Dos pobres e oprimidos, entre a utopia e a ideologia
Por Leandro Marins Sarmento
No próximo dia 19 de setembro comemoramos 100 anos do nascimento de Paulo Reglus Neves Freire. Governado por uma turma reacionária e, sem qualquer vínculo com o conhecimento que a humanidade construiu durante a história, o Brasil vai passar esse ano devendo justa homenagem ao Patrono da Educação Brasileira?
No centenário de seu nascimento não vão faltar textos sobre o educador, não se preocupem, e todos são muito importantes, uma vez que este governo militar não vai fazer uma linha sequer sobre. Cabe à iniciativa popular a lembrança e as comemorações. Mas tem algo mais singular para Freire do que a lembrança dos que querem gritar e não podem? A turma da caserna não encontra cognição para homenagear nosso pernambucano, eles são brilhantes, e Ustras, o suficiente para levantar a bandeira todo dia 31 de março.
Para variar um pouco a leitura sobre o brilhante, mesmo na imortalidade, Paulo Freire, escolhi dividir com os companheiros leitores uma reflexão sobre o momento em que estamos vivendo, com a companhia em memória do centenário, e explorar uma discussão que costuma ser calorosa entre os educadores: Paulo Freire era marxista? Seu legado e sua obra são marxistas?
Paulo Freire já respondeu diretamente essa pergunta em uma entrevista. Talvez não tenha ficado claro, então vamos brincar um pouco com os corações revolucionários apaixonados, e também, com aqueles que a dureza e as desilusões da realidade desistiram da ruptura e apostam suas fichas no caminho da conciliação. Esse povo é insistente.
Capanema
Na década de 1930, o país, os movimentos sociais e seus intelectuais construíram o nosso primeiro Plano Nacional de Educação. Gustavo Capanema, Ministro da Educação que mais tempo ficou no cargo, numa tarde do dia 15 de maio de 1937 se pronunciava com entusiasmo ao Conselho Nacional de Educação que aprovou o texto naquele dia por unanimidade: “Efetivamente, é a primeira vez que se vai fazer em nosso país, uma lei de conjunto sobre a educação!”
Não foi! No dia 10 de novembro de 1937, a República é golpeada pelo próprio presidente em exercício, Getúlio Vargas, fechando as casas legislativas representativas e implantando o Estado Novo. Gustavo Capanema, que permaneceu no Ministério da Educação, recua na iniciativa de promover o que seria o primeiro Plano Nacional de Educação. O leitor deve estar se perguntando: o que Paulo Freire tem a ver com isso?
Para muitos, Gustavo Capanema não pode ser considerado mocinho, afinal ajudou a criar o modelo de Educação Cívica, participou da reunião que discutiu as medidas após a desastrosa tentativa revolucionária comunista de 1935 e votou favorável à cassação dos mandatos dos parlamentares do PCB. No entanto, a contradição é, talvez, a biografia do pitanguense. No seu período à frente do ministério temos a criação do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e o Instituto Nacional do Livro e da União Nacional dos Estudantes.
Assombração
Em mais um episódio das desventuras em série promovidas pelo Governo Bolsonaro, a antiga sede do Ministério da Educação, o edifício Gustavo Capanema, assinado por Oscar Niemeyer, patrimônio tombado pelo IPHAN (legado de Capanema), foi colocado na lista para leilão. Quem encontra semelhanças entre Gustavo Capanema e Paulo Freire não é este autor. São, mais uma vez, os militares de pijama que pensam controlar o país.
Assim como fazem com Paulo Freire, os militares embaraçam a mente de quem deseja pensar o país e, tentando se desfazer de todas as marcas e características dos fantasmas comunistas que assombram o verde oliva, elegem Capanema - e obviamente Niemeyer, como mais um inimigo da tradicional família brasileira cristã e da nação. Obviamente Capanema não era comunista.
Os devaneios de um totalitarismo medíocre, mas violento, nos dão pistas de como os homens livres ameaçam os projetos de poder de uma minoria armada. Paulo Freire foi promovido à inimigo de Estado no projeto educacional Escola Sem Partido com o argumento de contaminar mentes e corações com seu marxismo cultural.
