segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Um ensaio crítico após o filme Marighella

 Por Eduardo Alves*


O filme Marighella (diretor Wagner Moura), lançado em 2019, tem a envergadura de um filme biográfico. Não se trata de uma fácil biografia, pois Carlos foi uma pessoa que assumiu conscientemente o lugar social e histórico que ocupava no capitalismo. Foi um ser humano que se destacou como estudante, ativista, poeta, revolucionário, guerrilheiro, enfim, alguém que poderia ter muitos filmes com aspectos distintos de suas múltiplas contribuições. Livros, como Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo (de Mário Magalhães), existiram como suporte na vida e nos ensinamentos de quem abraçou o BEM VIVER em todas as dimensões humanas. 

Muito chamaram a atenção, no filme, o contexto e o texto. O filme veio em um momento muito adequado e tratou com impulsos críticos o que foi a ditadura, operada diretamente pelos militares, mas planejada nos cadernos dos civis capitalistas que atuavam no Estado e que se assumiam donos do COMUM apropriado.

Os donos do poder — que se apropriam do comum para a obtenção do lucro e fazem vulto de shows, narrativas e mentiras, com proibições para as condições de subsistência e de existência da maioria das pessoas, com o controle do “saber” — apoiaram as ações com uniformes militares à frente. 

Bem viver

Marighella era poeta, criativo, comprometido com a vida e se dedicou à verdade e ao compromisso com o BEM VIVER. Para ele, já cedo, a escolha evidente pelo Partido Comunista, ainda do Brasil, era, em seu tempo, a maior demonstração do reconhecimento sócio-histórico e de sua compreensiva escolha como sujeito político em favor da vida, da liberdade e da democracia em todas as dimensões. 

Portanto, não há dúvidas em afirmar que o filme foi bem-vindo, com um personagem que não foi persona em vida e que existiu fazendo com que sua existência atingisse raios maiores que o limite de seu corpo. O que viveu Marighella em nossa história, sua posição crítica na formação social brasileira profundamente desigual e sua dedicação de organização, acolhimento, formação e luta por outra organização das pessoas na história e na economia são elementos que precisam ser conhecidos. Principalmente pelas pessoas brasileiras, mesmo para as que supostamente sabem, mas que não sabem, pois a maioria das pessoas no Brasil é impedida de, ao menos, ter conhecimento da existência de pessoas como Marighella. 

Nesse sentido, o filme muito contribuiu e traz para a cena da vida e dos ensinamentos o que nunca deveriam sair. Não seria possível, portanto, iniciar sem afirmar que o filme foi bem-vindo para impulsos de uma organização coletiva que preze pela inteligência e que conquiste e assegure o viver em todos os sentidos e dimensões.

Dominicanos

No texto de vida de Marighella, que foi cravado no contexto do capitalismo brasileiro, entre vários ensinamentos, muito se pode aprender sobre o papel dos freis dominicanos frente à ditadura militar (vale sempre lembrar que também civil) vivida diretamente pelas pessoas do Brasil, a partir de 1964. Impactos fortes sobre: de um lado os que buscavam revolucionar as bases da organização social capitalista e, de outro, os grupos sociais que produziram a guerra contra aqueles, impondo a ditadura aos que resistiram, lutaram contra e se organizaram para impedir e superar tal absurdo humano. Vale lembrar alguns ensinamentos como em Batismo de sangue (o livro) de Frei Beto e as importantes falas de Frei Oswaldo no lançamento do filme Batismo de Sangue

Frei Oswaldo era o dominicano que iniciou a ponte entre Marighella e os frades. Foi enviado para a Europa, pois seus superiores avaliaram que sua exposição era muito ampla e exigia cuidados necessários. Mas nos dias atuais, esse mesmo frei, que viveu com Tito o martírio de seu suicídio, nos ensina que a organização de enfrentamento à ditadura não teve fim no contexto desse tempo de terror. 

Afirma com disposição e entusiasmo que, apesar do período da ditadura iniciada formalmente em 1964 ter sido “traumático para os dominicanos envolvidos e para a Ordem em seu conjunto”, nos dias atuais estão espalhados nos vários cantos do país e estão no tempo do agora envolvidos com diversas organizações religiosas e humanitárias com ações de combate ao trabalho escravo, defesa dos direitos indígenas, das mulheres e dos presidiários, dentre várias outras ações humanitárias. 

O PCB — ainda Partido Comunista do Brasil quando Marighella se filiou — já havia alterado o nome quando a ditadura explícita é deflagrada em 1964, o que foi elemento das múltiplas discordâncias que geraram novas siglas organizativas. No filme só aparecem a ALN e o MR8, mas já se poderia falar de Polop, POC, PCBR, entre outras, gestadas ou em gestação. E, certamente, influenciaram os contornos de Marighella na política, principalmente porque há uma pontinha do Araguaia, no qual o grande conhecido foi o PCdoB, pois a ALN fora antes dizimada pelas tropas da ditadura.

O autor desses escritos nasceu um ano antes do dia em que Marighella foi assassinado - por obra da emboscada articulada pelo delegado Fleury. Essa realidade não passava ou sequer poderia se alojar na consciência de quem vos escreve, que, com apenas um ano de idade naquele contexto, nada imaginava, pensava ou sabia sobre a situação política vigente. 

