sexta-feira, 17 de junho de 2022

Os Generais e o SUS

Por Sylvio da Costa Jr.


Foi comemorado no dia 17 de maio o aniversário de 34 anos do SUS, pelo fato de nesse dia ter sido instituída na Constituição de 1988 os alicerces do então novo sistema de saúde, entre seus artigos nº196 a nº200.

O Sistema Único de Saúde é motivo de orgulho do povo brasileiro e, como chamamos de forma recorrente, um patrimônio do pais. Ele muda a lógica e a prática da oferta de saúde, uma vez que abandonamos um sistema federalizado na gestão e na assistência de saúde e estabelecemos um sistema municipalizado de cuidados, no qual saímos de uma oferta de serviços de saúde apenas para os brasileiros no mercado formal de trabalho e passamos a oferecer saúde a todos brasileiros e estrangeiros, trabalhadores formais ou não.

Esse modelo de saúde não advém de um parto sem dor ou de um nascimento ao acaso, como um raio em céu azul. Poeticamente, podemos afirmar que ao morrer o velho nasceu o novo; ou que ao cabo de uma ditadura militar e ao início da Nova República, o SUS foi implantado. Essas afirmações estão corretas, mas é importante contextualizá-las cronológica e historicamente, para que não acreditemos que o SUS nasceu de uma eventualidade — ou que uma cegonha o trouxe do além — a partir de meia dúzia de pessoas que se reuniu e teve a ideia genial de criar um sistema de saúde para todos.

Como estabelecido na Constituição Federal de 1988, em seu Artigo nº 196, “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas(...)”.  Logo, quando abordamos a temática da saúde pública, é impossível olharmos de maneira analítica sem entendermos a importância da variável econômica como produtora de saúde, ou de doença, a depender de suas consequências sociais. De tal modo, a oferta de cuidados em saúde também se organiza a partir do padrão epidemiológico da sociedade ou do território. Políticas econômicas que geram pobreza e miséria social para o conjunto da população geram também padrões de determinadas patologias e doenças. Nesse sentido, a saúde e a economia são campos ideológicos de disputas e conflitos que apresentam múltiplos vasos comunicantes. Em um ambiente economicamente degradado, ou seja, em uma economia doente, a população também adoecerá. 

Indo ao ponto do presente artigo, uma vez dado o golpe militar em 1964, e radicalizado em 1968 com o AI-5, o pais viveu economicamente uma sucessão de crises permanentes, com conseqüências no campo da saúde e no padrão de adoecimento da população. O golpe de 1964 interrompeu o debate que estava vivo na sociedade brasileira sobre as chamadas reformas de base, como a reforma agrária, a reforma tributária, a reforma urbana e a reforma sanitária. A quebra do regime democrático não só adiou a resposta para enfrentar os problemas e conflitos vividos pelo país naquele momento, mas prolongou e dificultou, por conseguinte, uma solução robusta para situações complexas. Assim, a ditadura foi um governo de crises sobrepostas, uma seguida da outra. O próprio período de crescimento econômico que o pais experimentou entre os anos de 1968 e 1973, conhecido como ‘milagre econômico’, se deu baseado em políticas econômicas de profundo arrocho salarial (reduzindo o salário mínimo em 1/3 de seu poder de compra) e ataque aos sindicatos — tudo com a justificativa de cortar a alta inflacionária. Como também recentemente, em 2016, o governo Temer, fruto também de um golpe, aprovou a ‘Reforma Trabalhista’, um ataque duríssimo ao sindicalismo nacional, sob a alegação de flexibilizar a contratação de mão de obra e gerar crescimento econômico. O resultado concreto disso foi que chegamos a 2022 sem direitos e sem crescimento econômico, assim como os anos do ‘milagre econômico’ foi para milhões de brasileiros um infortúnio.

Com a contenção à fórceps do poder de compra e grave crise social, a inflação no fim dos anos 60 caiu na marra. Foi realizado em seguida um processo de industrialização e investimento em infraestrutura do país, entre outras coisas, baseado majoritariamente no endividamento externo, como se não houvesse amanhã. Essa política de industrialização a jato e sem planejamento promoveu um fenômeno social nunca revertido, chamado ‘êxodo rural’, por meio do qual milhões de brasileiros das regiões mais pobres, notadamente o Norte e o Nordeste, saíram em caravanas, veículos precários de transporte chamados ‘paus de araras’, fugindo da miséria e do abandono para tentar uma vida melhor nas grandes cidades. Como o sistema de saúde da época era de usufruto apenas para os trabalhadores de carteira assinada, esse contingente gigantesco de pessoas estava entregue á própria sorte, no tocante a saúde, e sem acesso a consultas, exames e cirurgias. A assistência de serviços de saúde para o grosso da população nesse período se dava por entidades filantrópicas ou religiosas, nas quais os recursos eram escassos e a oferta de serviços se mostrava precária diante da massa gigantescas de brasileiros desassistidos.  Para se ter idéia, a mortalidade infantil era absurda. Morriam crianças pobres como moscas Brasil à fora. Mortes por diarréia infecciosa, subnutrição e fome faziam o país ser comparado internacionalmente a nações africanas em guerra.

