Por Edson Diniz
Neste mês de setembro, comemoraremos o centenário de nascimento de Paulo Freire, patrono da educação brasileira e um de nossos maiores pensadores. Além de justa comemoração, o centenário significa a oportunidade reconhecer na obra freireana o potencial para nos ajudar a enfrentar algumas das questões mais importantes colocadas pelo século XXI – um século marcado pelo avanço do conservadorismo, ataque a direitos básicos e retrocessos em campos fundamentais da vida coletiva como a educação e os direitos humanos. No caso brasileiro, sofremos ainda com os efeitos da pandemia da Covid-19, agravados pelo descaso com a vida do povo por parte do governo Bolsonaro; governo responsável por levar a cabo um projeto de país violento, desigual e corrupto.
Assim, revisitar Paulo Freire, em primeiro lugar, nos dá a oportunidade de reafirmar um projeto de país mais justo e igualitário, onde o direito à educação e à vida sejam respeitados como condições básicas da democracia. Ao mesmo tempo, significa reconhecer o impacto e a influência da obra freiriana na vida de milhões de professores e professoras ao redor do mundo.
Nesse sentido, quero partilhar com os leitores e leitoras um pouco de minha própria experiência com Paulo Freire, em um exercício de autorreflexão, homenagem e esperança de poder ajudar a pensar sobre a atualidade da obra do maior educador brasileiro.
Lembro que ainda jovem ingressei no magistério em uma escola para trabalhadores no Centro da cidade do Rio de Janeiro, um curso noturno para “jovens e adultos”. Ao mesmo tempo, passei a dar aulas – como fazem tantos professores – em outra escola em um bairro na Zona Norte da cidade. Ainda cursava a faculdade de História. Na verdade, estava nos anos finais, e a oportunidade de começar a carreira como professor muito me animava.
Porém logo essa animação deu lugar a uma certa desilusão. Explico: quando pisei em sala de aula pela primeira vez, minha expectativa era que os estudantes “vibrassem” com as aulas de História, achando muito interessante, por exemplo, saber que o Brasil, ficou independente de Portugal pelas mãos de um rei português; ou que aqui já habitavam o território, antes da invasão portuguesa, pelo menos 6 milhões de pessoas – erroneamente chamadas de índios – depois dizimadas pela ganância europeia –; ou ainda saber do sofrimento e da resistência do povo negro trazido como escravizados para estas terras.
Mas, pelo contrário, a maioria dos estudantes simplesmente não se interessava muito pelo conteúdo das aulas, pelo menos não no grau em que eu esperava. Confesso que durante um bom tempo não entendi o porquê de meu insucesso com os estudantes, pois embora nossa relação fosse muito boa, parte deles simplesmente não se engajava nas aulas.
Foi aí que entrou em cena um “pequeno livro” que mudou minha relação com a Educação e com minhas turmas. Não lembro como ele chegou às minhas mãos, mas lembro da alegria ao ler “Pedagogia do Oprimido” (1996) e perceber, imediatamente, um mundo de possibilidades a se abrir no campo da educação. Educação que ganhava, agora, contornos de uma ação política e não mais uma mera transmissão de conteúdos disciplinares ou um voluntarismo ingênuo que acreditava que apenas as aulas bem preparadas mudariam o mundo.
Não li o livro como um manual, mas como uma referência e inspiração para meu trabalho e para minha vida. Ainda não entendo como me graduei em uma universidade pública e muito respeitada na área da Educação sem ter passado os olhos nesse livrinho tão precioso. Mais uma evidência de nossas falhas da formação docente...
Ler Paulo Freire me levou a fazer uma reflexão crítica do que eu entendia por Educação, de minha própria prática educativa e o papel da escola na sociedade. Pude ver, por exemplo, que minha postura de uma suposta “neutralidade” – acreditava que o professor não interferia no desempenho dos estudantes, sendo estes os únicos responsáveis pelo seu sucesso ou fracasso – era um erro e uma bobagem.
Pude olhar para os jovens e adultos trabalhadores e as crianças, com quem diariamente dividia minhas aulas, de outra maneira e entendi que o ato de educar e uma ato compartilhado, amoroso e que se faz em comunhão com o outro. E como dizia Paulo Freire: “Ninguém educa ninguém. Ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1996).
Esse foi um dos maiores ensinamentos que recebi de Paulo Freire, pois aí estão contidos a amorosidade do ato de ensinar, o compartilhamento do mundo com o outro e a certeza da potencialidade humana. Muitos outros ensinamentos somaram-se a esse e isso me ajudou a não abandonar o magistério, possibilidade que eu havia cogitado logo nos dois primeiros anos em sala de aula.
Com Paulo Freire, aprendi a ter respeito pelos contextos e saberes vivenciados e trazidos pelos educandos para sala de aula. Entendi que considerar o conhecimento científico como guia de nossas ações não significa desprezo pelo senso comum, mas reconhecer neste a curiosidade primeira que é superada dialeticamente no processo educativo. Também aprendi sobre o erro do ensino bancário – no qual o professor “deposita” o conhecimento pronto na cabeça do aluno - e seu autoritarismo, que não respeita a subjetividade e a autonomia dos estudantes.
Igualmente importante foi perceber que a pedagogia de Paulo Freire está baseada na esperança da mudança, mas não de uma forma ingênua, como se apregoa por aí. “Mudar é difícil, mas é possível” (FREIRE,1996), reconhece Paulo Freire. Por isso, exige comprometimento, estudo e rebeldia contra as desigualdades, injustiças e violências imposta aos mais pobres pelas elites que governam o mundo. Rebeldia que se transforma em ato revolucionário no cotidiano escolar quando docentes e discentes constroem, juntos, alternativas educativas que superam relações desumanizadoras e alienantes.
Por fim, entendi que Paulo Freire nos permite enxergar a Educação como uma das ações humanas mais importantes para a mudança. Mas só uma educação viva, amorosa, base para uma “a leitura do mundo” crítica, feita por sujeitos livres e autônomos, é capaz de promover mudanças verdadeiras em prol dos menos favorecidos, dos deserdados da terra.
Comemorar o centenário de Paulo Freire é, assim, a oportunidade de nos reencontramos com a esperança de um mundo melhor e mais justo (FREIRE, 1997). Mais do que uma utopia, essa é uma necessidade urgente no século XXI, pois precisamos viver em uma sociedade na qual as pessoas sejam respeitadas, tenham liberdade e se vejam como iguais. Na construção desse mundo novo e mais humano, tenho certeza, o legado de nosso maior educador pode ajudar, e muito!
Nesses tempos tão difíceis, Paulo Freire nunca foi tão necessário.
Viva Paulo Freire!
Bibliografia
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
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