sábado, 3 de julho de 2021

A contribuição do negacionismo ao colapso do sistema de saúde brasileiro

 Por Samara Balieiro e Fábio Ventura

Atualmente, o Brasil vive o pior momento da pandemia da COVID-19. Os primeiros registros do colapso do sistema de saúde se deram já no começo de 2021. Em janeiro, o Estado do Amazonas se tornou destaque em todo o país pela falta de leitos, de oxigênio e de aparelhos para ventilação mecânica. A consequência disso foi a morte por asfixia de mais de 30 amazonenses que não conseguiram o tratamento pela doença devido à falta dos insumos. 

Em março, diversos estados registraram pacientes que morreram à espera de um leito de UTI. Os hospitais alertaram para a falta de insumos e até mesmo as funerárias relataram a possibilidade de cancelar as férias de funcionários. São Paulo, estado que tem a maior estrutura hospitalar do país, até o fim de março registrou pelo menos 135 pessoas que morreram à espera de uma vaga na UTI. 

Apesar da falta de estrutura registrada em diversos hospitais o descaso e a negligência por parte do Governo, há também uma relação clara entre os picos de contágio no início do ano e suas datas. Exatos 15 dias após as comemorações de fim de ano, as taxas de novos casos e mortes pelo novo coronavírus aumentaram expressivamente. Apesar do feriado de Carnaval ter sido oficialmente cancelado, muitos brasileiros participaram de festas clandestinas e outras aglomerações no período. Em seguida, houve um pico de contágio em diversos estados.  

Esse crescimento descontrolado de novos casos por todo o país, devido às aglomerações, fez com que a capacidade de leitos de UTI e enfermaria chegasse quase ao limite máximo. Em São Paulo, ao menos 496 pessoas com COVID-19, ou suspeita da doença, não resistiram à espera por um leito e morreram no mês de março.

-

“É preciso entender a ligação que existe entre os hábitos de parte da população brasileira e a maior crise sanitária e hospitalar da história”  Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) 

-

Além do desrespeito, das aglomerações e a falta de práticas sanitárias recomendadas, esses hábitos foram realizados e instigados por uma parte dos cidadãos, que engajados a uma política extremista e a uma rede de informações falsas, contribuíram com o colapso do sistema de saúde. Esses cidadãos fazem parte do movimento negacionista. 

No Brasil, o negacionismo tomou proporções gigantescas e fomentou a disseminação das Fake News, em relação, principalmente, à seriedade do novo coronavírus, à confiança na ciência e à qualidade das vacinas. 

Segundo André Borges, mestre em Filosofia em Volta Redonda (RJ), há um motivo claro que envolve o negacionismo científico: “Existe também uma intenção política por trás, que utiliza desse movimento que está acontecendo e da ferramenta que é a Fake News para fazer valer seu pensamento a sua convicção, então se aproveita disso para, por exemplo, lançar uma ideia que não é a verdade, que se sabe que não será verdade, mas que tem um impacto a tempo de ser desmentido.”. 

No começo da pandemia, os negacionistas desacreditavam na gravidade da doença, com o intuito de invalidar a necessidade pelo lockdown, pelo uso das máscaras e pelo fechamento do comércio. Esse grupo influenciou a não adesão da população aos protocolos de prevenção, ao questionamento incessante aos veículos de comunicação e aos dados referentes à disseminação e à letalidade do vírus. Todo esse movimento contribuiu diretamente com o ápice das mortes registradas no país.

O médico Francis Bullos de Barra Mansa (RJ), analisou a relação entre o contágio da doença e a falta dos hábitos sanitários: “A maioria dos pacientes atingidos por Covid-19 não seguiam as regras sanitárias, primeiro, porque eles desconheciam, e segundo, porque havia e há a arrogância da falsa imagem que o brasileiro criou. Se o brasileiro não fosse arrogante, ele usaria máscara, pelo senso de coletividade. Eu atendi até então, 526 pessoas com Covid, desde o dia 20 de março do ano passado, parte dessas pessoas até tiveram cuidado para não contrair, mas o cuidado está nos detalhes, que na maioria das vezes, passa despercebido entre as pessoas.”.

