Por Mani Ceiba
Felicidade, passei no vestibular
Mas a faculdade é particular...
Livros tão caros tanta taxa pra pagar
Meu dinheiro muito raro
Alguém teve que emprestar
Não é novidade pra ninguém que a sociedade é racista e a questão é estrutural. Não há como existir um projeto de desenvolvimento sem que todos os grupos estejam incorporados. Sabemos que negros, pobres, mulheres e indígenas não estão. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 36% dos jovens brancos entre 18 e 24 anos estão cursando ou terminaram a graduação. Entre pretos e pardos, este percentual cai pela metade: 18%.
Outros dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informam que – entre 2010 e 2019 – o número de alunos negros no ensino superior cresceu quase 400%. Os negros chegaram a 38,15% do total de matriculados, percentual ainda abaixo de sua representatividade no conjunto da população, que é de 56%. Em cursos como Medicina, Design Gráfico, Publicidade e Propaganda, Relações Internacionais e Engenharia Química, o número de negros é ainda menor.
Isso me fez lembrar uma vez que estava na sala de espera de um ginecologista. O médico chegou, pegou as fichas e foi pra sua sala começar os atendimentos, quando duas mulheres se dirigiram até o balcão e perguntaram:
- Ele é o médico?
Diante da confirmação da recepcionista, elas disseram claramente:
- Mas ele é preto!
Morei no subúrbio, andei de trem atrasado
Do trabalho ia pra aula, sem
Jantar e bem cansado
Mas lá em casa à meia-noite tinha
Sempre a me esperar
Um punhado de problemas e criança pra criar
Acesso à universidade sempre foi um grande desafio para estudantes negros e periféricos. Apesar de vivermos em um país recordista em desigualdade social e a TV fingir que não, quem vive fora da sua bolha sabe que os desafios são imensos e reais: dinheiro, acesso aos locais de estudo ou internet. Muitos, principalmente mulheres, dividem seus estudos com trabalho, tarefas domésticas, cuidar de filhos ou dos irmãos.
Sempre lembro da minha avó dizendo que tudo começa de verdade depois do “foram felizes para sempre”. Uma vez dentro da universidade, outros desafios aparecem para que se consiga permanecer nela. Além dessas dificuldades que enfrentam desde o ingresso na universidade, as e os jovens ainda se deparam com um choque de realidade cultural, social e econômica que, com o passar do tempo, vai permear a sua vida acadêmica. Os próprios professores fazem cobranças como se não conhecessem a realidade. Érica Belon, doutora em Administração de Negócio, mestre em Educação, especialista em Comportamento Humano, ouviu de seu professor, nos meados da década de 1990 na sua primeira graduação:
- Ah, querida! Você ainda não entendeu? Pobre não faz faculdade, pobre compra máquina de costura em vez de um computador! Faça isso! Não posso fazer nada por você!
Mas felizmente eu consegui me formar
Mas da minha formatura, não cheguei participar
Faltou dinheiro pra beca e também pro meu anel
Nem o diretor careca entregou o meu papel
Olhe na sua sala de faculdade, quantos negros há? Olhe para seus professores, quantos são negros? Olhe para seus colegas de trabalho, quantos são negros e quais cargos ocupam?
E você, já tinha reparado nisso?
E depois de tantos anos
Só decepções, desenganos
Dizem que sou um burguês
Muito privilegiado
Mas burgueses são vocês
Eu não passo de um pobre-coitado
E quem quiser ser como eu
Vai ter é que penar um bocado
Assim termina o samba de Martinho da Vila. Estamos acostumados a cobrar e julgar a pessoa que alcançou algo como um privilegiado – como se nosso país fosse igualitário e justo e não houvesse classes sociais tão diferentes e, principalmente, não houvesse racismo.
Racismo se combate no dia a dia e na desconstrução. É no ouvir e no aceitar, observar e aprender. Os sinais do racismo aparecem não apenas nas limitações ao acesso de negras e negros às universidades, mas também quando o conhecimento produzido por eles é desconsiderado. Quantos pesquisadores e cientistas negros não se destacam por não terem visibilidade como os brancos?
A cultura do brasileiro, que pensa superficialmente, é baseada no eurocentrismo. A visão de mundo de que tudo o que vem da Europa, dos brancos – cultura, artes, línguas, religiões, política – é superior ao que tem origem nos povos da América, África, Ásia e Oceania. Os europeus em suas invasões subjugaram as demais culturas, mas o pior é o povo dominado acreditar que pertence a esse povo dominador e também virar as costas para a sua origem e identidade. E no momento presente chamam isso de patriotismo.
Referências: samba pequeno burguês Martinho da VILA/; Ericabelon-escoladecarreiras/Unicamp/ almapreta/IBGE/IPEA
Para conhecer a história da música O pequeno burguês, de Martinho da Vila, acesse https://musicasbrasileiras.wordpress.com/2014/07/02/o-pequeno-burgues-martinho-da-vila/
Sem comentários:
Enviar um comentário