Mesmo os trabalhadores no mercado formal de trabalho, aqueles que tinham acesso ao Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (Inamps) nunca tiveram atendimento gratuito. O antigo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e, depois, Inamps atuavam essencialmente por meio de convênios com a rede privada, ao invés de investirem na ampliação e qualidade da rede própria de serviços. O atendimento era majoritariamente conveniado com a rede privada, criando uma enxurrada de dinheiro público para ampliação da rede privada de serviços médicos.  O modelo de saúde gerido pelos militares não era apenas desigual, era perverso. Mesmo com um pequeno contingente de trabalhadores tendo direito ao usufruto do acesso à saúde, muitas vezes o cidadão não podia fazê-lo porque esse acesso era pago em clinicas e hospitais conveniados. 

O melhor retrato do “milagre econômico” foi a frase atribuída a Delfim Netto, ministro da Economia da época, dizendo que “o bolo precisa primeiro crescer para depois ser repartido”. Era como se ele dissesse: o crescimento econômico nesse momento não é para todos. Jamais foi. Durante o milagre econômico, o bolo realmente cresceu, mas nunca foi repartido de forma equilibrada e equânime. O próprio presidente da época, o general Emilio Garratazu Médici, afirmou que "a economia vai bem, mas o povo vai mal”, dando bem a dimensão do buraco em que estávamos metidos. Cabia perguntar: a economia vai bem para quem, cara pálida? Um famoso economista liberal, Edmar Bacha, apelidou o Brasil de então de “Belindia”, uma nação fictícia, formada pela união da Bélgica com a Índia, onde habitavam juntas, em um equilíbrio catastrófico, um pequeno país rico, branco, que consome bens e produtos importados (a Bélgica) e uma imensa nação pobre e desigual (a Índia). Estava claro que o milagre brasileiro era um gigante com pés de barro. O milagre econômico agiu como um cirurgião inapto, que não sabendo o que fazer diante de um paciente gravemente enfermo, o anestesia, mas não o opera, deixando-o lá, em um nirvana passageiro, enquanto a doença evolui.

Com a primeira crise do petróleo, em 1973, quando os países produtores árabes se negaram a vender óleo para países aliados de Israel, o sonho pueril do milagre brasileiro acabou de forma trágica, uma vez que toda fonte de energia no Brasil era importada e baseada no petróleo. E, no segundo choque em 1979, com a revolução do Irã, a ditadura ficou de joelhos. Decorrente da falta de organização e planejamento da ditadura militar para administração do pais a crise econômica explodiu, pois naquele momento tínhamos um pais com os mesmos problemas do passado e alguns adicionais, como alto endividamento externo e a hiper inflação. O fim da ditadura não se deu por fruto da generosidade dos generais, mas por conta do caos social e econômico quase ingovernável. O pais estava no fim dos anos de 1970 economicamente caindo aos pedaços.

O último general que governou o pais entregou ao governo Sarney, em 1985, uma inflação de 215% ao ano e uma crise intitulada de “colapso da dívida externa”. De tanto endividar o pais em fundos, bancos e organismo internacionais, como por exemplo o FMI, o Brasil não conseguia honrar compromissos externos básicos de pagamento de empréstimos, todos em dólar. A ditadura militar leva o país para um pântano de hiperinflação, associado a um crescimento econômico pífio, com o desemprego nas alturas, e um endividamento externo que funcionava como uma mão estrangulando e asfixiando o pescoço do Brasil. A ditadura militar entrega a nação para os governos civis subseqüentes nesse cenário, com um boom de desigualdade e altíssima concentração de renda, uma verdadeira selvageria social. A herança da ditadura no campo da economia levou o governo civil subseqüente à moratória da divida externa. Em 1987, diante do obvio, o país quebrou!

Vale lembrar para os mais novos, aqueles que não viveram nem estudaram esse período, que a ditadura militar não produziu apenas repressão, mortes e torturas, como se isso já não fosse muito. Tudo que os governos civis tentaram fazer a partir de 1985 foi consertar o estrago militar promovido no país do ponto de vista econômico e social. 

O SUS nasce, a rigor, como uma resposta corajosa diante da gravíssima crise social que o Brasil vivia.

Essa crise monumental obviamente carrega junto de si o sistema de cuidados em saúde e de aposentadorias. O Inamps vai à lona.  Impossível falar da origem do SUS sem contextualizar o momento social, econômico e político da época. O SUS não nasce de parto normal, muito menos sem dor, mas em um país em convulsão. Por isso, devemos nos orgulhar não apenas do sistema de saúde que temos hoje, por si só, mas também de todos os brasileiros que, tijolo por tijolo, ajudaram e ajudam a construir o mais ambicioso sistema publico de saúde do mundo. Viva o SUS, viva o povo brasileiro e viva a democracia. Ditadura nunca mais!


Reforma Agrária, uma importante fábrica de agricultores familiares

Por Mario Lucio M. Melo Jr.

(engenheiro agrônomo)


A frase exaustivamente repetida em um canal de TV “o agro é isso, o agro é aquilo” mostra principalmente exemplos de agricultura exportadora (produtos que são vendidos para fora do Brasil) ou agroindustrial (que vão para a indústria de grande porte, são transformados em um ou mais subprodutos e, em grande parte, são também exportados). Depois de uma chuva de críticas e caricaturas, vindas de vários setores da sociedade (brasileiro faz piada de tudo), o tal canal de TV mudou o rumo e passou a mostrar importantes setores da agricultura de alimentos abastecedores de nosso mercado, que ainda não havia citado — e, por último, mais recentemente, trata das “pessoas” que fazem o agronegócio funcionar.

