Julio José Araujo Junior
Os povos e comunidades tradicionais conquistaram um importante instrumento de luta por seus direitos nesta semana. Foi publicada a Resolução nº 230, de 8 de junho de 2021, do Conselho Nacional do Ministério Público, que disciplina a atuação do Ministério Público brasileiro junto a essas populações.
A resolução foi construída com a participação de representantes de povos indígenas, quilombolas, pantaneiros e outras populações tradicionais, os quais puderam apresentar, durante os seis meses do processo de discussão, as principais dificuldades na interlocução com esse órgão e sugerir formas de aproximação e diálogo na efetivação de direitos previstos na Constituição.
Um aspecto fundamental na norma está no reconhecimento de um sistema de proteção constitucional dos povos e comunidades tradicionais, que compreende os conjuntos de artigos 215, 216, 231 e 232, da Constituição, além do art. 68 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias. Isso significa que as previsões constitucionais sobre povos indígenas e quilombolas devem ser compreendidas como normas que abordam a realidade de todos os povos e comunidades tradicionais, produzindo efeitos em todo o ordenamento jurídico.
Como consequência, os direitos dos povos e comunidades tradicionais devem ser lidos à luz da perspectiva normativa superior da Constituição, associada à Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Não se deve, portanto, falar em hierarquia nos regimes jurídicos de povos indígenas e de outros povos e comunidades tradicionais, pois todos os grupos gozam dessa proteção jurídica.
Além disso, a resolução fixa o diálogo intercultural como uma diretriz fundamental na relação do Ministério Público com esses povos. Isso pressupõe o respeito e o reconhecimento jurídico de cosmovisões, práticas e identidades, sem qualquer conotação essencialista ou tentativa, pelo Estado, de definir previamente o projeto de vida a ser seguido por indivíduos ou grupos. Não é possível estabelecer prioridade entre saberes, formas de organização ou mesmo sistemas jurídicos, cabendo ao Ministério Público estar aberto a essa realidade, por força do art. 129, V, da Constituição, que lhe incumbiu o dever de defender os direitos indígenas e, por conseguinte, o próprio sistema de proteção às populações tradicionais.
O texto da resolução contém 11 artigos. A norma aborda a relação com as comunidades desde o ingresso no prédio da instituição (art. 2º): em primeiro lugar, é necessário saber recepcionar os grupos, com respeito à autoidentificação; em segundo lugar, a instituição deve cuidar para não estabelecer qualquer restrição indevida em relação a trajes e vestimentas, como pinturas no corpo adereços e símbolos.
Em terceiro lugar, o atendimento presencial deve ser priorizado, salvo em circunstâncias excepcionais, tendo em vista a necessidade de estabelecimento de vínculos e diálogo efetivo com o grupo; por fim, há necessidade de respeito à língua materna, com o estabelecimento de mecanismos para tradução ou interpretação das demandas.
O diálogo intercultural, de caráter interseccional, permeia toda a resolução e tem previsão específica nos artigos 3º e 4º. No art. 3º, a resolução prevê o caráter imprescindível do respeito à autonomia dos grupos e o respeito à autoatribuição da identidade. Nesse caso, o Ministério Público deve atuar e zelar para que o Poder Público não exerça qualquer discriminação e não deixe de atuar na efetivação de políticas públicas sob a alegação de que “fulano não possui determinada identidade” ou “beltrano não é indígena”. O Estado não pode se arvorar na condição de definidor dessa identidade.
No art. 4º, a resolução aponta os princípios do diálogo intercultural: a informalidade, a presença física e a tradução intercultural. Devemos olhar para a relação com esses grupos de forma atenta às suas especificidades socioculturais. Nesse ponto, a presença física e a interação social para a concretização do diálogo intercultural são tarefas fundamentais. A informalidade, por sua vez, impõe um diálogo sem as amarras do “juridiquês” e com vistas a informar e receber informações de forma clara sobre os rumos da atuação do Ministério Público e das estratégias de mobilização dos grupos.
A tradução intercultural, prevista no art. 4º, atende a uma lógica de garantir o trânsito entre mundos diferentes. É necessário que as perspectivas, os modos de vida e as compreensões de mundo das populações tradicionais possam ser trazidas ao conhecimento do órgão por meio do auxílio de profissionais, como intérpretes, antropólogos e representantes de outras áreas do conhecimento. O Ministério Público deve estar preparado para garantir essa tradução.
No art. 5º da resolução, temos a consagração do direito à participação, que tem como diretriz fundamental o respeito à consulta prévia, livre e informada, prevista no art. 6º da Convenção nº 169/OIT. A resolução dispõe que a ausência de consulta prévia enseja a nulidade de processos e procedimentos, cabendo ao Ministério Público zelar pelo respeito à norma e aos protocolos de consulta estabelecidos pelos grupos.
Outro fator primordial que emerge da resolução é o território (art. 6º). Em tempos tão sombrios, marcados pelas tentativas de restrição de terras indígenas e outros territórios por meio de leis, interpretações judiciais ou administrativas, a resolução dá uma resposta importante. Ela fixa que o respeito aos territórios independe da sua regularização formal pelo Estado, devendo o Ministério Público adotar as medidas necessárias para viabilizar o seu reconhecimento e garantir que a análise de suas características não esteja limitada aos regimes civis de posse e propriedade. Deve, neste caso, prevalecer uma compreensão intercultural dos direitos fundamentais envolvidos.
O art. 7º trata das políticas públicas, tema caro a todos os ramos do Ministério Público. O artigo estipula que o Ministério Público deve acompanhar e exigir políticas de todos os entes da federação (Municípios, Estados, União), zelando pelo respeito à territorialidade, à autonomia dos grupos e às suas especificidades socioculturais. Mais uma vez, a resolução destaca que esse papel deve ser realizado independentemente da finalização do processo de regularização formal dos territórios.
A intervenção obrigatória do Ministério Público em processos judiciais está destacada no art. 8º. Ela ressalta que isso não afasta a representação judicial dos grupos por eles mesmos, cuja manifestação é imprescindível, sob pena de nulidade.
Por fim, os artigos 9º e 10º orientam o funcionamento da resolução no âmbito do Ministério Público, com a esperança de que a resolução possa significar uma via de mão dupla. Por um lado, é necessário internalizar e disseminar os seus conceitos entre os membros do Ministério Público, de forma a garantir a atuação baseada no diálogo intercultural. Por outro, a mobilização dos povos e comunidades e a utilização da resolução como instrumento para a efetivação dos seus direitos junto aos órgãos do Ministério Público é uma caminhada que está sendo impulsionada e estimulada.
Para concluir, o CNMP deu um passo tão importante que não se limita à orientação dos membros sobre o seu papel constitucional. A resolução oferece também coesão e contrapontos jurídicos e aos ataques normativos e interpretativos que essa matéria vem sofrendo. Ao mostrar o compromisso constitucional do Ministério Público com essa pauta e consolidar entendimentos jurídicos e jurisprudenciais sobre a matéria, o CNMP está dando um recado claro acerca da efetividade dos direitos fundamentais dessas comunidades.
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