domingo, 14 de agosto de 2022

Por justiça histórica, ambiental e climática para todos

Por Sônia Guajajara*

O Brasil é um país com cerca de 900 mil indígenas, segundo o tão defasado Censo de 2010. Ou, seja, considerando a subnotificação que assombra os dados sobre indígenas no Brasil, somos, em verdade, muitos mais. Possuímos o maior número de comunidades indígenas das Américas, a maior quantidade de indígenas isolados do planeta - e, ainda assim, levamos 518 anos para ter uma mulher indígena concorrendo em uma chapa à presidência da República. Isso, por si só, já evidencia a importância da luta que há mais de meio século travamos para garantir nossos direitos.


Nas últimas eleições municipais, em 2020, tivemos o maior número de candidaturas indígenas de todos os tempos. Num trabalho conjunto de articulação com representantes alinhados à luta do movimento, elegemos 237 indígenas: Um marco histórico e fundamental na busca por diversidade e protagonismo - mas, ainda assim, um passo pequeno frente à grandeza das pautas que historicamente balizam e direcionam nossa luta. 

Desde que o Brasil se entende como tal, os povos indígenas nunca foram prioridade de nenhum dos governos; desde antes da proclamação da República até a constituição da Nova República, as demandas do nosso movimento sempre encontraram entraves, quer sejam devido à falta de representatividade nos órgãos institucionais, quer sejam por pressão de setores antidemocráticos - tal como é o caso do agronegócio. Porém, com a eleição de Jair Bolsonaro - um governo declaradamente anti-indígena e antidemocrático - a situação alcançou outro patamar, pois tais entraves se tornaram políticas públicas. Assistimos, cotidianamente, ao agravamento da destruição dos nossos biomas; atingimos níveis alarmantes de desmatamento, queimadas e secas; o extrativismo e o garimpo ilegais avançaram à despeito da lei ou, até mesmo, respaldados pela aprovação de normas inconstitucionais. A violência contra a natureza tornou-se regra e acometeu também nossos territórios, nossos corpos e tenta, cotidianamente, calar nossas vozes. Vivemos sob um governo da morte, sustentado sobre os pilares do genocídio, do ecocídio e do epistemicídio: Um descaso com os direitos dos povos originários, dos quilombolas, das populações em desalento, em risco e que, historicamente, sempre sofreram com a opressão, a violência e a falta de acesso a seus direitos.

É neste cenário que se dará esta eleição - e é por isso que se faz tão importante garantir representantes indígenas que busquem garantir e defender nossos direitos. Não basta mais sermos representados, queremos ser representantes. Quando o governo brasileiro se propôs, minimamente, a dialogar conosco por meio da Comissão e do Conselho Nacional de Política Indigenista o Brasil passou a ser mundialmente reconhecido pelo seu esforço e inovação na proteção socioambiental. Esse diálogo foi bruscamente interrompido pelo atual governo. Isso porque não há ninguém que compreenda mais do que nós o que precisa ser feito para a preservação ambiental e para a busca pela justiça climática. É assim que se inaugura uma ousada e necessária proposta: a de eleger a Bancada do Cocar.  Minha candidatura como deputada federal por São Paulo, assim como a de outras irmãs por todo o território brasileiro, visa cumprir este papel que a História a nós atribuiu - não como sujeitos em busca do cumprimento de um projeto pessoal, mas como agentes históricos comprometidos com um projeto coletivo de aumentar a quantidade de indígenas no Congresso Nacional, trazendo nossas vozes, demandas e contribuições para a construção de um futuro mais plural, mais democrático, mais rico, mais integrado e mais envolvido com as demandas concretas do Brasil. Estamos espalhados pelos quatro cantos do país, com candidaturas comprometidas com as causas populares e com as reais necessidades do povo brasileiro, articuladas com a sociedade em um grande movimento - é o que estamos chamando de “aldear a política”. 

A busca exclusiva por lucro e o uso desenfreado dos recursos naturais nos trouxe ao cenário atual. Mais do que justiça ambiental, acredito que nossa luta é por justiça climática: A população periférica, os povos originários e comunidades ribeirinhas são as mais vulneráveis aos efeitos do clima e, para isso, basta ver quem são os mais vitimados por eventos extremos pelos quais estados como São Paulo, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, entre outros, passaram. Em São Paulo, somente no último ano, os desabamentos e soterramentos cresceram 18,3%, sempre em áreas periféricas. É fundamental entendermos que a vida humana e a natureza são a mesma coisa. Não podemos naturalizar dados absurdos como os que São Paulo tem apresentado: 4,4 milhões de paulistas não têm acesso à coleta de esgoto e cerca de 1,5 milhão de paulistas não têm acesso à água. Isso é inadmissível em um estado com um dos maiores IDHs do país.

