Por Julio Araujo José Jr.
Não vamos cansar de dizer. Enquanto o Supremo Tribunal Federal não afastar qualquer dúvida sobre o alcance dos direitos territoriais indígenas, toda solidariedade aos povos indígenas será insuficiente. A grandiosidade da mobilização em torno da defesa desses direitos em Brasília é a coisa mais bonita que se vê nesse Brasil marcado por destruição, apagões, violências e genocídios em 2021. É uma mobilização pela vida, pela existência e, no final, pela sobrevivência da Constituição de 1988.
A aplicação do marco temporal significaria um decreto de revogação do texto constitucional, negando a grupos minoritários um direito expressamente garantido na lei fundamental. Muita gente já percebeu isso, da opinião pública às rodas de bar. Se há alguns anos esse tema causava estranheza ou dúvidas em parte da sociedade, que via uma suposta razoabilidade na tese, hoje a opinião pública percebe que não faz sentido revitimizar povos que sofreram com violências, expulsões e negação da identidade ao longo da história. Além disso, é necessário que resgatemos nossa dívida histórica e pratiquemos a diversidade no presente, aqui e agora.
É necessário pensar nas trajetórias indígenas longe da visão idealizada, que as equipara a peças de museu vindas do período colonial, a serem estudadas numa árvore genealógica linear. Sem reconhecer os impactos do assimilacionismo e das “pacificações” e extermínios, como viabilizar a existência dos povos indígenas? Se recusarmos olhar para as reinvenções e reorganizações dos povos indígenas no presente, com etnogêneses, retomadas e afirmações étnicas, estaremos cometendo novas violências contra esses povos e servindo a um discurso colonial.
Estou confiante. Diante de seu caráter flagrantemente inconstitucional, o marco temporal não pode prosperar. Não vai prosperar. Além de injusto, aplicá-lo seria cruel com a segurança jurídica – e principalmente física - dos próprios indígenas. E o próprio plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) já sinalizou que não compactuará com isso, como em alguns acórdãos que trataram da matéria indígena (ACO 362 e ACO 366) e no julgamento da matéria quilombola (ADI 3239). A confiança, pois, não é desprovida de fundamento.
Mas derrotar o marco temporal, embora imprescindível, não pode ser a única trincheira. O medo de acordões interinstitucionais para transformar essa maldição jurídica em amarras burocráticas nos processos de demarcação tende a ser, aos olhos dos adversários da causa indígena, uma reação muito mais eficaz a esse cenário de mobilização e de convencimento da opinião pública, com efeitos que podem se prolongar por anos. O questionamento à oralidade, a criação de contraditórios infindáveis, o estabelecimento de etapas de fixação de indenização são algumas das várias medidas que poderiam cumprir o mesmo papel do marco temporal e ainda garantir uma fuga na discussão quanto à eventual constitucionalidade das medidas.
Essas alterações em processos soariam singelas, mas fariam grande estrago. Em vez das erosões das instituições responsáveis pela pauta socioambiental, a que já estamos assistindo desde janeiro de 2019, estaríamos diante da fixação de regras, em abstrato, para “delimitar” (restringir) a atuação administrativa e tornar o processo demarcatório extremamente penoso e difícil, com fortes impactos na efetivação desse direito em tempos futuros mais democráticos (confio).
Por essas e outras, não dá para arredar o pé. Derrotar o marco temporal é fundamental. Mas não existe meio termo para a efetivação de direitos territoriais indígenas nem espaço para amarras que os limitem. A diretriz constitucional é clara ao conferir a esses direitos um status especial, com precedência em relação à propriedade privada, e o Estado não tem discricionariedade para negar a sua efetivação. É um olho no STF e outro no Congresso, com a Constituição acima de ambos. Se os violadores não dormem, os indígenas seguirão a sua vigília.
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