quinta-feira, 17 de junho de 2021

Existe um mito no Brasil e ele não é o presidente da República

Ilustração Clóvis Lima

Por Leandro Marins Sarmento

A filósofa brasileira Marilena Chauí nos ajuda a entender que um mito, mais do que um herói com feitos alegóricos, fantásticos e inimagináveis, pode ser compreendido no seu sentido antropológico, em que a “narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade.” Um mito é uma narrativa que tem um vínculo com o passado e se mantém de forma tênue no presente. Vai além do que um único evento histórico pode explicar. A psicanálise também justifica como “um impulso à repetição de algo imaginário, que cria um bloqueio à percepção da realidade e impede lidar com ela.

Cabe aqui, ainda, um breve parênteses. O diálogo é a arte dos contrários, do grego dia, por intermédio de, e logos, que significa palavra. Mais do que por meio das palavras, o significado da palavra diálogo pode ser concebido pela mediação entre pessoas, grupos sociais, instituições. Esse conceito nos ajuda a entender o que significa a Dialética. Nos estudos das Ciências Sociais, de forma bem resumida, podemos admitir a evolução do pensamento teórico e metodológico partindo do positivismo, passando pelo historicismo e chegando até ao marxismo, ou materialismo dialético. Todo referencial teórico evolui a partir desses três paradigmas e possui também “fertilizações recíprocas” de modo de ver o mundo.

O historicismo partia da crítica ao positivismo clássico de causa e efeito, de ação-reação, do modo de observar a sociedade a partir das mesmas regras que podemos observar as Ciências Naturais.  O progresso moral e científico e a hierarquização do conhecimento eram nortes para Auguste Comte (1798-1857), que o movimento historicista criticava. Para os historicistas, todas as experiências sociais poderiam ser respondidas pela sua história. Repare, há aqui uma oposição entre a razão científica e a razão histórica. Tanto uma quanto a outra, não conseguem responder às multiplicidades de fatores que uma experiência humana possibilita para o decorrer do processo histórico. O pensamento positivista, por tentar ordenar e hierarquizar o conhecimento e o historicismo por não compreender que, nas Ciências Sociais, o gênero humano é o observador e o objeto em si. 

A dialética supera essa dicotomia por conceber a contradição como o real observável. Para a dialética materialista, por exemplo, as contradições não são antagônicas e, dependendo do modo de ver - princípio do mirante, Michael Löwy, se complementam. O materialismo dialético propõe observar a paisagem, percebê-la na simplicidade, de forma imediata, à primeira vista. Em um segundo momento, a dialética convida o observador a percorrer o trabalho para além da intuição. Estamos agora experimentando diferentes pontos de vista. O que há por detrás daquela casa de janelas azul e chaminé da tela? Se o pintor não se der ao trabalho de percorrer outros horizontes, outros mirantes, jamais vai descobrir.

A razão de perceber o que há para além do ponto de partida é a centralidade do pensamento dialético materialista. Ou seja, o marxismo admite ponto de vista, ainda que os órfãos de Stalin não admitam. Fecha parênteses.

Perceber as forças armadas brasileiras ou as instituições militares como instituições de Estado, com respeito e obediência plena à Constituição cidadã de 1988 é um equívoco (do ponto de vista positivista, historicista e dialético) que acomete grande parcela da sociedade brasileira e até da esquerda. É uma narrativa sem qualquer relação com a realidade. Ou seja, um mito. A nossa República, coisa pública, governada para todos, foi fundada a partir da queda da monarquia em um arranjo entre a oligarquia (aristocracia agrária), pequenos comerciantes provincianos e, para surpresa da mitologia em questão, dos militares. O primeiro presidente da nossa democracia foi, para espanto das mesas, um militar. Marechal Manuel Deodoro da Fonseca, entusiasta do positivismo de Comte e que perpetuou o pensamento por gerações na escola militar brasileira.

Florestan Fernandes, no brilhante “Revolução Burguesa” (1976), aponta que, diferente das experiências revolucionárias na América e na Europa, a queda da monarquia não se deu por uma ruptura com a oligarquia. Ou seja, a classe burguesa no Brasil - para reforçar, pequenos comerciantes provincianos e o movimento tenentista, não “assume o papel de paladina da civilização ou de instrumento de modernidade”. Ela não rompe com o passado, com a aristocracia agrária escravista, com a oligarquia das províncias e, deste modo, não rompe com o Estado, se apropria dele deixando a maioria da sociedade brasileira às margens de todo o processo de desenvolvimento da novidade da democracia.

Para o professor Lincoln de Araújo Santos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, fazendo uso político do monopólio da força coercitiva, a instituição militar assumiu durante a história da nossa República, “a função importante na condução do país e, mais uma vez, acentuando o projeto autoritário de nação”.

A partir da nossa Revolução Burguesa às avessas, sejamos diretos: por uma ideia de nação, onde a maioria da população está excluída, condenada a trabalhar e gerar riqueza para uma minoria dirigente, a instituição militar golpeia a república cercando o palácio Guanabara em outubro de 1930, prendendo o então presidente Washington Luís. Com Vargas, em novembro de 1937, fecham as casas legislativas e decretam a ditadura do Estado Novo. Depois do protagonismo de 37, Vargas vira alvo dos militares e renuncia em 1945, quando os tanques apontaram seus canhões para a residência presidencial. Não podemos perder a conta: Fundação da República, Golpe de 1930, interferência direta em 1945 e não paramos de contar e ordenar as ações das instituições brasileiras contra a própria república. Do ponto de vista positivista, mito.