O surgimento dos medicamentos sem eficácia 

Em um primeiro momento, o discurso dos negacionistas em relação à pandemia girava em torno da descrença sobre a seriedade da doença. Intitulada de “gripezinha” por políticos, celebridades e outras figuras públicas, a população brasileira acompanhou esse discurso se recusando a usar máscaras e evitar as aglomerações, o que consequentemente, contribuiu com o avanço do vírus. Quando os números não podiam ser mais ignorados e as mortes se acumulavam, o discurso repentinamente mudou. 

Como traço fixo de qualquer movimento negacionista, surgiu a incoerência. Ao reconhecerem a gravidade da doença, medicamentos milagrosos surgiram com a promessa de curar ou tratar preventivamente a população. Segundo a Associação Médica Brasileira (AMB) a hidroxicloroquina/cloroquina, ivermectina, azitromicina entre outras drogas, não possuem eficácia científica comprovada no tratamento ou prevenção da COVID-19. O uso desses medicamentos, por muitas vezes, incentivou parte da população a quebrar os protocolos de segurança sanitária pela crença de que estariam protegidos do vírus. Conhecido como Kit Covid, esses medicamentos não só não possuem eficácia contra o coronavírus, como ainda causaram a morte de três pessoas por hepatite e colocaram cinco pessoas na fila para transplante de fígado em São Paulo.

O processo de desinformação não é algo novo, o que difere é a motivação por trás desse movimento e o seu contexto. Apesar de não se igualar à tragédia atual que vivemos, com as mais de 450 mil mortes, em outros momentos da história o país já enfrentou perdas. O médico Francis Bullos relatou: “Durante o período do regime militar de 1964 houve uma epidemia de meningite na cidade do Rio de Janeiro principalmente, e naquela época o Presidente era o General Geisel e aquilo foi omitido durante muito tempo da população e muita gente, principalmente crianças, foram acometidas de meningite meningocócica devido ao fato de que esconderam [a doença]. Toda vez que o governo esconde fatos e não usa a mídia para divulgar que existe uma situação patológica, ou seja, omitem situações que são danosas à população e que não a permitem reagir, eles acabam sendo negacionistas.”. 

O início da vacinação no Brasil 

Com a chegada da vacina, a principal solução para a pandemia, a incoerência retornou ao discurso dos negacionistas, que não satisfeitos em invalidar a eficácia dos imunizantes, propagaram diversas notícias falsas sobre o conteúdo e o propósito das vacinas. Algumas das Fake News propagavam a possibilidade da alteração do DNA humano e a inserção de um microship no corpo após a aplicação do imunizante. A consequência foi a formação de um amplo e forte movimento antivacina que defendia uma suposta liberdade que estaria sendo ferida. Agora, mesmo com o avanço do cronograma de vacinação e com mais de 20 milhões de brasileiros totalmente vacinados, esse discurso infelizmente ainda existe e persiste. Em março, uma pesquisa do Data Senado revelou que 14% dos brasileiros preferem não se vacinar. 

Segundo André Borges, o momento atual dificulta lutar contra esse movimento: “O que vivemos hoje é a quarta revolução industrial, onde não basta estar conectado em rede, mas é uma interação virtual que se alimenta a si mesmo, um momento onde a informação vem antes do conhecimento e como ela vem de várias vias fica difícil filtrar essas informações, para transformar em conhecimento.”.

Por fim, em maio, manifestantes se reuniram em apoio ao presidente Bolsonaro e protestaram contra as ações da CPI da Covid. A Comissão Parlamentar de Inquérito tem como objetivo apurar se houve falhas, negligência e descaso por parte do Governo Federal no enfrentamento da pandemia. Mesmo com indícios de que o Brasil caminha até a marca de meio milhão de mortes, o negacionismo crescente no país continua ajudando o Governo a se isentar de futuras responsabilidades, contribuindo com a precária situação sanitária que ceifou milhares de vidas, que, com o início tardio da vacinação e com a persistente invalidação dos protocolos de segurança, continuam sendo perdidas. 


Sem comentários:

Enviar um comentário