São Paulo, particularmente, tem participação fundamental nesta batalha. Este é um estado que carrega muitos atributos fundamentais - entre eles, sua capacidade de inovação e o potencial de preservação e restauração de seus próprios biomas. Por se tratar do estado com maior concentração de poder econômico da nação, o potencial de influenciar na proteção da Amazônia, nossa principal aliada no combate à crise climática, é gigantesco.

Acredito, também, que a solução para a emergência climática passa pela conscientização do povo brasileiro do modo de vida que vem levando. Não é justo que se coloque sobre nós, povos indígenas, a responsabilidade de salvar a humanidade da crise climática e social em que vivemos - duas crises intrinsecamente ligadas e que se retroalimentam! É igualmente injusto que a população historicamente excluída dos bônus do crescimento econômico seja a mesma que arque com seus ônus. É passada a hora que o Estado e que nossos parlamentares compreendam o momento histórico e a responsabilidade que carregam, tendo todas essas questões em vista.

Por tudo isso, é primordial assegurarmos mais representatividade indígena no Congresso Nacional. Aldear a política nacional é nosso maior trunfo para contribuir com a proteção da vida de todas e todos; a criação de uma Bancada do Cocar, nossa maior ferramenta!



* Nascida em 1974,  filha de pais analfabetos, Sônia Bone é do povo Guajajara/Tentehar, que habita as matas da Terra Indígena Araribóia, no Maranhão. Separada, é mãe de três filhos; Luiz Mahkai, Yaponã e Y’wara. Liderança indígena feminista, Sônia é professora do ensino fundamental e auxiliar de enfermagem, tendo cursado o ensino superior na UEMA ( Universidade Estadual do Maranhão), onde graduou-se em Letras e pós-graduou-se em Educação Especial. 

Em quase duas décadas de luta pelos direitos das populações originárias, ocupa cargos de destaque em diferentes organizações e movimentos. Entre eles, a Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (Coapima), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), onde é coordenadora executiva.

Em 2018, aos 44 anos, foi a primeira mulher indígena a concorrer numa chapa à presidência da República, junto com Guilherme Boulos. No atual processo eleitoral, é candidata a deputada federal em São Paulo pelo PSOL.  


Foto: Leonard Okpor 

Inverdades e mentiras: eleições e o lugar do Parlamento

Por Eduardo Alves


O “poder legislativo” (assim instituído na Constituição Brasileira) é o mais convidativo para tecer e entrelaçar inverdades com mentiras. E, na Constituição de 88, o artigo 44 apresenta com evidência quem compõe esta esfera chamada de poder, que, na verdade é esfera de organização do poder. Mas vale conhecer o que está na Constituição: “Art. 44. O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal”. Há muitas sobredeterminações que esta esfera da organização do poder pode inventar, criar, fazer. Pode-se até, dependendo da correlação de forças, criar sobredeterminações que muito valem para a vida das pessoas. Afinal, no Brasil, onde há condições materiais para aprovar a RENDA BÁSICA INCONDICIONAL E UNIVERSAL, aprovada como política de Estado ou de governo traria muita diferença material e espiritual para a vida das pessoas. Assim como é possível em várias unidades federativas, colocar para aprovação uma moeda, como existe em Maricá, e estabelecer regras que podem chegar até à renda básica para as pessoas que vivem em tais ambientes. Mas para isso seria necessário inverter a direção da sobredeterminação que hegemoniza hoje o Legislativo.  

Mas, infelizmente, estamos em tempos que a hegemonia das esferas EXECUTIVAS, LEGISLATIVAS E JUDICIÁRIAS, em todo país, reforça a necropolítica. Há exemplos de diferenças, mas que não estão articuladas e acabam fazendo a disputa do arquétipo e não a disputa da política. A questão não é a melhor ou a pior pessoa que ocupa um cargo, a questão é a política, com quem e para que está voltada a organização do poder. E no parlamento, com a presença e a importância da VOZ PÚBLICA possuindo muita referência, pode-se ter uma focalização comum para ampliar o peso de utopias que sejam favoráveis ao BEM VIVER.  

