Por Sylvio Costa Jr.
O sistema de saúde brasileiro nasce a partir da 8ª Conferência de Saúde, em 1986, e seus pilares são colocados nos artigos entre 196 e 200 da Constituição Federal, promulgada em 1988. Nasce um sistema de saúde ambicioso que se propõe a atender a todos, sem olhar cor da pele, gênero, renda ou mesmo nacionalidade. O Sistema Único de Saúde (SUS) nasce como um modelo de saúde ousado com inspiração nos modelos cubano e inglês, com Cuba tendo implantado seu modelo de saúde após a revolução de 1959 e o inglês após o fim da 2ª Guerra Mundial. Hoje vários países no mundo possuem sistemas de saúde similares ao SUS, como Portugal, Espanha, Itália, Canadá, que intitulamos como sistemas de saúde universais.
Porém, o SUS é ainda mais audacioso, pois, segundo o Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais ligado às Nações Unidas, o mundo possui apenas 14 países com mais de 100 milhões de habitantes (China, Índia, Estados Unidos, Indonésia, Paquistão, Brasil, Nigéria, Bangladesh, Rússia, México, Japão, Etiópia, Filipinas e Egito), sendo que, à exceção do Brasil, em nenhum há sistemas universais de saúde; ou seja, países com mais de 100 milhões de habitantes não aceitaram o desafio enorme que o Brasil acolheu, de tratar e cuidar da saúde de todos seus cidadãos nos mais diversos níveis de complexidade do indivíduo. Se o recorte for de países com mais de 200 milhões de habitantes fica mais gritante a ambição dos sanitaristas e do conjunto da sociedade brasileira.
O Brasil do SUS não é só o Brasil dos sonhos e das ambições, é também o Brasil que historicamente tem o mais bem sucedido programa de imunização do mundo, é também o Brasil que segue como exemplo mundial no combate a AIDS, é também o Brasil que é referência mundial em transplantes, é também o Brasil que possui a mais bem sucedida rede de urgência e emergências do mundo, que tem o mais ambicioso programa de saúde bucal do mundo, ou seja, é também o Brasil que sonha e realiza.
Disputas políticas
Mas o SUS ainda é objeto de disputas políticas duríssimas, porque sistemas universais de saúde demandam enormes volumes de recursos públicos. Embora o SUS historicamente enfrente o crônico problema do subfinanciamento, onde os recursos para saúde são insuficientes, fazendo o Brasil ser o país dentre os países com sistema universais que menos investe em Saúde, ainda sim esses parcos recursos são objeto de lutas políticas acirradíssimas. O Brasil gasta apenas 4% de seu PIB em Saúde enquanto países como Inglaterra, Portugal e Espanha gastam no mínimo 6% de seu PIB na manutenção de seus modelos de Saúde Pública.
Isto posto, com os parcos recursos disponíveis, muito foi realizado. O SUS não nasceu no Governo Lula, mas muitas vezes parece que foi, uma vez que antes de 2003, nos Governos Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique, poucas eram a iniciativas e programas estruturantes na Saúde, sendo que os poucos programas de maior relevância, como o Programa Saúde na Família, ainda eram tímidos. Após o presidente Lula assumir a Presidência da Republica, o SUS passou a ter programas estruturantes, levando o Ministério da Saúde, por consequência, a possuir um aporte de recursos significativo. Vimos, a olhos nus, a criação e funcionamento de:
2003 - Expansão do Saúde da Família, dobrando em 10 anos o número de equipes funcionando em todos os municípios do Brasil;
2003 - Brasil Sorridente, criando uma rede de cuidados em saúde bucal, até então inexistente, com financiamento próprio e rede de especialistas;
2004 - UPA 24 horas - Unidade de urgências que serve de suporte à rede hospitalar e até à atenção básica. São mais de 300 já funcionando no país;
2005 – SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) para o salvamento imediato de vidas. Quem nunca viu uma ambulância do SAMU salvando vidas?
2008-2011 - NASF I, II e III: Oferta de equipes multiprofissionais para apoio das equipes de Saúde da Família no território. São mais de 2.000 equipes já implantadas;
2009 - Farmácia popular: financiamento de medicamentos às populações mais fragilizadas;
2010 - Requalifica UBS: mais de 14 bilhões de reais por ano para reforma, ampliação e construção de unidades de AB;
2010 - Consultório na Rua: equipe multiprofissional para atendimento à população em situação de rua;
2011 - Melhor em Casa: política que visa o financiamento para criação de equipes no cuidado do paciente crônico e na sua desospitalização;
2012 - E-sus: Criação e oferta, sem qualquer custo para as prefeituras, de um prontuário eletrônico comum a todas equipes de saúde no país;
2011 - PMAQ: programa que cria um financiamento adicional da atenção básica e mensura nacionalmente a qualidade do serviço na atenção básica (Saúde da Família);
2014 - Mais Médicos: Mais de 14 mil médicos bolsistas para atendimentos em vazios assistenciais no Brasil; onde não há oferta de cuidados médicos, o governo levou esses profissionais.
