Sylvio Costa Jr.
Desde 2015 foi iniciado no Brasil um golpe de estado com intenção clara: destituir a presidente eleita em 2014 para iniciar uma profunda mudança na orientação política do país. Houve desde então um aprofundamento de políticas neoliberais e de desregulamentação do mercado de trabalho que tem não só aumentado a pobreza e a miséria como tem feito a renda média de várias classes sociais despencar. Nada disso por sadismo somente, mas principalmente para garantir em meio à crise econômica mundial as altas taxas de lucro do rentismo bancário, expresso no pagamento de juros de uma dívida nunca auditada. A lei do teto de gastos, conhecida como PEC da Morte (Emenda Constitucional nº 95), que congela gastos sociais por 20 anos, mas deixa livre os gastos para rolagem da dívida, é a sua maior expressão. Nesse contexto, sem investimento público, sem investimento social, com os golpistas sentados sobre o cofre da União para gastos com a população, a economia brasileira cresceu apenas 1,1% em 2019, menos que o observado no primeiro governo do golpe de 2016, Temer, quando a economia brasileira cresceu meros 1,32% e 1,31%, em 2017 e 2018 respectivamente. O desgoverno Bolsonaro/Guedes conseguiu piorar a economia em relação ao governo Temer, sem contarmos o ano de 2020, onde a economia apresentou “crescimento” (sic) de -4,2%. O empobrecimento do país tem raízes em sua orientação política e econômica. A taxa de desemprego gira em torno de 14% da população economicamente ativa, a maior da série histórica, com mais de 14 milhões de desempregados. Se levarmos em consideração os subocupados e desalentados, o total da força de trabalho sem renda ou com sua renda diminuída chega a algo em torno de 35 milhões de brasileiros, segundo o IBGE (Pnad-Contínua). Quando olhamos os brasileiros e brasileiras na informalidade vemos uma taxa de informais de 39% da população economicamente ativa, com 33,5 milhões de trabalhadores informais no país. Logo, um número cada vez maior de pessoas e famílias são empurradas às ruas, ora pela crise econômica promovida pelo neoliberalismo, que levou embora os empregos de muitos, ou por despejos e reintegrações de posse em um ambiente político deteriorado pela burguesia nacional que catapultou o governo de extrema-direita.
É de se imaginar que nesse cenário econômico e social catastrófico o aumento da pobreza tenha repercussão na saúde da população e no sistema de saúde brasileiro. Em nota técnica produzida pelo IPEA sobre a “Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil (setembro de 2012 a março de 2020)” a população de rua foi estimada em 2015 em 120 mil pessoas, saltando para mais de 221 mil pessoas em 2020, quase dobrando em números absolutos e concentrada principalmente nos grandes centros urbanos e indústrias (83% em cidades com mais de 100 mil habitantes).
Assim, a população em situação de rua (PSR) é formada por um contingente complexo de pessoas, com características heterogêneas, mas majoritariamente tendo em comum uma situação de pobreza e de vínculos familiares enfraquecidos ou esgarçados onde o abandono de moradia em caráter permanente ou temporário são suas características mais marcantes. Nesse complexo agrupamento do tecido social brasileiro há desde aposentados com renda fixa, guardadores de carro, vendedores ambulantes até meninos e meninas órfãos já nascidos nas ruas. O ambiente das ruas oferta a esse enorme contingente humano a violência física, muitas vezes promovida pelo Estado através das polícias militares e guardas municipais, a invisibilidade social, a insegurança alimentar, a carência de afeto além, obviamente, de múltiplas possibilidades de adoecimentos físicos no contexto do processo de saúde-doença. A questão chave da população de rua é vista por uma parcela da classe média branca dos centros urbanos como uma questão com forte componente moral relacionada a caridade ou a ordem (esta última com baseada na repressão pelas forças de segurança) estigmatizando assim a PSR, ora como dependentes químicos, ora como doentes mentais ou meramente delinqüentes. Esse pensamento de senso comum é fruto de uma análise rasa como um pires e sem qualquer relação com a produção de desigualdades advindas de um sistema econômico e social capitalista excludente por sua natureza.