Todo os parlamentos existentes em outras esferas, como das Unidades Federativas e dos Municípios, acompanham a tecedura do chamado “PODER LEGISLATIVO”. Eleger parlamentares que consigam disputar as verdades e o verdadeiro como uma das ações predominantes do “mandato de quatro anos” é grande desafio em época de eleições para que se possa realmente melhorar a vida da maioria da população. Agora estamos no tempo de eleger quem compõe o Senado e quem compõe a Câmara Federal, que juntos são a materialidade do que a Constituição do Brasil chama de PODER LEGISLATIVO. Atuar para que estejam em maioria, neste chamado poder legislativo,  pessoas comprometidas com o bem viver nas várias diferenças que se fortalecem,  é uma ação fundamental em período eleitoral. 

As eleições, por si só, não resolvem a situação cada vez mais lamentável que está imposta nos tempos atuais, assim como não está nas eleições a solução para os problemas mais profundos criados no Estado Capitalista com a formação social brasileira. Mas, não se pode esquecer, que se pode sim acumular frestas favoráveis à vida,  e não para sobrevivência opressora organizada pela necropolítica. Assim pode-se acumular forças e condições para superar as cercas do capitalismo e o próprio capitalismo que é a grande cerca que impede a vida e a liberdade.  

E parlamentos são ambientes para PARLAR e organizar o funcionamento do Estado e de Governos. Seja organizar para aprofundar os desenhos e marcas da necropolítica ou organizar para ampliar as contradições com frestas para o público inexistente. Como o espaço da “proporcionalidade” na política está no parlamento, há uma ideologia embaçando os sentidos e ampliando a ideologia e a estética parlamentar. Este sofismo contemporâneo, mais uma vez, cria confusões e funções inexistente para a compreensão das pessoas. 

Nesse sentido, pode-se afirmar que parlamentares comprometidos com a verdade e com o verdadeiro, seja para que nível do Estado, podem atuar para um acúmulo de forças favorável ao BEM VIVER. Inclusive seja qual for a sigla chamada de partido, pois, o que importa é uma atuação coletiva e favorável à grande maioria das pessoas. Como a condição social e política de parlamentares também importa muito, pode-se afirmar que para os votos mais qualificados a maioria da população precisa saber articular parlamentares contra os raios de repressão, contra os raios das faltas de condições materiais para a vida, contra os raios dos múltiplos preconceitos, contra os raios da exploração, contra os raios do racismo, contra os raios do machismo, contra os raios do sexismo, contra os raios da ignorância. Um coletivo de ações que fortaleça uma ação de inteligência com práticas que acumulem verdadeiramente em favor da vida. Mas, infelizmente, não é assim. Vive-se ainda em um ambiente nacional no qual a maioria das pessoas não sabe em quem está votando. No caso do parlamento, para a maioria das pessoas acaba pesando o funcionamento como a organização que faz de cada parlamentar uma espécie de micro-empresa, fazendo predominar a pergunta sempre presente do senso comum: “o que ganho com isso?” 

Mas o espaço do parlamento tem como função institucional conhecer sobre o que faz e o que deve fazer o executivo para assumir o local de fiscalizador e, por outro lado, elaborar leis que possam organizar orientar legalmente o funcionamento do Executo, do Judiciário e das pessoas. Pode-se sim acumular forças com eleição de pessoas que apostem nas organizações da sociedade civil, nos movimentos e de coletivos que ampliem os direitos e o rumo para a dignidade humana. Sim, o parlamento é um espaço da política e mesmo que vários conhecimentos sejam importantes, trata-se de um ambiente para que a orientação legislativa do Estado exista. Estará sempre em disputa o que, neste Estado, pode-se fazer a favor da maioria das pessoas e o que se pode fazer para ampliar o lucro do verdadeiro poder em um Estado capitalista.  

Entre os defensores dos proprietários haverá mutas diferenças de organização, afinal entre liberais e conservadores a escala de diferença é grande. Mas a mentira mais simpática em sua aparência não deixa de ser mentira e precisamos o vetor da verdade para mudanças em favor da vida. Por outro lado, há um grupo enorme de pessoas no ambiente político da disputa. Mas seja qual for a organização, o sistema que existe no Brasil, se volta para exercer o papel de mentiroso de um tal poder parlamentar.  