Todas as pessoas que trabalham nos mais diversos ramos da atividade são, sem sombra de dúvida, muito importantes. Porém o tijolo básico dessa catedral é a agricultura familiar. Ela é a base em que se assentam a força e a inteligência dessa atividade básica para a nossa sobrevivência. Sem isso, passaríamos fome e não teríamos matérias-primas para tocar importantes setores de agroindústrias básicas para nossa segurança alimentar. A propriedade agrícola familiar, onde trabalham o/a cabeça da família e seus agregados, alicerça e sustenta toda a cadeia de atividades dos alimentos que vão para a nossa mesa; melhor ainda, alimentos limpos e saudáveis.

Nesta altura do artigo você deve estar se perguntando: “Meu Deus, mas qual será a diferença entre essas agriculturas?”. Vamos listar, lado a lado, as principais diferenças:

Pelas evidentes diferenças reveladas por cada forma de produzir, pode-se deduzir as grandes forças que fazem uma verdadeira e desproporcional queda de braço na imprensa, na mídia e na política governamental quando é aprovada ou rejeitada cada “Política Pública” para o setor. Imagine os bilhões que são disputados pelos serviços de transporte das safras (empresas de caminhões, trens, barcos, portos etc); os bilhões que são disputados pela indústria de maquinário agropecuário (caminhões, camionetes de serviço, equipamentos para irrigação, estufas, armazéns, destilarias etc.); i os bilhões que são disputados pelos donos dos pacotes tecnológicos de herbicidas, sementes transgênicas, agrotóxico e adubos químicos, todos patenteados por empresas multinacionais. Essa lucrativa engrenagem gringa distribui uma pequena migalha para uma parcela do “Agro”, que afirma, aos quatro ventos, ser o setor que sustenta positivamente o PIB do Brasil. 

Imagine, você leitor, se TODO o lucro que sangra para a corrupção política e as indústrias estrangeiras ficassem no país para financiar um processo de agricultura agroecológica e a reforma agrária, que aproveitasse os milhares de brasileiros que desejam produzir alimentos saudáveis e garantir a sua renda e de seus familiares em suas próprias terras diretamente e indiretamente de outros milhares de empregos indiretos; que isso acarretaria para fortalecer indústrias e comércios, movimentando riqueza interna dentro do nosso país. 

Todos os países desenvolvidos e de economia forte fizeram sua reforma agrária, que é uma verdadeira fábrica de agricultores familiares. Os Estados Unidos fizeram a sua durante o século XIX, com a “Marcha para o Oeste”, culminando com o Homestead Act, ou Lei do Povoamento, em 1862. Essa lei, instituída durante o governo de Abraham Lincoln, ofertava lotes de terra no Oeste a um preço baixíssimo para americanos interessados e exigia em troca que a terra vendida fosse habitada e cultivada. Já na Europa, com o fim das monarquias e do feudalismo, na transição para a revolução industrial, os pequenos agricultores tiveram acesso à terra. Esses são apenas dois exemplos entre outras experiências de reforma agrária em todo o Mundo. Porém, como a história funciona em ciclos e nem tudo que é bom dura para sempre, com a concentração financeira nos bancos, que financiam as safras e os investimentos, em cada momento de crise econômica ou desastre climático, as instituições financeiras tomam as terras dos pequenos e as entregam em blocos maiores para os seus investidores. Esta situação gera então uma rápida e crescente concentração de terras e uma simultânea luta por uma reforma agrária agroecológica e sustentável em todo o planeta.

No próximo artigo discutiremos o que é uma Reforma Agrária agroecológica e sustentável.

Por que a governança das águas importa

por Angelo José Rodrigues Lima

Uma boa gestão das águas pode beneficiar 48 milhões de pessoas em bacias que são estratégicas para 20% do PIB nacional e para 14 Estados.*

Em 1997, tendo uma ampla participação de atores e instituições, a sociedade brasileira conquistou — e foi aprovada — a Política Nacional de Recursos Hídricos, que tem como objetivo garantir água em quantidade e qualidade para todos os usos. 

A partir dessa lei, a gestão das águas deve ser realizada de forma descentralizada e participativa, e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh) é constituído abrindo espaço para que os setores públicos, usuários públicos e privados e organizações da sociedade civil dialoguem por meio de instâncias para resolver os desafios e problemas relacionados as águas.

O Singreh é um sistema complexo e ousado, assentado na necessidade de intensa articulação e na ação coordenada entre as diferentes esferas, atores e políticas para a sua efetiva implementação, indicando assim que a governança é um elemento importante deste Sistema.

Rapidamente, vários atores se mobilizaram e atualmente o Brasil conta com 243 Comitês de Bacias Hidrográficas (CBHs), sendo que dez destes são CBHs em rios de domínio da união, como o CBH São Francisco e o CBH Doce.

Identificando que a governança é um elemento central para obtenção dos resultados de gestão das águas, representantes de organizações da sociedade civil, instituições do poder público e setor privado, mobilizaram-se para construir um Sistema de Monitoramento da Governança das Águas.

O Sistema está representado pela construção do Observatório da Governança das Águas (OGA Brasil), que atualmente é uma rede de 61 instituições e 22 pesquisadores (as) e foi construída a ferramenta de monitoramento da governança — o Protocolo de Monitoramento da Governança das Águas, lançado no fim de 2019.

Por que monitorar a governança pode beneficiar a população?

A governança prepara a gestão para implementação de programas e projetos; o monitoramento da governança amplia os resultados dos Comitês de Bacias e dos órgãos gestores para garantir água em quantidade e qualidade para todos os usos.


Figura 1: A governança prepara a gestão.

