sexta-feira, 17 de junho de 2022

Exu e o racismo religioso

Por Marlucio Luna



A vitória da Grande Rio no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro carrega inúmeros simbolismos. O enredo “Fala, Majeté! Sete chaves de Exu” representou, antes de tudo, a denúncia do racismo religioso e dos ataques desferidos contra as religiões de matriz afro-brasileira. O orixá homenageado pela agremiação de Duque de Caxias é um dos principais alvos de preconceito quando se fala em Candomblé e Umbanda. Envolto em uma névoa de falsas premissas, desconhecimento e intolerância, Exu está longe de representar o mal ou ser o diabo.

A cosmogonia africana se distancia dos maniqueísmos limitadores do cristianismo. Exu simboliza felicidade, espontaneidade, pujança, força, prosperidade — e também os seus opostos. Ele carrega a dualidade que todos nós trazemos. Ao mesclar o bem e o mal, a felicidade e a tristeza, o pecado e a santidade, o remédio e o veneno, Exu assume tons nietzscheanos, pois é humano, demasiado humano. Além disso, cabe a ele ser o guardião dos orixás e realizar a comunicação Orun-Ayê — entre os mundos espiritual e físico.

Exu está intimamente ligado às festas e às artes, manifestações humanas na essência.

Responsável por abrir caminhos e trazer prosperidade, o orixá zela pelo bem-estar material de quem a ele recorre. Sua preocupação é ver satisfeitas as necessidades do corpo e da alma da pessoa. Contudo Exu atua de acordo com o merecimento de cada um. Nada é gratuito. O senso de justiça que o guia se pauta pela correção e pela verdade na relação com o homem. Plenitude e equilíbrio são as palavras-chave para quem busca compreender a essência e a força deste orixá tão humano.

Raízes do preconceito — A perseguição às religiões de matriz afro-brasileira se estabelece a partir da incapacidade de compreensão da cosmogonia do povo escravizado e de seus descendentes. O ataque às crenças que chegaram ao Brasil na diáspora africana origina-se, primeiramente, na necessidade da afirmação do poder dos senhores. Durante três séculos, o catolicismo desempenhou a função de religião oficial do Estado. O branco impunha sua visão de mundo, na tentativa de eliminar qualquer vestígio de identidade do povo negro. Impedir a manifestação da fé trazida da África era uma das mais duras facetas da escravização. Afinal, cultuar entidades que estimulam a liberdade e a rebeldia representava um risco à “paz nas senzalas”.

O catolicismo estimulou a associação entre as figuras de Exu e do demônio como forma de desencorajar os cultos aos orixás, já que cabe ao Senhor dos Caminhos a comunicação entre o homem e o mundo espiritual. De acordo com a ótica difundida pelos padres e disseminada pelos senhores, a mediação estabelecida pelo “demônio” levaria a alma do negro para o inferno. Essa leitura influenciou diretamente as denominações evangélicas surgidas posteriormente e impregnou o imaginário popular.

O surgimento da Umbanda, uma religião tipicamente urbana, aproximou as cosmogonias africana e católica. A inclusão de Jesus e dos santos nos rituais dos orixás uniu os dois universos. O livro “A morte branca do feiticeiro negro — Umbanda e sociedade brasileira”, do sociólogo Renato Ortiz, mostra em detalhes como se deu essa africanização do cristianismo na Terra Brasilis. No entanto, ainda que menos rejeitada que o Candomblé, a Umbanda sofreu as mesmas perseguições por parte da Igreja Católica e, posteriormente, dos evangélicos. A associação de Exu— o orixá das festas, dos prazeres mundanos — ao diabo se manteve. Para o cristianismo, alegria e gozo jamais poderiam pavimentar a estrada rumo à salvação.

Sociedade intolerante — A intolerância religiosa é uma característica do processo de construção histórica da sociedade brasileira. A separação entre Estado e Igreja só ocorreu em 1890, por meio do Decreto 119-A da recém-nascida República, rompendo com uma lógica que persistia desde o período colonial. Porém os efeitos práticos para os adeptos do Candomblé e da Umbanda não foram sentidos por quem seguia essas religiões de matriz afro-brasileira. Até os anos de 1930, faziam parte do cotidiano as invasões de terreiros e a prisão de pais e mães de santo, bem como a detenção de qualquer um que explicitasse a fé no orixás, seja por meio do uso de vestimentas e ou posse de elementos ritualísticos (contas, guias, atabaques, utensílios destinados às obrigações dos orixás etc.). Não por acaso, as principais vítimas do racismo religioso eram negros e negras. Oficialmente, a escravidão podia ter acabado, mas a perseguição ao povo preto se mantinha na ordem do dia das autoridades políticas e policiais.