O parlamento é lugar de organização central em vários fatores: a) para organizar a compreensão da Constituição que mais interessa aos setores hegemônicos no poder; b) apresentar com a força de fala que o poder parlamentar tem, também de condições para estabelecer como verdade e mentiras no Estado. Pode-se afirmar que o Brasil tem todas as condições para que nenhuma pessoa passe fome, mas haverá sempre, no parlamento, condições para inventar a frase muito repetida: “isso que estamos estabelecendo como lei é o melhor possível neste momento” ou seja, com a aparência do melhor,  a fome continua se materializando como o pior para milhares pessoas. E precisa-se de pessoas que na atuação parlamentar não precise chamar todo o tempo o judiciário para organizar a política e possa fortalecer uma atuação comum contrário a qualquer tipo de violência, principalmente a que assassina as pessoas mais empobrecidas, negras, mulheres ou outras mais que vivem as marteladas do preconceito e das discriminações.  

A população, principalmente a grande maioria, e isso no Brasil significa aproximadamente 90% das pessoas existentes, é absolutamente dividida em pensamentos, ações, diferenças e desigualdades. Mas esse é um desafio da sociedade que trará consequência na política, na comunicação, na organização e na vida. O que aqui cabe levantar é que o Parlamento é um ambiente onde facilmente pode-se inventar mentiras e disparar inverdades pela grande cota de ignorância existir socialmente e, portanto, também com as pessoas que assumem o cargo. No caso do Brasil, principalmente após a Constituição de 88, são pessoas que assumem o cargo porque para isso foram eleitas e tiveram as proporcionalidades que justifica a palavra eleição.  

Nesta eleição de 2022 no Brasil haverá nova montagem das assembleias legislativas, da Câmara Federal, de 1/3 do Senado, do Executivo das Unidades Federativas e do Executivo Federal. Ou seja, em uma só eleição serão votos para cinco esferas institucionais de organização do poder, dos direitos, das possibilidades e de ações que o Estado fará para as pessoas. Se o Estado não será mudado, cada eleição representa uma possiblidade de utilização e organização dos aparelhos que existem no Estado. O Parlamento é o que reúne tanto o maior número de pessoas que representam setores sociais, organizados ou não. 

Então é sim importante eleger pessoas que possuam o simbolismo da Deusa Grega FAMA e possa falar com tal autoridade para as pessoas. É importante sim que tenha mais parlamentares que possam falar em favor da dignidade humana, em favor da liberdade, em favor de bons salários, em favor de empregos, em favor das várias diversidades que o grande grupo social que assume seu lugar com consciência precisa sempre conquistar para que seja uma sobrevivência que faça valer a pena viver. Não é natural morrer de morte morrida, passar fome, ser agredido por sexo, raça, cor, religião, gênero ou qualquer outra questão que forma a diversidade humana. Por outro lado, a consciência é a nutrição para que tenhamos força para organizar, acolher, formar e atuar com os muitos de nós mesmos. As eleições de pessoas que farão o Congresso Nacional existir precisam valer e precisamos fazer acontecer. 

Neste período que a eleição do Brasil, ao mesmo tempo que escolhe o Congresso Nacional, também forma as assembleias legislativas, com deputadas e deputados na Unidade Federativa, saber o que deve, o que pode e o que queremos que façam esses “parlamentares” é fundamental para colocar fogo no foco da inteligência coletiva em favor da vida. Isso porque nós somos do grupo social e política que não tem dúvidas e reafirma que Lula é um candidato que pode abrir os portais da esperança. Então faremos bases para que nos parlamentos e nos governos em cada Unidade Federativa a abertura das portas rumo ao bem viver esteja aberta para que a os muitos de nós possa construir com inteligência o BEM VIVER.


Eduardo Alves – Intelectual Orgânico da Periferia 

Ilustração: Cristóvão Vilella

Terá existência o beijo gay?

Homenagem ao grande João Bethencourt e à liberdade

Por Guilherme Maia



Chiquinho tinha 24 anos e era idolatrado por sua avó, senhora octogenária frequentadora da igreja do Poço Fundo do Jacó, adepta do “está-um-caos-mas-Deus-proverá”. Iniciou seus estudos aos 11 anos, para, assim, ser alfabetizado na escola de sua igreja. Educado na mais estrita e abençoada restrição: sua vida era resumida a ir da escola para casa e vice-versa. 

Dadas estas características iniciais que, por via de regra, enunciam uma espécie de síntese existencial do rapaz, passamos a relatar uma desastrada ocorrência que abalou sua reduzida rotina.