Fonte:https://www.provalore.com.br/governanca-publica-saiba-a-diferenca-entre-governanca-e-gestao/


A gestão das águas apresenta uma série de instrumentos de gestão, entre eles os planos de bacias. Ao elaborar o plano, identifica-se qual é a situação real da bacia. A partir deste diagnóstico, programas e ações são preparadas para garantir água para todos os usos e podem ser construídas ações para prevenção com relação a secas e cheias.

Tendo governança, os Comitês de Bacias elaboram seus planos de forma integrada com outras instituições, temas e instrumentos de planejamento de outras políticas públicas. Isso significa que os atores dos comitês estão mais articulados e integrados, que as informações serão transparentes e as mais precisas para uma adequada tomada de decisão sobre a gestão das águas na bacia. 

Além disso, a governança prepara os membros do Comitê e do órgão gestor para um olhar integrado e sistêmico sobre os desafios do monitoramento, do desmatamento, do manejo inadequado no uso e ocupação do solo na área urbana e rural. Portanto, a governança é um elemento central para que os mais de 243 comitês de bacias no Brasil, tenham ainda mais resultados.

A aplicação do Protocolo de Monitoramento da Governança

A partir do segundo semestre de 2020, o Protocolo vem sendo apresentado às instâncias de gestão das águas no Brasil. Até o momento, 16 CBHs de bacias estratégicas do Brasil e a Companhia de Gestão de Recursos Hídricos do Ceará (COGERH) aderiram ao monitoramento da governança das águas. 

O monitoramento da governança desses comitês e da COGERH(CE) pode beneficiar cerca de 22% da população brasileira, uma parte do PIB nacional e grande parte dos PIBs estaduais.

Tendo governança nestes comitês e no órgão gestor, eles colaboram para garantir segurança hídrica, o desenvolvimento social, econômico e ambiental e das atividades que necessitam do uso da água nestas bacias.

A importância econômica das bacias.

Os 16 CBHs e a COGERH estão em bacias hidrográficas importantes, onde acontecem diversas atividades econômicas e que representam cerca de 20% da arrecadação do PIB nacional e estadual.

A Tabela 1 apresenta a estimativa de valor do PIB com algumas referências nacionais, no caso da Bacia do São Francisco; as referências estaduais, nos casos das Bacias dos rios de domínio do Estado, e a arrecadação anual da COGERH, que tem responsabilidade de executar a gestão em todo o estado do Ceará (CE).

Tabela 1: Estimativa dos PIBs das Bacias cujas fontes de informação são diversificadas, já que nem sempre a informação do PIB é realizada a partir da bacia hidrográfica. Elaboração própria

 

Pela tabela 1, é possível identificar quais foram os 16 CBHs que aderiram ao monitoramento da governança, pois estes têm os mesmos nomes das bacias hidrográficas.

O grande significado da adesão dos CBHs e da COGERH ao monitoramento da governança é que estes já perceberam a importância da governança para ampliação dos resultados de gestão e para garantir os múltiplos usos das águas.

A governança ajuda a se antecipar nos desafios de garantir água para todos os usos, mesmo nos tempos das mudanças climáticas.

*Angelo José Rodrigues Lima – Biólogo (UFRRJ), mestre em Planejamento Ambiental (COPPE/UFRJ), especialista em Recursos Hídricos (UFPB), doutor em Geografia (UNICAMP) e atualmente exerce a função de secretário executivo do Observatório da Governança das Águas – www.observatoriodasaguas.org 

Artigo também publicado na Revista Página 22 em 16/05/2022

Narciso e o lago podre do capitalismo

Por Eduardo Alves



Echo and Narcissus, John William Waterhouse. (Detalhe). Walker Art Gallery (Crédito da Imagem Domínio Público)


O capitalismo conseguiu a façanha, nada natural, de fazer com que Narciso impregnasse vida, corpo e alma das pessoas. O que ou quem era e é Narciso apresentado pela mitologia precisa ser graciosamente recuperado. E, nesse caso, não importa muito a origem, mas o seu significado e a sua influência na organização da vida dos seres humanos. Se a origem do mito é muito antiga, compartilhada antes pelos indo-europeus ou em lendas do povo Zulu, agora não é mais importante. Vamos ficar com o mito grego de Narciso e a imagem na água, nos lagos, nos rios, onde o movimento das águas mudam a forma mas só se enxerga beleza. A contemplação de si por si mesmo é o fundamental nessa composição. E se Narciso acha feio o que não é espelho, é tudo isso, mais profundo e abrangente. Afinal, não se trata apenas do reflexo da imagem, mas de sua própria idolatração através da autoimagem refletida.

O lago podre do capitalismo aposta na personificação de arquétipos sob a égide do individualismo, impulsionando os Narcisos que habitam em nós para o aprofundamento da estética da guerra. Afinal, nada melhor para os interesses imediatos do lucro e para se “ganhar a qualquer custo” do que a guerra. “Nunca perder” é uma ilusão que já apareceu em tempos passados como a “lei de Gerson”, apresentada para as pessoas nos seguintes termos cunhados pelo professor e psicanalista pernambucano Jurandir Freire: “o desejo que grande parte dos brasileiros tem de levar vantagem em tudo”. Lamentavelmente não são só as pessoas brasileiras, mas é o que predomina em todo o mundo e na América Latina.

O reflexo sombrio do narcisismo no lago podre do capitalismo produz a pulsão destrutiva da potência humana. A potência criativa – o opus da vida – fica impedida e desprezada para que o lucro se sobreponha e o controle das coisas transforme as pessoas em objeto. Melhor ainda se a grande maioria das pessoas colaboram com a objetificação e se apresentam como mercadoria, em imagens, ganhos e gastos, a desfilar sua fixação por si em detrimento da dolorosa nudez da objetividade e do conhecimento.