A vulnerabilidade da liberdade religiosa persistiu durante a maior parte do século 20. Tanto que a Constituição de 1988 precisou reafirmar o direito óbvio de o cidadão exercer a sua fé sem obstáculos. Tal necessidade se deve ao fato de a religião não pertencer apenas ao mundo privado ou restringir-se aos templos ou terreiros. Ela se manifesta no vestuário, na música, na arquitetura, na expressão artística, nos adereços, nos objetos de uso cotidiano, na comida e também na liberdade de

utilização de espaços públicos em igualdade de condições com as demais religiões. A laicidade fornece à sociedade ferramentas de fomento à convivência respeitosa entre as variadas formas de expressão da fé.

Nos últimos 20 anos, a intolerância religiosa gradativamente ganhou um novo impulso.

A forte presença evangélica no Congresso Nacional e a formação da Frente Nacional Evangélica serviram de estímulo à eleição de lideranças religiosas para cargos no Executivo nas cidades e nos estados. Outros efeitos do aumento dessa influência política foram a presença cada vez mais constante de evangélicos com perfil conservador em postos administrativos de ministérios ou secretarias e o surgimento do ativismo religioso no seio do Poder Judiciário.

A partir de 2016, a agenda restritiva e autoritária de suspensão de direitos das minorias conta com o apoio incondicional de evangélicos, notadamente os neopentecostais. Os ataques a religiões de matriz afro-brasileira fazem parte da estratégia reacionária. Esses grupos religiosos reivindicam uma suposta hegemonia moral e usam nos espaços seu poder de mobilização para influenciar a formulação de políticas públicas e leis.

O racismo religioso praticado contra o povo de santo deixou de ser velado. Hoje ele se dá por meio de ameaças, confisco de terreiros, agressões físicas e cerceamento da prática religiosa em comunidades sob o domínio de traficantes “convertidos” por pastores neopentecostais. Dados do Disque Direitos Humanos indicam que o número de denúncias de intolerância religiosa saltou de 537 no ano de 2017 para 916, em 2021 — crescimento de impressionantes 70,57%. Cabe destacar que o levantamento não inclui os casos de homicídio e de expulsão de lideranças religiosas de comunidades e bairros da periferia.

A perda de direitos impõe restrições graves aos adeptos do Candomblé e da Umbanda. Eles são impedidos de usar vestimentas religiosas e de utilizar áreas públicas para oferendas ou rituais coletivos. O povo de santo vive hoje um processo de desterritorialização, com a destruição de seus espaços sagrados.

Engana-se quem pensa que esse processo é fruto apenas da ação dos traficantes

“convertidos”. Muitas vezes ele ocorre por iniciativa de empresas privadas ou instituições públicas. Um exemplo é a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, em São Gonçalo (RJ) — tida por muitos como o primeiro do terreiro umbandista do Brasil.

O imóvel foi demolido em 2011, por determinação da então prefeita Aparecida Panisset, uma evangélica da linha neopentecostal. Ela recursou-se a receber lideranças da Umbanda e, apesar dos apelos em defesa da preservação da casa, permitiu a derrubada da construção. No lugar, surgiu uma loja de esquadrias de alumínio.

De volta ao início — Retomando a discussão sobre a importância do desfile da Grande Rio, cabe destacar que ele não representou um ataque às demais religiões, mas a defesa da tolerância e da necessidade de convivência harmoniosa entre as diversas formas de manifestação das crenças. A cosmogonia africana considera natural a diferença e a vê como importante elemento de construção das identidades.

O respeito ao indivíduo permeia o Candomblé e a Umbanda. Questões como orientação sexual, classe social ou nível de instrução não têm nenhuma importância para o povo de santo. A admiração em uma comunidade de terreiro é conquistada por meio da dedicação aos orixás e entidades, pela devoção aos preceitos religiosos e pela reverência à ancestralidade.

As religiões de matriz afro-brasileira aspiram apenas manter a sua cultura livre de ataques. Não querem entrar em disputas teológicas ou fazer proselitismo. A Umbanda e o Candomblé se fazem presentes na vida da maioria dos brasileiros, ainda que de forma despercebida. Vestir branco no réveillon, jogar flores no mar ou pular sete ondas para pedir sorte no ano novo são costumes retirados dos rituais seguidos por filhas e filhos de santo. E foi esta mensagem que Exu levou para a Marquês de Sapucaí: viver em harmonia com quem pensa diferente, ser feliz e próspero, respeitar a ancestralidade e encarar a vida como um presente da espiritualidade.

Laroyê, Exu! 

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