Por Edson Diniz
A ação da polícia civil do Rio de Janeiro, na favela do Jacarezinho, na zona norte da cidade, no dia 6 de maio, começou como um ato de desafio político e terminou como uma vingança, deixando um rastro de morte e terror. A entrada de 250 policiais na favela já poderia ser considerada uma afronta às determinações do Supremo Tribunal Federal, que havia proibido operações policiais nas favelas durante a Pandemia. Porém, com a morte de um dos policiais, logo no início das ações, o que já era grave, por ser tratar de uma desobediência à justiça, virou uma tragédia, pois os policiais partiram para uma vingança que resultou na morte de mais 27 pessoas.
Sob a justificativa de cumprir a lei e proteger crianças e adolescentes do aliciamento de traficantes, os policiais se sentiram no direito de invadir casas, matar e desafazer as cenas dos crimes, sem qualquer constrangimento. Logo após a ação, ainda no calor dos acontecimentos, os policiais responsáveis pela operação deram uma entrevista coletiva, na qual ficou evidente o recado ao STF. Um dos delegados chegou a falar em “ativismo do judiciário”, numa crítica explicita às decisões da justiça.
Na entrevista se reproduziu o belicismo da operação. Quando confrontados sobre as razões e a letalidade das ações, os policiais reagiram com truculência e suas falas se aproximaram do velho discurso do “bandido bom é bandido morto”. A justificativa para tantas mortes é que todos eram “traficantes” e “homicidas”, abatidos em confronto com os policiais. Porém, testemunhas dizem que, em muitos casos, as pessoas foram executadas depois de rendidas. É o que relata um morador que assistiu à execução de uma pessoa dentro de sua casa, ao lado da filha de 9 anos de idade.
O mais grave é que o discurso da guerra – naturalizado pelas redes sociais, parcela da mídia, autoridades e pela própria polícia - recebe apoio de parte da população, pois esta, acuada, com medo e sem garantias de políticas sociais inclusivas e preventivas contra o crime, apoia as ações violentas das forças de segurança e sua promessa de solução imediata. Essa percepção se baseia na crença equivocada do uso da violência como caminho para a paz.
Assim, a questão mais importante, a partir do massacre do Jacarezinho, é que a polícia – com apoio do governador, do presidente e a omissão do Ministério Público – dá um passo a mais para se tornar independente de qualquer controle institucional. Foi a partir dessa ideia, por exemplo, que se chegou a propor o “excludente de ilicitude”, defendida por um ex-ministro da justiça, cujo objetivo era eximir de qualquer responsabilidade penal os policiais que matassem em serviço.
Por trás do massacre do Jacarezinho está um projeto autoritário de país, sustentado por grupos políticos - incluindo aqueles associados à milícia – associados ao presidente da República que desprezam a democracia. Isso se reflete, por exemplo, no modelo de polícia – herdado da ditatura miliar -, em funcionamento no Rio de Janeiro, apoiado por uma elite econômica retrógrada e que deseja a manutenção de uma sociedade desigual, racista e patriarcal.
O desprezo por parte das forças policiais pelas regras e pressupostos que regulam o Estado democrático de direito é uma séria ameaça ao país. Não é tolerável que a polícia utilize a morte de 28 pessoas como arma política contra as instituições republicanas, em especial o STF. O desafio acintoso foi escrito com sangue espalhado por casas e ruas da favela do Jacarezinho e terminou com a entrevista intimidatória dos policiais em rede nacional de TV.
Diante desse quadro, é fundamental que as forças democráticas não permitam que massacres como o do Jacarezinho sejam naturalizados ou esquecidos. Sob nenhuma justificativa o que aconteceu no dia 6 de maio, numa comunidade onde moram 40 mil pessoas, pode ser admitido como normal.
O futuro de nossa democracia depende da capacidade das instituições republicanas em dar respostas a esse gravíssimo atentado ao Estado democrático de direito. A Justiça não pode ser confundida com vingança, e a paz só se constrói com políticas públicas eficientes, com o combate às desigualdades e com uma política de segurança que preserve a vida.
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