O trabalho não tem sido historicamente um meio de produção criativa. No capitalismo, o trabalho, este no qual vivemos, é um emprego para sustentar a vida. Quando falamos em trabalho automaticamente aparece, para a grande maioria das pessoas, como o meio de sustento, o modo como mantenho a mim e aos próximos com dinheiro. O grande ganho e objetivo é a mercadoria dinheiro, que pode comprar as bases para a sobrevivência e, para tanto, tenho que ser o melhor, pois é necessário disputar todas as vagas, todas as possibilidades e cultuar o primeiro para mim. Assim se garante que se tenha, mesmo que os iguais a mim não tenham. Mas com os ventos e ares do narcisismo, nutrido pela ideologia do individualismo, cada pessoa tem que se garantir e o outro já não é mais problema de cada uma dessas pessoas.

Nas sociedades mercantis capitalistas, o culto ao indivíduo e a pulsão narcisista se aprofundam como uma necessidade, pois esse sistema pressupõe, como território ideológico, indivíduos livres, autônomos, independentes e proprietários de mercadorias, sendo uma delas a força de trabalho. Sem a categoria central do indivíduo e sua fetichização, os contratos no mercado não se realizam plenamente. O que predomina transforma tudo em mercado e no mercado é preciso ter para adquirir as coisas. A posse, sensação advinda da propriedade, traz o sentimento de vencedor, de poder, de supremacia, face às hierarquias que a propriedade realiza culturalmente. E cria os maiores obstáculos para o coletivo. Assim, faz todo o sentido que individualismo, egoísmo, posse e acumulação se organizem tão bem na figura da energia do “herói” e entorpeçam a alma para ações vaidosas, autocentradas e insensíveis ao máximo.

Apresentar a alternativa a essa ideologia que se apodera do consciente e desses sentimentos que fazem o inconsciente se sobrepor é fundamental. Para isso é necessário apostar na mais ampla unidade na diversidade. Os iguais, que vendem nesse mundo a força de trabalho para sobreviver, são diferentes e singulares entre si. E justamente nessa diferença que borda a igualdade social fundamental há os fluidos de potência para a construção da inteligência coletiva. E é nessa inteligência coletiva, flambada de solidariedade e enriquecida com a dialética das transformações, que será fundida a estética, a ética e a cultura. Superar todos os efeitos morais, construir a inteligência coletiva e avançar para um mundo em que a nossa relação com a natureza e entre nós cresça, floresça e se aprofunde em potência criativa – e não destrutiva – no processo criativo de transformação são desafios de hoje.

Transformar o Narciso que nos habita em aliado, vendo-nos, a todos nós, na mesma e única imagem refletida, ousando encarar frente a frente a nudez de nossa natureza ilimitada, de nossa vacuidade e, sobretudo, do movimento dialético das águas por traz da ilusão fetichizada da permanência das coisas. Está no movimento das águas, dos lagos e dos rios o sinal de que nos vemos, a todos, no mesmo mar.



Eduardo Alves

Nasceu na periferia da cidade do Rio de Janeiro e desde os 14 anos atua em ações democráticas. Fez parte da Teologia da Libertação e atua com formação política desde os 18 anos, em partidos de esquerda, movimentos sociais e organizações da sociedade civil. Cursou Ciências Econômicas na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi da direção do Observatório de Favelas, coordenador da ESPOCC – Escola Popular de Comunicação Crítica – e colaborador do IMJA-Instituto Maria e João Aleixo - desde a sua fundação. Nos dias atuais é colaborador e organizador do IPAD e identifica-se como intelectual orgânico da periferia.

Publicado originalmente na Pressenza – Agência Internacional de Imprensa em 16/11/2020

POR UMA NEOBOSSA NOVA, POR UM NEO-ESPÍRITO CRÍTICO E LIVRE E TUDO NEONOVÍSSIMO

 Guilherme Maia


Tenho – lágrimas – quarenta e dois anos e passei minha infância e adolescência na Zona Sul carioca, tendo momentos de Tijuca onde residiam meus avós paternos e minha avó materna. Esse balanço Leblon-Tijuca moldou uma parte de meus pensamentos com projeções, acho, que continuarão no meu jeito de ser até o último suspiro.

Escrevo essas mal-traçadas-linhas sem um assunto preordenado e a exposição que estou fazendo sobre meus tempos-idos já me inunda de imagens e referências geográfico-espirituais. Daí, então, vamos falar sobre alguma coisa aqui: o despojamento da Zona Sul de um lado e um recato tijucano meio Nelson Rodrigues da vida, de outro.



Hoje, tais características já estão volatilizadas, porque, se de um lado, a Garota de Ipanema deu espaço para o nazi fascismo pró-segregação e armamentista; por parte da Tijuca, os ares da boa boemia cheiram cada vez mais a Noel Rosa e Aldir Blanc suplantando, pois, aquele excessivo recato.

Com tanta digressão Ipanema-Tijuca surge aqui na minha mente aquele velho movimento que surgiu desses bairros e que não era só música e canção: a Bossa Nova.