Hoje muitos desses programas acabaram por completo ou tiveram seu financiamento extinto, como a Farmácia Popular e o NASF, respectivamente, ou foram descaracterizados, como o Mais Médicos, que se propunha, além do provimento médico a regular as vagas de residência no Brasil e a unificar o cadastro de especialistas. Ou ainda outros programas que tiveram mudanças significativas no seu financiamento, como o Saúde da Família, onde a implantação do Previne Brasil regulamenta e Emenda Constitucional nº 95, sufocando seu financiamento e modificando sua lógica de cuidados criando outro modelo que é tudo, menos Saúde da Família.
Estado mínimo
Nessa agenda de diminuição do tamanho do estado brasileiro, o PSDB/DEM e o Bolsonarismo são parceiros, pois para ambos o SUS não cabe na política de Estado Mínimo. Não cabe no Estado Mínimo um sistema de saúde que, além de grandioso, dispute clientela com operadoras de planos privados. Por isso, tanto para bolsonaristas quanto para tucanos, o SUS deve ser residual para as populações mais pobres que não conseguem consumir planos privados de saúde. Em um pais de mais de 200 milhões de habitantes, as operadoras privadas de seguros de saúde vêem universo de possibilidades de aumento de sua clientela.
Vou mais além: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) criada pelo Fernando Henrique Cardoso no final de seu desastroso segundo mandato, a mando do FMI, na Saúde teve como resultado imediato e objetivo a entrada de empresas privadas no interior do SUS, não para competir com o SUS na oferta de serviços, mas para fazer aquilo que deveria ser papel do setor público. Entretanto, por força da LRF, o Estado não pode contatar serviços ou ampliar sua rede assistencial, mas fica livre legalmente para, com o dinheiro público, contratar serviços privados.
O SUS, desde as Conferências de Saúde na década de 1980 até o momento atual, é objeto de disputas políticas. Imagine a força mobilizadora de um modelo de saúde capilarizado em todos os 5570 municípios do país, com um volume nominal de recursos significativos, em um território do tamanho de quase toda a Europa, de Portugal ate a Ucrânia, e com uma população 20 vezes maior de nossos colonizadores. A disputa existente no SUS é o exemplo acabado da querela que existe atualmente na sociedade brasileira.
A evolução do SUS é a resultante da disputa política na sociedade, onde os períodos de avanço foram também os momentos de maior mobilização e agito social. Foram as greves das décadas de 1980 e 1990 que canalizaram a energia social para desaguar num período de avanços nos anos 2000. Foram as mobilizações da década de 1980 e 1990 que fizeram a ditadura ruir, que organizaram a 8ª Conferência de Saúde, que garantiram um mínimo de Estado de Bem Estar Social existente na Constituição Federal, que permitiram que o Saúde da Família fosse lançado em 1994, mesmo que de forma minimalista.
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Defesa do SUS
Dito isto, rememoro no livro “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, o mais relevante escritor de língua portuguesa, um personagem intrigante intitulado pelo autor como o ‘Velho do Restelo’. Esse personagem aparece no contexto da viagem de Vasco da Gama para as grandes navegações em uma crítica, por vezes estérea e queixosa, diante do ímpeto do navegador português.
O Velho do Restelo é aquele que, em última instância, seria caracterizado como pessimista ou fatalista. Essa figura do Velho do Restelo, muitas vezes, é vista nos grupos mais aguerridos ou em eleitores da esquerda lamentando os dias atuais de desmonte das políticas de seguridade social e de avanço acelerado sobre o Estado Nacional de um Governo Federal de orientação fascista, aliado às pautas econômicas a partidos proto-fascistas, como o PSDB/DEM.
Não foi chorando pelo zoom, lamentando da vida nos grupos de whatsapp, ou ainda lastimando a vida no sofá de casa que as conquistas sociais aconteceram. Não foi no conforto da vida de classe média que os avanços sociais foram alcançados pelo conjunto da sociedade. A não ser que encontremos alguém para fazer por nós o que não fazemos, que encontremos alguém que peleje enquanto choramingamos, cada vez mais é necessário que lutemos pelo SUS que sonhamos e pelo país que almejamos nas ruas e participando de manifestações.
A seguridade social e a dignidade humana não serão garantidas pelo parlamento ou por eleições, mas sim por mobilizações de massa nas ruas. Que o Velho do Restelo fique sempre presente somente na brilhante obra de Luís Vaz de Camões.
Glossário: PIB, programas estruturantes na Saúde, política de Estado Mínimo, Estado de Bem Estar Social, fascistas, proto-fascistas
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