o projeto de República e de país desigual esteve minimante ameaçado, usou-se o recurso do golpe contra a democracia. Como foi o caso mais recente, o golpe parlamentar que derrubou o governo legítimo de Dilma Rousseff, em 2016.
O fato é que hoje temos pouco a comemorar em mais um 15 de novembro. Neste ano, perdemos mais de 600 mil pessoas para a COVID-19, houve aumento da fome e da pobreza e tivemos retrocessos inimagináveis nos direitos básicos de nossos cidadãos. Tudo isso patrocinado pelo governo Bolsonaro, um governo incompetente, inconsequente e que não se importa com o destino do país, principalmente dos mais pobres.
Por isso, mais do que comemorar a proclamação da República, o que precisamos fazer é refundá-la radicalmente. Uma refundação apoiada na ideia de democracia popular, sobretudo a partir dos movimentos sociais, para atender aos anseios e necessidades da maioria da população e não dos grupos privilegiados que desde os tempos coloniais se perpetuam no poder.
Precisamos de uma República verdadeiramente “pública”, popular, e que garanta o bem comum; só assim deixaremos de ser os “bestializados” para sermos os donos da nossa história. É possível, mas precisaremos estar juntos na defesa de nossa democracia, agora mais do que nunca!
Referências:
SCHWARCZ. Lilia Moritz. Nas Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
CARVALHO. José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1997
GOMES. Laurentino. 1889: como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da monarquia e a proclamação da República no Brasil. São Paulo: Globo, 2013.
Sobre o autor: Edson Diniz é Morador da Favela da Maré por 40 anos, é graduado em história pela UERJ, mestre emeducação brasileira e doutor em sociologia da educação pela PUC-Rio. Cofundador da Redes de Desenvolvimento da Maré, criador do Núcleo de Memória e Identidade dos Moradores da Maré (NUMIM). Atualmente, desenvolve pesquisas nas áreas de sociologia da educação, segurança pública, história das favelas, direitos humanos, arte, cultura e memória das favelas. Colaborador do coletivo Pavio Curto
* Mani Ceiba (Fernanda Vaz) é desenhista, ilustradora, ceramista. Artista plástica formada pela EPA e faz bacharelado em artes visuais. Faz parte do coletivo Pavio Curto. Membro da direção do grupo de artes borboletadágua.
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