O dia era 25 de dezembro, o ano, 2028. Finalmente completara o curso de ciências aprofundadas no ramo da epistemologia oculta do Deus-me-livre na faculdade da Transubstanciação Dolarizada de Belford Roxo. Encontrava-se preparado, portanto, para assumir a função de balconista na loja de conveniências de um tio. 

Que tempestade se abateu na casa de Chiquinho devido a este trabalho! Sua avó – matriarca a essa altura já nonagenária – não aceitava o contato com a mundanidade daquela loja mantida pela “ovelha negra” da família: justamente aquele que vivia no Paraguai para fornecer artigos ao seu comércio.

A matrona encrencara também devido à morte de três clientes por ingestão de Whisky “batizado”.

Pois bem. Chiquinho era um santo. Fazia vista grossa ao Whisky – que continuava batizado – para honra da prosperidade predestinada de seu tio e, no fundo, porque conseguia dinheiro para alimentar seu novo e herético hobby. Seu desgraçado hobby.

Havia no fim da rua do Perdeu um velho cinema. Alguns grupos de profunda espiritualidade tentaram desde 1998 comprar o estabelecimento para montar a trilhonésima igreja do bairro; o dono disse que não o venderia porque amava o cinema; duas semanas depois, recebeu uma pedrada na têmpora esquerda (provavelmente uma arrebatação de fé): por fim, não foi dissuadido pelas vias sagradas. Era um homem decidido e possuía muito amor pelo cinema mesmo.

Esse era o último cinema que restara em todo o município e Chiquinho amou a Sétima Arte quando assistiu ao filme Murderssigun, quer dizer, Murder’s Gun -  tocante filme sobre um louco que sai matando todo mundo no condado do Bronx, em Nova York. A sutileza como o sangue jorrava da jugular ou da carótida para a tela emocionava os sentimentos mais piedosos de nosso protagonista e, com isso, passou a ser um aficionado no que foi convencionado ser o mais alto padrão de uma obra cinematográfica: a morte.

Aí então aconteceu!

Todos os filmes assistidos eram contidos, sensíveis e até “cristãos”. Assim foi a impressão sobre filmes como O Massacre de Todo Mundo, grande sucesso de Keith Machonvisky; A Carroça da Possessão do grande Geroge Killermen; dentre tantas obras-primas. Chiquinho era levado às lágrimas observando aquelas vísceras expostas, pendendo sobre corpos mutilados; todo aquele rol de armas em desfile. Nada atentava contra a moral e aos bons costumes!

Porém aconteceu aquilo!

O filme que estava em cartaz naquela sexta-feira 13 se chamava Açougueiro de Castro. Era o relato de uma onda de assassinatos no epicentro gay do mundo: o bairro de Castro, em San Francisco.  A velha fórmula “soldado que foi para o Afeganistão-perdeu as pernas em uma explosão-não teve assistência médica ou psicológica-enlouqueceu-saiu matando todo mundo que via pela frente” estava perfeita em conformidade com a grande arte. Porém, antes da vigésima matança promovida pelo Açougueiro, no canto direito apareceu aquela imagem perturbadora: dois homens se beijando!

Aquilo aterrorizou Chiquinho de tal modo que ficou boquiaberto de tanta perplexidade. Pálpebras distendidas, mãos trêmulas e molhadas, demorou alguns minutos para que aquele sentimento pudesse ser identificado. Uma mescla de estupor com a névoa da incógnita tomou-o de assalto e, com a cabeça agora feito um pingente balançando sobre o vácuo árido de um abismo, ele entendeu o volátil significado da dúvida.

— Agora entenda... — surpreendido ficou com a sua própria voz que acabara de iniciar um diálogo com ele mesmo.

— Cala a boca, imbecil! — irrompeu tonitruante um expectador a três cadeiras atrás.

Essa tentativa de diálogo íntimo e paradoxalmente exposto foi abortada logo de início. Adequada foi a continuidade, ou seja, a voz interna passou a se pronunciar para dentro e não mais para o meio ambiente do cinema.

— O diretor desse filme é o grande Charlie Fingerintheye, um dos maiores mestres! Um cara que trouxe ao mundo primores como Comi seu Fígado no Jantar e Com as mãos é que se Enforca não comete erro e sabe de tudo! Se dois homens se beijando aparecem em um filme desses, isso deve pelo menos existir!

A pergunta que não queria se calar na cabeça de Chiquinho era: existe beijo entre dois homens no mundo? Isso acontece? 