Nesse cenário é de se imaginar a dificuldade dessa população para acessar serviços de saúde, porém em 2011 foi implantada pelo Ministério da Saúde, no governo Dilma, um serviço inovador chamado “Consultório na Rua” para oferta de serviços assistenciais em saúde para esse grupo. Essas equipes (eCR) uma vez cadastradas e habilitadas pelos municípios dentro do programa são compostas por diversos profissionais de saúde e suas rotinas de trabalho são baseadas em atendimentos de forma itinerante e em parceria com equipes de atenção básica do território na perspectiva de oferta integral à saúde. Importante destacar que em paralelo a isso algumas prefeituras oferecem abrigamento e alimentação, entre outras ações tais como: Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) e abrigo institucional e/ou casas de passagem, para população em situação de rua tentando assim minorar o sofrimento do desamparo social.
Com a pandemia do causada pelo Covid-19 (Sars-Cov 2) e o total despreparo do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, sustentado pelo partido armado, em particular o Exército brasileiro, a degradação econômica que já era profunda a partir de 2016 conseguiu ficar bem pior, como dito pelo saber popular, onde “nada é tão ruim que não possa piorar”. O despreparo do governo para gerir o Estado Nacional já era claro e óbvio antes da pandemia, com repercussão negativa em indicadores de saúde, mas com a pandemia o despreparo se materializou em uma tragédia gerenciada por incompetentes. A mera divulgação dos números oficiais de casos e de óbitos não é realizada pelo Ministério da Saúde e sim por um consórcio de imprensa independente do governo, sendo que informação em saúde não é privilégio, e sim um direito, porém para ocultar a própria incompetência os números oficiais e sua análise não são divulgado há mais de 1 ano. Assim, não temos um recorte, por exemplo, sobre a PSR deixando-a novamente inviabilizada. O resultado de não haver nem números, nem dados e nem informações é não haver por conseguinte políticas, logo a PSR não conta na precária régua que mede a pandemia. O número disponível sobre o acometimento de Covid-19 recai somente em quem está abrigado em acolhimentos e centros temporários, deixando de fora um enorme contingente de quem vive debaixo de pontes, marquises e sobre as calçadas e bancos de praças.
Além do auxílio emergencial, medida tomada frente a enorme pressão para algum tipo de apoio às famílias mais afetadas pela pandemia, o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro não lançou nenhum outro programa para auxílio ou apoio para populações vulneráveis específicas assim como o poder judiciário, ágil para encarcerar pobres e ligeiro na promoção de ações higienistas com as guardas municipais contra as populações em situação de rua em nada cobram de gestores um olhar mais acurado sobre esse público. Como gestores pedem isolamento social a quem não tem casa? Como pedir higienização das mãos a quem não tem acesso fácil à água potável para beber?
Discursos vazios e sem paralelo na realidade, como a brasileira, sobre o estado mínimo e austeridade fiscal não resolvem problemas estruturais de nossa sociedade, como a desigualdade social e econômica, que a cada dia se agrava. O país precisa de um governo que coloque os pobres no orçamento público, que invista em programas sociais, que tenha na educação, na saúde e na assistência social bússolas de suas ações, olhando diferentes grupos sociais e suas diferentes necessidades. A pergunta que fica é: o atual governo, incompetente na gestão da economia, vazio de políticas no combate a Covid, sem proteção social aos mais pobres, é capaz de alguma ação dessa natureza? Quando, dia 17 de junho de 2021, o Ministro da Economia, Paulo Guedes, em uma live com a Ministra da Agricultura, Tereza Cristina (DEM), sugere oferecer resto de comida dos pratos da classe média a população em situação de rua, afirmando que “aquilo dá para alimentar mendigos” e sua colega Ministra, concordando, diz “podemos rever à validade dos nossos alimentos” a resposta fica bem mais clara.
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