Era uma maneira de ser, uma claridade iluminista, um frescor de viver – tudo contrário ao predomínio de um general Amaury Kruel, por exemplo, que, por sua vez, infelizmente, tomou os espaços simbólicos da beleza na contemporaneidade do Rio. Falo dessa figura nefasta como símbolo e não como o degenerado que foi em vida por um simples fato: a formação do esquadrão da Morte veio no mesmo espaço-tempo em que João Gilberto desenvolveu a nova forma de tocar violão.

Contradições sempre ditaram o Brasil e especialmente o Rio de Janeiro, mas o que vemos com a atual difusão exagerada do medo na cidade é como um monotom: o medo e sua contrafação - a persecução policialesca e o fanatismo religioso - estão no lugar do Samba de uma Nota Só (num outro contexto ao da simbiose letra-música de Tom Jobim e Newton Mendonça).

Agora eu consigo traçar uma linha-mestra nesse texto!

A Bossa Nova trouxe uma ponte de comunhão entre a praia e a favela e essa ponte, em sua configuração mais crítica, vinha de outro símbolo carioca: Nara Leão.

Ela mesma, garota Zona Sul que esteve lado a lado com João do Vale e Zé Kéti, respectivamente o nordestino e o favelado no musical Opinião, homônimo à composição do sambista – um reclame das condições de moradia dos excluídos.

Enfim, era uma artista politizada e fraternal aos que sofrem os horrores da concentração de renda senegalesa brasileira, as vítimas do autoritarismo e o estigma da exclusão social. Era uma militante de esquerda sobrepesada por um sorriso carismático e marcante, um frescor mesclado à luta dura contra a subserviência ao terror.

Nos dias de hoje, essa militância passou a ser mais frontal do que na época de Nara Leão e, por conta disso, a militância partidária avant la lettre é, além das questões do velho abismo social brasileiro, também lutar por dignidades de escolhas individuais. Atualmente no país, ainda não se consolidou a esfera de liberdade individual liberal do século XVII mesmo.

Assim, na vasta paleta de cores partidárias brasileiras, nada mais neobossa-nova do que um sol sorridente, por que toma partido pela preocupação econômico-social, mas também da luta de liberdades individuais frente a um Estado com aspirações totalitárias e uma sociedade civil embalsamada por umas imposturas que legitimam a ingerência na esfera privada do cidadão.

Permeando o enleio dessas eternas contradições da salvelinda pátria está a bandeira solar do socialismo conjugado com a liberdade. Alguns compay sucumbiram ao sistema bruto de corrupção desenfreada que emana do próprio fazer político, mas, colhidos os cacos da luta, um sorriso ainda se sai bem senão intacto do mal de nossa sociedade. Planou por sobre a tentação e o seu sol continua sorrindo.

Cortando para outro ponto desse texto: como dizia acima, o carioca’s way ficou entranhado em mim, como o falar meio chiado e o “é m/ê/rmu’, um saudosismo indevassável de um tempo não vivido, como se o Rio de janeiro em sua belle époque fosse a própria Paris, como se a Galeria Cruzeiro antiga fosse o Café de Flore, - bom, para mim é assim mesmo!

Então, houve uma ruptura brusca na minha vida, a “falência generalizada dos órgãos financeiros da família”, o que forçou meu pai a trazer-nos todos para uma cidade serrana chamada Teresópolis e por aqui fiquei casando e tendo filhos.

Tamanha beleza nas serras, um lugar de ares bucólicos e paisagens de enlevo. Chama a atenção sua insistente Mata Atlântica que reveste seu solo e o recorte preciso das montanhas que marcam o perfil acolhedor dessa cidade esplendorosa marcada por seus montes e vales.

Por outro lado, essa cidade sui generis me espanta até hoje por ser um centro de reacionarismo entranhado e inexpugnável. Soube que em plenos 80 e 90 a cidade foi governada por um capo de Nova Iguaçu, que além de ser envolvido por contravenções e crimes, era um “messias” bem ao gosto do sebastianismo ibérico. Além disso, tivemos aqui vereadores que serviram ao DOI-CODI eleitos e reeleitos em plena abertura política. O número excessivo de igrejas “politizadas” e uma segurança pública do tipo “está tudo calmo.... E será por quê? ”, também salta aos olhos.

Acontece que no meio desse caldo reaça e fascistóide, - até violento mesmo: se você se dispor a discutir a necessidade de aumento do salário mínimo com uma pessoa na Praça da Santa Teresa, por exemplo, pode sair com fraturas e escoriações, - surgiu um novo grupo: corajosos e corajosas não se intimidam e se propõem a desfazer o nó mental que infligiram ao povão da cidade.

Com essa chegada, foi-se tomando espaço na medida do possível e da perseverança de todos os envolvidos. Agora já tem assento em programas da TV local, como a de um cara que entende e prega que o MST é um grupo terrorista financiado pelo Narcos...

Enfim, a ponte que eu precisava: Teresópolis já pode respirar emergindo de uma opressão sufocante, já há espaço de debate e enfrentamento a uma ideologia de submissão masoquista que iludia e dominava o povão. Agora já tremula o sol sorridente e já se pode esperar de que um dia não teremos mais políticos contraventores a mando de Nova Iguaçu, empresários sedentos por grana mole, médicos que, por coincidência, resolvem exercer suas funções SUS sempre à beira de uma eleição e outros simplesmente loucos mesmo.

A alternativa foi dada e esta consolida, nesse momento, uma média de novecentos e oitenta votos, os quais irão aumentar cada vez mais na medida inversa em que as políticas de curral eleitoral forem demonstrando sua ineficácia frente às necessidades básicas da população teresopolitana.