Terminado o filme, todos os expectadores saíram da sala de projeção deixando-o só e inculcado com toda aquela nova realidade que se abria a seus olhos. Havia em tudo aquilo um sentimento de completude ao mundo que cercava sua existência desde seu nascimento. A vida era mais do que tinha percebido até aquele momento: além de igrejas e lojas de produtos paraguaios, acontecia de dois homens se beijarem.

Andando pela rua do Perdeu às 10h30 da noite, o que, por óbvio, ocasionou a perda do relógio e do par de tênis após dois assaltos consecutivos, Chico começou a meditar sobre sua nova experiência querendo chegar a alguma conclusão sobre aquilo. Se existe no mundo dois homens que se beijam, isso é uma realidade, então, deve ser bom para quem o pratica. 

No fim, já estava entendendo o beijo gay como pertencendo à Criação assim como era da Natureza, era de Deus também. Portanto, tudo continua na mais bela paz predeterminada pelo Todo-Poderoso.

Como a vida é bela em todos os seus matizes e acordes...

Em sonhos, viu um mundo alegre e de irmanação universal. Um mundo harmonizado com coelhinhos saltitando em paisagens bucólicas de bosques verdejantes onde se ouvem quartetos de cordas de Haydn e Schubert em estereofonia pelo ar. 

Não havia mais adoração ao dinheiro ou lutas inumanas por ele. Não havia mais aquelas pessoas que se deitavam no chão da calçada e que provocavam estupefação sempre que via seus andrajos e mau cheiro no trajeto que fazia de casa para o trabalho. 

Na manhã seguinte, com os olhos transbordando de contentamento abraçou sua avó e o tio que acabara de chegar do Paraguai. Sorrindo deu o “bom-dia” e o “Deus-abençoe” habitual e disse que aquele seria um dia muito feliz, razão por que exclamou que todos deveriam se beijar incluídos aqueles homens que gostam de beijar outros homens...

Trovão! Ciclone! Desastres naturais! Terminal da Central de Japeri na hora de ida e volta ao trabalho! Nada se compara à estrondosa reação da avó de Chico, esta pulou da cadeira como não fazia já há 70 anos; brandiu sua bengala no ar como uma acróbata de sinal de trânsito; aos berros xingou seu neto de todos os palavrões possíveis — alguns, no entanto, tinham perdido seu uso há algumas gerações devido à sua longevidade.

No momento em que começou a jogar os pratos em direção a Chico, este teve de sair correndo de casa. Na rua, depois de ser assaltado, seu cordão de níquel levado por ladrões, foi ter com o Armênio, o dono da farmácia localizada na calçada em frente. 

— Seu Armênio.... Minha avó está muito alterada, não sei se é por causa da combinação de omeprazol, diclofenaco e diazepan que o senhor anda vendendo para ela. 

- Mas essa combinação desde 2023 já não causa mais mortes em idosos, os velhos já criaram resistência natural a isso! Não pode ser! Alguma coisa deixou sua avó nervosa ou espantada?

— Não! Apenas acordei sorri para ela e disse que hoje está um dia tão lindo que todos deveriam se beijar, inclusive homens que gostam de se beijar uns aos outros!

O dono da farmácia se encolerizou de tal modo que, com o rosto afogueado, partiu para cima de Chico. Os dois se atracaram e rolaram para o meio da rua. Nesse momento a avó já estava do lado de fora com um bastão de beisebol (sabe-se lá de onde surgiu esse utensílio); e Seu Armênio gritava: “Socorro! Tarado! Lincha tarado! ”

Acorreram de todos os cantos vizinhos portando tochas, foices e ancinhos; Chiquinho consegue se desvencilhar e corre alcançando a frente da turba enfurecida.

Já em sua cola está uma viatura da polícia; sobre o teto apoiados na sirene estão o padre da paróquia (tinha o hábito de dormir de 15 a 16 horas por dia e seu sobrepeso amassou a calota do veículo) e o pastor que vinha aos gritos – estes mais agudos do que o do alarma da sirene policial; — o perseguido consegue virar uma esquina obscura e despistar a todos.

“O que pode ter acontecido? O que eu fiz para estarem com tanta raiva atrás de mim?” — atônito, se perguntava reiteradas vezes. 

Tropeça sem ver em um mendigo deitada e coberto pela penumbra do beco; este resmunga e, logo, por solidão, puxa conversa com Chiquinho; Chiquinho volta a dizer que o dia era lindo e todos, sem exceção, deveriam se beijar; o mendigo ergue um porrete e desfere um golpe que, por muito pouco, não o atinge.