Sentia, apenas tangencialmente, as sombras da história, pois isento de influência da ascendência direta, de pai e de mãe — que não tinham conhecimento para além das propagandas mentirosas —, não se tinha muito espaço para tais sentimentos. Elementos singulares que carrego na história e que se desenvolveram como potência crítica no solo fértil da construção coletiva diante da materialidade concreta da história e da análise objetiva desta, como enfrentamento da mentira. Nela assumi, desde muito jovem, o lugar da aproximação com o verdadeiro, sob a correspondência entre meu lugar na história concreta e minha consciência.

Compromisso com a vida

Marighella trazia isso em comum, antes mesmo de mim na cronologia, sem que nem me passasse pela cabeça. E de muitas pessoas, ainda hoje, não passa pela cabeça, mesmo após 50 anos do assassinato desse grande homem que foi fundamental para ilustrar e ampliar o conhecimento coletivo comprometido com a vida e com o verdadeiro em nossa sociedade; essa sociedade capitalista, cada vez mais necrocapitalista, na qual Marighella já havia se assumido, desde lá, marxista, leninista, revolucionário e comunista.

Vale muito lembrar que, pelas palavras do próprio pai, Carlinhos, seu filho, foi carregado de amor em todas as dimensões da sua vida. Ele não veio para matar: veio para assumir o seu lugar de sujeito para impedir a matança orquestrada pelo capitalismo. Matança da vida em vida, matança que leva a grande maioria das pessoas para a morte da vida, a morte da subjetividade, a morte da potência humana e a morte do corpo.

Muitos assassinados são e seguem a ser hoje, repetição, sob outras formas, da história. Mais de meio milhão padeceu pela política atual que existe na pandemia, na qual a mentira do Estado apenas fala — pois não pode deixar de fala — de 446 mil assassinados pela necropolítica que atinge com mais força os que são interditados à vida. 

É, Marighella pegou outro tempo, mas tempo em que já era absurdamente óbvio que nascer, viver e morrer não são fases naturais; são organizadas pela política.

Ativismo crítico

Para além disso, vale lembrar que Marighella não se apresentava como um acadêmico do marxismo, e sim como um “ativista crítico” vinculado ao marxismo. Isso faz muita diferença e vale a pena ter acesso e ler A crise do marxismo, publicado por Perry Anderson em 1983 e traduzido para o português em 1985. Haverá, assim como ainda há, quem diga que não foi, que foi pouco ou que faltou — ou algo assim — para em marxista chegar. Seguem, assim, com todas as crises e dimensões diferenciadas, os grupos e as formações sociais que não conseguem unificar para firmar um basta ao capitalismo nem ao menos a um governo, como hoje vivemos. 

Nesse caminho, medir o grau de mais ou menos marxista se torna armadilha que cresce em esquerdismo e decresce em análise objetiva da realidade, o que gera, dentre outros perigos, o policiamento, o identitarismo e o esvaziamento da diversidade na unidade. A despeito da medida marxista, Marighella foi um ser substancialmente político, que se reconhece como sujeito, que se dedica à luta pela liberdade e pela dignidade humana e que vê no marxismo a principal terra teórica para pensar e agir concreta e consequentemente na realidade, para superar a ordem opressora dominante.

Vale dizer, e não poderia ser diferente, que um filme não poderia dar o sentido amplo, completo e magnânimo que teve a vida de um ser humano como Marighella. Destaca-se que sua neta biológica — e que é devidamente referenciada na trajetória e na formação sócio-histórica de seu avô — foi eleita vereadora em 2020, em Salvador, e atua em um dos partidos de esquerda do Brasil: o PT. Há muito o que falar, produzir e aprender com a passagem de Marighella neste mundo e muito o que ensinar, do livro ao filme, para aprender coletivamente em favor da vida.

Marighella presente! 

*Poeta, cientista social pela UFRJ, cursou Ciências Econômicas, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ. Com 16 anos, Eduardo já era secretário de juventude do Partido dos Trabalhadores - PT. Posteriormente, atuou como secretário de formação política do partido, junto aos diretórios municipal, estadual e nacional, sendo também da secretaria nacional. Foi da Teologia da Libertação e atuou na Juventude Operária Católica e em Pastorais. Em Brasília, foi assessor do Sindicato do Servidores Públicos Federais - SINDSEP-DF, por dois anos, e assessor da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal - CONDSEF, por onze anos. Foi assessor do vereador Adilson Pires em seu primeiro mandato no Rio de Janeiro e foi chefe de gabinete do deputado estadual Marcelo Freixo, por seis anos. Foi coordenador da Escola Popular de Comunicação Crítica - ESPOCC e, nos tempos de produção destes ensaios, foi diretor do Observatório de Favelas, situado no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, atuando no Instituto Maria e João Aleixo - IMJA. Atualmente, Eduardo é coordenador pedagógico do projeto de formação política do Instituto Pensamentos e Ações para a Democracia - IPAD. Colaborador do coletivo Pavio Curto


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