O sol sorridente da proposta de igualdade e liberdade irradiará em nossos corações e baterá forte uma esperança de reviravolta numa cidade dominada pelo medo. Surge disso tudo um NEO-ESPÍRITO CRÍTICO E LIVRE e uma NEOBOSSA NOVA. Já nasce neo, pois não teve o tempo de formar uma “nova” e o tempo passou tão longo que já teve de nascer como NEONOVA para fazer frente ao atraso de séculos.

Não temer o avanço é como música na política e a simbiose percussão-melodia nas cordas do violão de João Gilberto é como uma ruptura epistemológica com o passado, com a mesmice (agora eu descasquei mesmo). Assim o é com a navegação da garotada por uma cidade como Teresópolis (tão naturalmente bela e tão degradada pelo fator político): a rapaziada chegar chegando ameaça os encastelados e sobressalta os arrivistas e sicofantas da vida, quando conquistar vai romper com tudo e trazer o belo, o belo popular legítimo.

E a Nara Leão com isso tudo que falei? Oras, capitaneia o movimento do sol sorridente a Srta. Maria Bertoche, que debate os reais problemas sem tergiversar em falácias “moralistas” que mais servem para controlar o povão pelo medo do que por pregar uma sonhada “ordem”, que não há. O símbolo de Nara engloba a precisão do objetivo de dignificar um povo sofrido pelos tais “donos da moral”; isso tudo com tom suave, afinado e melífluo; afinal, para que perder o amor, o sorriso e a flor para o tacape? Quem está na razão está com a força (já dizia o filósofo indiano Obi-Wan Kenobi).

E toda a beleza natural de Teresópolis vai ter seu merecido protagonismo ao sobrepujar o rancor, a frustração e o medo de uma ideologia retrógrada de dominação rasteira de um povo criativo e resistente. Esse sol vai sorrir muito nessa cidade e dela irradiará para o Brasil inteiro.











Exu e o racismo religioso

Por Marlucio Luna



A vitória da Grande Rio no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro carrega inúmeros simbolismos. O enredo “Fala, Majeté! Sete chaves de Exu” representou, antes de tudo, a denúncia do racismo religioso e dos ataques desferidos contra as religiões de matriz afro-brasileira. O orixá homenageado pela agremiação de Duque de Caxias é um dos principais alvos de preconceito quando se fala em Candomblé e Umbanda. Envolto em uma névoa de falsas premissas, desconhecimento e intolerância, Exu está longe de representar o mal ou ser o diabo.

A cosmogonia africana se distancia dos maniqueísmos limitadores do cristianismo. Exu simboliza felicidade, espontaneidade, pujança, força, prosperidade — e também os seus opostos. Ele carrega a dualidade que todos nós trazemos. Ao mesclar o bem e o mal, a felicidade e a tristeza, o pecado e a santidade, o remédio e o veneno, Exu assume tons nietzscheanos, pois é humano, demasiado humano. Além disso, cabe a ele ser o guardião dos orixás e realizar a comunicação Orun-Ayê — entre os mundos espiritual e físico.

Exu está intimamente ligado às festas e às artes, manifestações humanas na essência.

Responsável por abrir caminhos e trazer prosperidade, o orixá zela pelo bem-estar material de quem a ele recorre. Sua preocupação é ver satisfeitas as necessidades do corpo e da alma da pessoa. Contudo Exu atua de acordo com o merecimento de cada um. Nada é gratuito. O senso de justiça que o guia se pauta pela correção e pela verdade na relação com o homem. Plenitude e equilíbrio são as palavras-chave para quem busca compreender a essência e a força deste orixá tão humano.

Raízes do preconceito — A perseguição às religiões de matriz afro-brasileira se estabelece a partir da incapacidade de compreensão da cosmogonia do povo escravizado e de seus descendentes. O ataque às crenças que chegaram ao Brasil na diáspora africana origina-se, primeiramente, na necessidade da afirmação do poder dos senhores. Durante três séculos, o catolicismo desempenhou a função de religião oficial do Estado. O branco impunha sua visão de mundo, na tentativa de eliminar qualquer vestígio de identidade do povo negro. Impedir a manifestação da fé trazida da África era uma das mais duras facetas da escravização. Afinal, cultuar entidades que estimulam a liberdade e a rebeldia representava um risco à “paz nas senzalas”.

O catolicismo estimulou a associação entre as figuras de Exu e do demônio como forma de desencorajar os cultos aos orixás, já que cabe ao Senhor dos Caminhos a comunicação entre o homem e o mundo espiritual. De acordo com a ótica difundida pelos padres e disseminada pelos senhores, a mediação estabelecida pelo “demônio” levaria a alma do negro para o inferno. Essa leitura influenciou diretamente as denominações evangélicas surgidas posteriormente e impregnou o imaginário popular.

O surgimento da Umbanda, uma religião tipicamente urbana, aproximou as cosmogonias africana e católica. A inclusão de Jesus e dos santos nos rituais dos orixás uniu os dois universos. O livro “A morte branca do feiticeiro negro — Umbanda e sociedade brasileira”, do sociólogo Renato Ortiz, mostra em detalhes como se deu essa africanização do cristianismo na Terra Brasilis. No entanto, ainda que menos rejeitada que o Candomblé, a Umbanda sofreu as mesmas perseguições por parte da Igreja Católica e, posteriormente, dos evangélicos. A associação de Exu— o orixá das festas, dos prazeres mundanos — ao diabo se manteve. Para o cristianismo, alegria e gozo jamais poderiam pavimentar a estrada rumo à salvação.