-— Você é um ignorante filho da puta! Eu perdi tudo o que tinha, minha família, meu emprego e carro por causa disso! Descobri que amava um outro homem! Se eu perdi tudo, você deve ser morto por propagar essa obscenidade!

Fugindo dessa última cena, escorrega em um rato morto; aos trambolhões rola por um barranco e cai num rio, em meio a entulhos, lixo, pedaços de corpos apodrecidos; some logo em seguida.

Hoje, mudou seu nome para Hepático (em homenagem às consequências do contato com o que encontrou naquele rio), é um próspero predestinado comerciante ambulante do Calçadão de Caxias e aprendeu de uma forma cruciante que

BEIJO GAY EXISTE SIM!


GUILHERME MAIA 

Chargista, escritor, crítico de arte e advogado terceiromundista com atuação em seus momentos de lazer.


Momento de atuação como advogado 

terceirmundista. Nesse caso defendia

O direito de um cego se aposentar após 

20 anos de processo. Essa cena

mostra o carinho com que são recebidos

advogados nas altas cúpulas do judiciário

brasileiro.

 

As Conferências e a 17ª CNS

Por Sylvio Costa Jr.

 Nos mais de 30 anos de existência desse adulto-jovem que é o nosso Sistema Único de Saúde, sem dúvida os últimos sete anos foram os mais difíceis de sua efetiva existência tal qual entendemos que o SUS deve ser: socialmente justo, integral na sua forma de cuidado e promotor de qualidade de vida a toda população.

Após o golpe de 2016, o SUS foi gravemente ferido com a aprovação da emenda de teto de gasto — a famosa PEC da Morte — que promove uma perversão no financiamento do sistema, pois o SUS, que era subfinanciado, passou a ser desfinanciado. Somado a isso, tivemos um conjunto de políticas econômicas e sociais que tentaram restringir a participação social, como o duro ataque ao sindicalismo nacional e a constante hipertrofia do judiciário, sempre pronto a decidir pela ilegalidade das greves dos trabalhadores, quando não a própria prisão das lideranças sindicais e sociais.

Durante o governo Bolsonaro o SUS não poderia ter caído em piores mãos. O presidente, irresponsável do ponto de vista social e sem apreço pela gestão da máquina pública, nomeou como seu primeiro ministro da Saúde o deputado Luiz Henrique Mandetta, autointitulado “amigo da ciência”. O amicíssimo da ciência, em seu pouco mais de um ano à frente do Ministério da Saúde, implantou o famigerado Previne Brasil (PB). Como já escrito em outro artigo nesse veículo, o PB é um cavalo-de-pau no financiamento da atenção básica, pois promove a regulamentação da PEC da Morte na atenção básica. Esse foi o papel do autoproclamado “amigo da ciência” em sua passagem pelo Ministério da Saúde.

Despois tivemos nomeado como ministro o empresário do setor saúde Nelson Teich, conhecido como “Teich, o breve”. Após ficar alguns poucos meses à frente do Ministério, com seu aspecto sempre de cansaço e fadiga, a única coisa que se percebeu foi que ele era o homem errado, no lugar errado e no momento errado.

Em seguida, tivemos o general trapalhão Eduardo Pazuello, os escândalos das vacinas superfaturadas, testes estragando em estoques federais, as mortes em massa por Covid, e o Ministério da Saúde gastando sua energia alterando bula de remédio antiparasitário para ser consumido como antiviral, normas técnicas sendo emitidas de forma apócrifa e o país em estado de choque. A CPI da Covid mostrou um show de aberrações em meio à pandemia — como, por exemplo, um PM malandro de Pouso Alegre, em Minas Gerais vendendo vacina ao Ministério mediante pagamento de R$ 1 de propina por frasco vendido — e a  estranha compra da vacina Covaxin sem aprovação da Anvisa e, ao mesmo tempo, o boicote a compra da vacina da Pfizer e da Coronavac.

Após a saída do general de estimação do capitão, assume o Ministério o médico Marcelo Queiroga, uma espécie de Pazuello de jaleco. Óbvio que nada disso deu certo, e o Ministério da Saúde se encontra ao longo de quase quatro anos paralisado, sem programas robustos ou iniciativas de proa, apenas com patrulhamento ideológico a servidores e movimentos sociais. Chegado agora o período eleitoral, é sempre bom lembrar esses fatos, pois como se diz popularmente: na eleição até satanás se fantasia de sacristão.