A última grande contribuição dos militares para o desenvolvimento da nossa democracia foi o golpe de 1964 e a gestão desastrosa dos 21 anos de ditadura que perseguiu, prendeu, torturou, estuprou, matou e sumiu com significativa parcela do seu próprio povo. É nesse momento que os militares forjaram a narrativa absurda de “revolução democrática”, “democracia relativa”, “golpe preventivo”, que sustenta toda a narrativa de instituição em defesa do povo brasileiro, instituição de Estado, “braço forte, mão amiga”. Até hoje a data é comemorada como data oficial nos quartéis militares. Todos os anos, a ordem do dia 31 de março é comemorar os incontáveis crimes contra a humanidade. Do ponto de vista historicista, mito. Covarde, mas ainda um mito.

Vejam, não estamos contando as inúmeras tentativas de golpes malsucedidas, interferências militares no Executivo, legislativo e até no Judiciário como a ameaça ao STF admitida pelo General Villas Boas às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula pela corte “suprema”. Nem mesmo fizemos qualquer referência às invasões e mortes nas comunidades populares Brasil adentro pelas operações das polícias militares. Só estamos falando dos comportamentos oficiais, institucionais das forças armadas enquanto “instituições de Estado”.

Agora, aqui um alerta, precisamos olhar para a história e perceber onde estamos neste momento. Perceber como essa narrativa fora da realidade nos aprisiona ao passado e nos impossibilita de falar por nós. De sermos sujeitos de nossas próprias vidas. No último dia 6 de junho, o Exército brasileiro impôs 100 anos de sigilo ao processo em que a justiça militar absolveu o ex-ministro Eduardo Pazuello das acusações de crime militar. O que de tão grave pode ter ocorrido nesse julgamento? Porque uma instituição que se coloca a serviço de seu povo se esconde de forma medíocre? O que foi dito e que o povo não pode saber?

Em 1954, os militares realizaram o Inquérito policial Militar para apurar o assassinato do major Rubens Florentino Vaz no atrapalhado atentado ao Carlos Lacerda e opositor de Vargas.  A investigação caberia à Polícia Civil, mas os militares tomaram as investigações para o seu comando e, de forma autônoma, desenharam o golpe nos salões do Clube da Aeronáutica, informando o resultado do inquérito primeiro às Forças. No mesmo local, assinaram um manifesto exigindo a renúncia do Presidente da República. Como sabemos, Vargas adiou a escalada autoritária com um tiro no peito. Os militares recuaram diante da revolta popular que tomou as ruas. 

Hoje, a instituição militar se vê refém de suas próprias narrativas, o anacronismo das forças armadas brasileiras é flagrante e vai de encontro aos anseios de um governo completamente descolado da trágica realidade do povo brasileiro. Em 1954, uma morte causou uma revolta popular e puseram fim ao projeto autoritário de uma instituição derrotada por suas próprias limitações. Em 2021 não temos um suicídio. Temos, até o dia 9 de junho, 477 mil mortes.

 Não há, na história do nosso processo de democratização, uma única fonte que sustente a tese de que a instituição militar se qualifique como uma instituição a serviço da democracia. As Forças Armadas não estão acovardadas, não estão se apequenando, não estão sendo usadas por um projeto autoritário de um aventureiro idiotizado subletrado. Os militares se confundem com o projeto bolsonarista. Não é risível, como alguns companheiros escolheram adjetivar, a condição de avalista que as Forças Armadas se apresentam ao bolsonarismo, não é surpresa a participação dos militares em todas as desventuras da nossa democracia. Não é patético o Eduardo Pazuello ser considerado um especialista em logística, é uma tragédia institucional o Exército Brasileiro formar quadros a partir de um marco filosófico do século XIX. O Exército Brasileiro é um mito. Do ponto de vista dialético, não mais que um mito.

O pensamento social das Forças Armadas precisa ser modernizado, precisamos de uma profunda reforma das nossas forças armadas, que estejam em dia com seu papel constitucional e com as reais necessidades da sociedade brasileira. Não cabe mais, no mundo moderno, negar uma pandemia, negar o conhecimento científico, negar a maior crise climática do planeta, negar o direito à vida e à liberdade. A democracia é um processo, não um fim. O cientista político Luís Felipe Miguel, da UnB, gosta de usar Gilberto Gil para dizer que “estamos vivendo as ruínas de uma democracia em construção!”. Do meu ponto de vista, até o dia em que eu puder dizer, a democracia nunca recua, não encontra barreiras, não teme por suas contradições, não vai ser uma instituição estagnada nas suas limitações, e que não entende o próprio papel constitucional, que poderá interromper o processo histórico. Não conseguiram ontem, com as armas. Não conseguirão amanhã, sem Educação.


REFERÊNCIAS:

BARROS, José D´Assunção. A Construção da teoria nas Ciências Sociais. Petrópolis, 2018.

CHAUÍ, Marilena. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo. Coleção História do Povo Brasileiro, 2000.

FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. 1976. São Paulo.

LÖWY, Michael. As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen,. São Paulo: Editora Cortez. 1998.

Memorial da Democracia, Instituto Lula, Fundação Perseu Abramo. Acesso em 09/06/2021. Memorial da Democracia


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