Julio José Araujo Junior
Em 2020, a luta dos povos indígenas no Brasil ganhou repercussão nacional e internacional. O descaso do governo federal e as mobilizações em defesa da pauta socioambiental e da Amazônia realçaram a importância de concretizar a Constituição de 1988 e assegurar a demarcação dos territórios indígenas, inclusive mediante a expulsão de invasores e a proibição de práticas depredatórias, como desmatamento, mineração e garimpo.
Diante da pandemia de Covid-19, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi provocado a garantir medidas emergenciais em favor dos povos indígenas na Arguição de Descumprimento Fundamental (ADPF) 709. Após medida cautelar concedida pelo Min. Roberto Barroso, os ministros determinaram a instalação de barreiras sanitárias nas terras indígenas e a proteção dos indígenas em isolamento voluntário ou de recente contato. A medida foi bastante aplaudida e tratada como um autêntico cumprimento do papel da Suprema Corte em defesa de minorias.
Desde então, o governo já apresentou quatro planos para efetivar as medidas, porém estes foram rejeitados, por serem considerados insatisfatórios. A recalcitrância do Poder Executivo, que não aceita a efetivação dos direitos indígenas na forma prevista na Constituição e prefere um modelo que os trate como pessoas inferiores a serem integradas à “comunhão nacional”, ainda pesa. Na prática, os indígenas ganharam, mas ainda não levaram.
Há, contudo, um outro julgamento importante que está por vir. De nada adiantará todo o esforço de mobilização e conscientização em favor dos direitos indígenas se o STF decidir pela aplicação do chamado “marco temporal” no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, ainda sem data. A tese em questão foi aventada isoladamente no julgamento do caso Raposa Serra do Sol e estabelece que o direito ao território indígena está condicionado à presença efetiva na área em 5 de outubro de 1988.
O processo aborda o direito do povo Xokleng (SC) a seu território e a constitucionalidade do Parecer 01/2017, da Advocacia-Geral da União, que pretendeu estender a aplicação da tese do marco temporal para todos os casos, o que acarretou na paralisação pelo governo federal de todas as demarcações e a não continuidade de processos.
Como já afirmei em obra específica, o marco temporal não se sustenta por diversos fundamentos. Cabe aqui destacar alguns. Em primeiro lugar, ele denota uma perspectiva assimilacionista do STF acerca das trajetórias de diversos povos indígenas, que foram despojados de suas terras e não podiam estar nelas em 5 de outubro de 1988. Tratados como incapazes e submetidos a processos de expulsões e violências reais e simbólicas, muitos indígenas não podiam estar em seus territórios nessa data. Afinal, somente após a Constituição de 1988 esses grupos puderam afirmar efetivamente a sua identidade e a sua autonomia.
Existe, em verdade, uma segurança jurídica seletiva, que está preocupada com supostos “proprietários”, naturalizando a opressão sobre os grupos étnicos. A segurança jurídica não contempla os índios, pois estes devem assistir às definições que os brancos fazem em favor da “verdade registral” das propriedades, cuja naturalização provoca o apagamento da subalternização permanente.
O marco temporal promove, por via indireta, um controle da identidade indígena, já que pressupõe que apenas são merecedores da proteção dos direitos territoriais indígenas os grupos que estavam em suas terras em 5 de outubro de 1988. Há, é verdade, a exceção do chamado “renitente esbulho”, porém a ideia limita, na prática, a garantia de direitos territoriais a “grupos indígenas do passado”. Além disso, a limitação no tempo não esconde uma proteção privilegiada à propriedade privada, já que tem o assumido propósito de estabilizar os conflitos em favor dos atuais proprietários.
Essa história não começou em 1988
Esta concepção está atrelada a análises estigmatizantes que favorecem a subalternização permanente dos índios, enviesando toda a análise da legislação e de princípios constitucionais. Ainda que toda essa crítica não fosse possível, pode-se dizer que o verdadeiro marco temporal residiria na Constituição de 1934, que foi a primeira a abordar os direitos dos indígenas às suas terras. Como os próprios indígenas afirmam, essa história não começou em 1988.
Negar a territorialidade indígena é um fator de risco para atrocidades massivas e até mesmo de genocídios. Afinal, sem os espaços onde podem desenvolver seus modos de vida, costumes e tradições, os povos indígenas se tornam vulneráveis a ameaças e deixam de exercer livremente sua identidade, o que afeta a sua sobrevivência física e cultural. Assim, a decisão de “não demarcar um centímetro de terra”, propalada pela Presidência da República, associada ao marco temporal, representa, por via direta ou indireta, a morte total ou parcial de um povo.
Em suma, o marco temporal é uma tese que escancara as colonialidades ainda tão presentes no sistema de justiça. Como afirma Rita Segato, em abordagem sobre o sistema penal que aqui se mostra plenamente aplicável, descolonizar a justiça implica refazer o cálculo das dívidas, com a consequente redistribuição das posições entre devedores e credores. Trata-se não apenas de uma meta democrática, mas de um dever de prevenção de genocídios.
Isso significa, em outras palavras, reconhecer que os direitos territoriais indígenas não são uma medida apenas de reconhecimento, mas também de redistribuição, em oposição à concentração fundiária e a uma cidadania de segunda classe que foi e continua sendo imposta a esses povos. É necessário pensar nos povos indígenas com os olhos para o presente e para o futuro, em atenção às suas mobilizações e reivindicações. O STF tem uma tarefa histórica a cumprir: mostrar que a descolonização da justiça passa por concretizar as terras indígenas, sem essencialismos e sem limitações inconstitucionais.
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