Alfabetização
Mais do que sua obra, uma Pedagogia para os oprimidos e que deu, e ainda dá, esperanças às milhares de professoras e professores que enfrentam os desafios da pobreza e das desigualdades, todos os dias quando chegam para trabalhar no chão das escolas públicas, o que amedronta os reacionários no Brasil é a sua biografia. Mais do que um autor revolucionário, revolucionou o modo de ler o mundo e, portanto, o modo de ver os alunos, a escola e a Educação, Freire nos ajuda a compreender os desafios do cotidiano e perceber as urgências das lutas sociais quando, em 1963, alfabetizou trezentos adultos em 45 dias.
Ora, isso é apenas um episódio. Mas significa trabalho. Significa que Paulo Freire, mais do que um intelectual orgânico e teórico, que buscava e filosofava a revolução proletária, entendia a fome e a miséria do conhecimento como urgências inadiáveis e como forma de mudar a realidade. O inédito viável de Paulo Freire, como costumava chamar suas utopias, era construído no cotidiano junto daqueles que nada tinham.
O que une, na cabeça vazia dos militares no poder, Paulo Freire e o conservador Gustavo Capanema, é, justamente, o trabalho. Capanema escolheu participar de um governo totalitário e preservar algumas conquistas e vidas por dentro do Estado. Paulo Freire escolheu abandonar, se é que em algum dia escolheu essa via, uma revolução desenhada num futuro distante, para construir um presente que enfrente as faltas urgentes.
Pesadelo dos militares
Nesse cenário, Paulo Freire sofreu ataques da esquerda revolucionária quando se aproxima do novo sindicalismo e da fundação do Partido dos Trabalhadores. O novo sindicalismo abandonaria no final da Ditadura Militar (1976-1985, lenta e gradual) o horizonte revolucionário e avançaria para disputar o Estado e a narrativa do processo de democratização. Não foi o único, Darcy Ribeiro, Leonel Brizola e Oscar Niemeyer promoveram o maior projeto popular de Educação no Brasil, os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP).
Assim como Rosa Luxemburgo que, também criticada pelo marxismo duro, ao dizer que de “nada servia o marxismo se ele não servisse para superar-se a si mesmo”, e Carlos Nelson Coutinho, quando escreveu o texto crítico “Democracia como valor universal”, Paulo Freire foi duramente criticado pela tendência marxista-pedagógica denominada Pedagogia Histórico-Crítica, que tem como um de seus ícones o filósofo e pedagogo Dermeval Saviani, por não vislumbrar em sua obra a ruptura com a sociedade de classes.
Paulo Freire é o Patrono da Educação Brasileira porque sua biografia não se resume à militância. O trabalho na obra de Paulo Freire é a mais revolucionária de suas obras. Paulo Freire representa milhares de professores e professoras que acordam muito cedo todos os dias e levam o trabalho para casa. Representa as marchas de todos os oprimidos, dos sem-terras, dos sem-tetos, das mulheres, negros, nativos, ribeirinhas, de todos os que não têm e querem ter. A sua herança nas universidades representa o pesadelo dos militares, a luta constante das professoras e professores pela liberdade. Não recuaremos.
Perguntado se era comunista, marxista, Freire respondeu: “Não foram os camponeses que disseram a mim: Paulo, tu já leste Marx? Não, eles não liam nem jornal, foi a realidade que me remeteu a Marx”.
Glossário: reacionária, turma da caserna, cognição, marxista, totalitarismo, marxismo cultural, revolução proletária, inédito viável
Até hoje o Patrono da Educação Brasileira, Paulo Freire, que completaria 100 anos em 2021, é visto como um doutrinador marxista por alguns militares e conservadores. Mas o pedagogo não “assusta” as elites apenas com suas ideias, mas principalmente com sua técnica alfabetizadora, que contribuiu na prática para a redução da desigualdade social.
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