Importante notar o papel de destaque em defesa da vida, da vacina e do interesse do conjunto da população que os movimentos sociais tiveram e tem até hoje. O Conselho Nacional de Saúde teve um papel de destaque no combate ao obscurantismo, à negação da ciência, na defesa do SUS e de seu financiamento adequando.

Na pandemia de Covid-19, foi clara a importância do controle social nos municípios e nos estados, fiscalizando governos locais na compra de vacinas, pressionando gestores para rápida aquisição dos imunizantes e rechaçando o uso de cloroquina para uso na população como antiviral, ou ainda, auxiliando municípios na organização da população para distribuição de vacinas. O controle social se mostrou vivo e presente no momento mais difícil da pandemia, cumprindo assim seu papel fundamental e que será lembrado na historiografia nacional, a defesa do interesse popular.  O controle social mostrou que a sociedade brasileira está viva e atuante.

Ao que tudo indica, passado o momento mais duro da pandemia, estamos em um momento chave para o controle social: a organização da 17ª Conferência Nacional de Saúde, em 2023. As conferências são espaços vitais para o SUS, pois, antes da Conferência Nacional, são organizadas conferências estaduais. O conjunto da sociedade brasileira se organiza ao longo de mais de um ano no debate sobre qual saúde pública queremos para o pais.

Paralelas à conferencia de saúde, outras conferências também vão acontecendo para desembocar na Conferência Nacional de Saúde  ou ser pautada no encontro nacional. Cito três exemplos dessa natureza: a Conferencia de Saúde Mental, que movimentou em 2022 um grande contingente de usuários e trabalhadores no debate referente a luta antimanicomial e como essa rede de cuidados deve ser organizar. Mesmo com o boicote do governo federal cancelando o encontro nacional em 2022, o debate e a organização popular já foram colocados e dados. O adiamento do encontro nacional só mostra o medo que o governo tem da organização popular e como essa pauta da saúde mental é importante e não será esquecida. O assunto e a pauta estão postos, queira o governo goste ou não.

Outro exemplo é a saúde bucal. Há quase 20 anos, em 2004, foi realizada a última Conferência Nacional de Saúde Bucal e, de lá para cá, muita coisa mudou na organização da rede de saúde bucal no SUS. Acredito que urge a necessidade de iniciarmos o processo de organização da IV Conferência Nacional de Saúde Bucal no Conselho Nacional de Saúde, entendendo seus desafios, obstáculos, mas também sua necessidade. Cabe ao controle social organizar trabalhadores, gestores e usuários para debater que saúde bucal deve ser levada para população brasileira, e inserida em qual modelo de sistema de saúde. Sempre aguardando o momento ideal, há quase 20 anos não se realiza uma conferência de saúde bucal. Quando o momento ideal virá? É necessário colocar a saúde bucal em movimento. Já!

Finalizando, não poderia deixar de falar da Conferência Nacional Livre, Popular e Democrática de Saúde. A Conferencia é uma atividade preparatória para a 17ª Conferência Nacional de Saúde e envolve na sua construção uma série de movimentos populares, instituições e organizações comunitárias. A Conferência Livre surge da iniciativa da Frente pela Vida, criada em 2020 por várias entidades que militam na saúde pública e no SUS. Elas se constituíram para oferecer respostas efetivas durante pandemia de Covid-19 diante do desastre na coordenação ao enfretamento da pandemia pelo governo Jair Bolsonaro.

Normalmente problemas complexos tem respostas simples e erradas. É necessário ouvir e debater com os diversos setores sociais para que a construção do modelo de sistema saúde que desejamos saia dessa energia social. A construção do SUS foi assim. Sem o povo na rua, sem o povo em movimento, o SUS será entregue de bandeja ao setor privado. No conforto da vida de classe média, dentro de casa, ou ficando horrorizado com as loucuras do governo Bolsonaro não avançaremos. O grosso da população está se virando para sobreviver. A pergunta que fica é: se os setores mais progressistas da sociedade, mais conscientes, e mais organizados não foram setores de vanguarda, capazes de iniciar as mobilizações, vamos cobrar a mobilização dos setores mais despolitizados e fragmentados do nosso tecido social?  Por isso: vamos as conferencias, vamos as ruas e, principalmente, vamos nos organizar, porque o paraíso não é perto.

Ilustração: Cristóvão Vilella