Sociedade intolerante — A intolerância religiosa é uma característica do processo de construção histórica da sociedade brasileira. A separação entre Estado e Igreja só ocorreu em 1890, por meio do Decreto 119-A da recém-nascida República, rompendo com uma lógica que persistia desde o período colonial. Porém os efeitos práticos para os adeptos do Candomblé e da Umbanda não foram sentidos por quem seguia essas religiões de matriz afro-brasileira. Até os anos de 1930, faziam parte do cotidiano as invasões de terreiros e a prisão de pais e mães de santo, bem como a detenção de qualquer um que explicitasse a fé no orixás, seja por meio do uso de vestimentas e ou posse de elementos ritualísticos (contas, guias, atabaques, utensílios destinados às obrigações dos orixás etc.). Não por acaso, as principais vítimas do racismo religioso eram negros e negras. Oficialmente, a escravidão podia ter acabado, mas a perseguição ao povo preto se mantinha na ordem do dia das autoridades políticas e policiais.

A vulnerabilidade da liberdade religiosa persistiu durante a maior parte do século 20. Tanto que a Constituição de 1988 precisou reafirmar o direito óbvio de o cidadão exercer a sua fé sem obstáculos. Tal necessidade se deve ao fato de a religião não pertencer apenas ao mundo privado ou restringir-se aos templos ou terreiros. Ela se manifesta no vestuário, na música, na arquitetura, na expressão artística, nos adereços, nos objetos de uso cotidiano, na comida e também na liberdade de

utilização de espaços públicos em igualdade de condições com as demais religiões. A laicidade fornece à sociedade ferramentas de fomento à convivência respeitosa entre as variadas formas de expressão da fé.

Nos últimos 20 anos, a intolerância religiosa gradativamente ganhou um novo impulso.

A forte presença evangélica no Congresso Nacional e a formação da Frente Nacional Evangélica serviram de estímulo à eleição de lideranças religiosas para cargos no Executivo nas cidades e nos estados. Outros efeitos do aumento dessa influência política foram a presença cada vez mais constante de evangélicos com perfil conservador em postos administrativos de ministérios ou secretarias e o surgimento do ativismo religioso no seio do Poder Judiciário.

A partir de 2016, a agenda restritiva e autoritária de suspensão de direitos das minorias conta com o apoio incondicional de evangélicos, notadamente os neopentecostais. Os ataques a religiões de matriz afro-brasileira fazem parte da estratégia reacionária. Esses grupos religiosos reivindicam uma suposta hegemonia moral e usam nos espaços seu poder de mobilização para influenciar a formulação de políticas públicas e leis.

O racismo religioso praticado contra o povo de santo deixou de ser velado. Hoje ele se dá por meio de ameaças, confisco de terreiros, agressões físicas e cerceamento da prática religiosa em comunidades sob o domínio de traficantes “convertidos” por pastores neopentecostais. Dados do Disque Direitos Humanos indicam que o número de denúncias de intolerância religiosa saltou de 537 no ano de 2017 para 916, em 2021 — crescimento de impressionantes 70,57%. Cabe destacar que o levantamento não inclui os casos de homicídio e de expulsão de lideranças religiosas de comunidades e bairros da periferia.

A perda de direitos impõe restrições graves aos adeptos do Candomblé e da Umbanda. Eles são impedidos de usar vestimentas religiosas e de utilizar áreas públicas para oferendas ou rituais coletivos. O povo de santo vive hoje um processo de desterritorialização, com a destruição de seus espaços sagrados.

Engana-se quem pensa que esse processo é fruto apenas da ação dos traficantes

“convertidos”. Muitas vezes ele ocorre por iniciativa de empresas privadas ou instituições públicas. Um exemplo é a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, em São Gonçalo (RJ) — tida por muitos como o primeiro do terreiro umbandista do Brasil.

O imóvel foi demolido em 2011, por determinação da então prefeita Aparecida Panisset, uma evangélica da linha neopentecostal. Ela recursou-se a receber lideranças da Umbanda e, apesar dos apelos em defesa da preservação da casa, permitiu a derrubada da construção. No lugar, surgiu uma loja de esquadrias de alumínio.

De volta ao início — Retomando a discussão sobre a importância do desfile da Grande Rio, cabe destacar que ele não representou um ataque às demais religiões, mas a defesa da tolerância e da necessidade de convivência harmoniosa entre as diversas formas de manifestação das crenças. A cosmogonia africana considera natural a diferença e a vê como importante elemento de construção das identidades.

O respeito ao indivíduo permeia o Candomblé e a Umbanda. Questões como orientação sexual, classe social ou nível de instrução não têm nenhuma importância para o povo de santo. A admiração em uma comunidade de terreiro é conquistada por meio da dedicação aos orixás e entidades, pela devoção aos preceitos religiosos e pela reverência à ancestralidade.

As religiões de matriz afro-brasileira aspiram apenas manter a sua cultura livre de ataques. Não querem entrar em disputas teológicas ou fazer proselitismo. A Umbanda e o Candomblé se fazem presentes na vida da maioria dos brasileiros, ainda que de forma despercebida. Vestir branco no réveillon, jogar flores no mar ou pular sete ondas para pedir sorte no ano novo são costumes retirados dos rituais seguidos por filhas e filhos de santo. E foi esta mensagem que Exu levou para a Marquês de Sapucaí: viver em harmonia com quem pensa diferente, ser feliz e próspero, respeitar a ancestralidade e encarar a vida como um presente da espiritualidade.

Laroyê, Exu!