terça-feira, 5 de outubro de 2021

Caminhos para a efetiva implementação da gestão das águas no Brasil (Reflexões iniciais)

*Angelo José Rodrigues Lima

    1. INTRODUÇÃO

Este artigo tem o objetivo de estimular o debate sobre a implementação efetiva da gestão das águas no Brasil. O artigo não tem a pretensão de apresentar todas as possibilidades para isso, mas sim estimular o debate, que é mais do que necessário e urgente.

Há 24 anos, com a Lei das Águas, os atores participantes da gestão das águas no Brasil ajudaram a construir mais de 200 Comitês de Bacias, Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos e Conselho Nacional de Recursos Hídricos e tantas experiências acumuladas de construção de planos de bacias hidrográficas, planos estaduais de recursos hídricos. Agora, está na hora de fazermos um grande balanço nacional para reflexão e análise de onde saímos, onde estamos e para onde estamos indo.

    2. OS DESAFIOS PARA A GESTÃO DAS ÁGUAS

De acordo com Leff (2010), uma das principais causas da problemática ambiental encontra amparo no processo histórico em que se insere a ciência moderna e a Revolução Industrial. A ecologia demanda o Materialismo Histórico para explanar a produção de valores como decorrência do que é produzido de forma natural. É necessária uma reestruturação no que tange ao conceito de valor, renda diferencial e forças produtivas para que o processo produtivo entre em consonância com o meio natural.

Nesse cenário, assinalam Pereira e Horn (2009, p. 57), os limites ambientais devem ser vistos como parâmetros para que se gere um novo modelo de desenvolvimento – sustentável. Esse modelo deve afastar a premissa de que desenvolvimento sustentável se resume à simples economia de recursos naturais. Logo, esses limites não podem ser entendidos como decorrentes da insuficiência natural dos recursos para o atendimento das necessidades humanas. Eles devem ser entendidos na percepção de que a falta de tais recursos conduz ao indevido e destrutivo relacionamento do homem com a natureza, principalmente, quanto à produção de bens econômicos.

Nossos problemas relacionados à gestão das águas e do ambiente não se resumem somente aos políticos e epistemológicos. Segundo Leff (2010), também é a forma como se lida com os processos.

Os problemas relacionados com a água, um dos mais importantes recursos ambientais, não estão dissociados das relações históricas entre o homem e o Meio Ambiente e suas atividades produtivas, o que tem resultado em uma grave crise ambiental no nosso planeta. Esta crise em que os recursos hídricos estão inseridos é decorrente do modelo de desenvolvimento adotado, no qual os recursos naturais estão escasseando, seja em qualidade, como em quantidade. Neste sentido, torna-se necessária uma mudança de concepção no modelo de desenvolvimento.

O Fórum Econômico Mundial sempre trata dos riscos globais e a cada ano apresenta um relatório sobre os riscos mais significativos e de maior impacto a longo prazo em todo o mundo, baseando-se nas perspectivas de especialistas e tomadores de decisão globais. No relatório de 2015, aproximadamente 900 especialistas participaram da pesquisa de percepção de Riscos Globais. Eles classificaram a crise de abastecimento de água como o maior risco e de maior impacto que se anuncia no mundo atual. Além deste, outros grandes riscos relacionados a seus conflitos e conflitos interestatais, em termos de impacto, são: propagação rápida de doenças infecciosas, armas de destruição massiva e a falta de adaptação às mudanças climáticas (World Economic Forum, 2015).

Com um universo de pesquisados diferentes, em 2016 outros entrevistados colocaram a questão da água como o terceiro maior desafio para o desenvolvimento econômico, social e ambiental (World Economic Forum, 2016). Portanto, a gestão da água deve ganhar cada vez mais um caráter estratégico por parte dos tomadores de decisão, senão pelo menos dos setores privados, já que a escassez da água pode afetar diretamente os negócios de grandes grupos empresariais. Assim, a água é o recurso estratégico do século XXI e, acima disso, deveria ter sido de todos os séculos.

A água é um recurso vital e estratégico para o abastecimento humano e para o ecossistema aquático. Em alguns países, como, por exemplo, a Austrália, em relação à prioridade da alocação de água, primeiro vem o abastecimento humano e em segundo o ambiente. A indústria e agricultura são os últimos.

A água pode ser considerada no âmbito de diversas funções, seja como solvente universal, componente bioquímico dos seres vivos, meio de sobrevivência para várias espécies vegetais e animais, elemento de valores sociais, culturais e estéticos, insumo na produção de bens e serviços de consumo intermediários e finais. Todo processo depende da água na sua mais ampla acepção, da indústria de produção de equipamentos à produção de alimentos, da produção de energia ao abastecimento da população.

O ciclo todo da água é caracterizado por um fluxo permanente de energia e de matéria, estando ligado ao substrato e à vida. Essa visão sistêmica reúne Geologia, Geografia, Hidrologia, Biologia, Neurologia, Física, Química e outras disciplinas. Demonstra-se, dessa forma, que para entender o funcionamento do ciclo das águas necessita-se de uma diversidade de conhecimentos, assim como o caso da gestão das águas, que é complexa e requer, além do conhecimento técnico, o social, político, econômico e ambiental, (CAPRA; LUISI, 2014). Contudo, mesmo verificando-se que há disponibilidade de água no planeta, os resultados da ação do homem, questões naturais e ausência de gestão, fazem com que algumas regiões enfrentem escassez. A figura 1 apresenta o nível de risco para o uso da água no mundo. 


Figura 1: Fonte: World Resources Institute, Projeto Aqueduct, 2014

A imagem apresentada (Figura 1) enfatiza a seriedade com que o mundo deve tratar a gestão das águas, já que a distribuição desse recurso não se apresenta de forma igual para todos os países, havendo locais onde os riscos para o uso da água são altíssimos. É fato que, por vezes, os riscos aumentam por ausência absoluta de governança, gestão e de implementação de ações.
Devido à escala da figura 1, apresentada de forma macro, não aparecem por completo os problemas de escassez no semiárido brasileiro e mesmo problemas de criticidade em outras regiões hidrográficas do Brasil, contudo sabe-se que esses problemas existem e são críticos.
Segundo Rebouças (1999), nos últimos 500 milhões de anos a quantidade de água na Terra se manteve praticamente a mesma. Porém, é possível dizer que sua distribuição se altera ao longo do tempo, especialmente por conta das variações climáticas. Exemplo disso é que, segundo os especialistas em mudança de clima, para cada grau centígrado de aumento na temperatura da Terra, a evaporação aumenta em 7%. Totalizam-se 1.386 milhões de km³, sendo que 97,5 % dessas águas são salgadas. O restante, aproximadamente 2,5 %, é de águas doces. Com relação a esta última tem-se que: 69,0 % de toda a água doce são compostas por geleiras glaciais, calotas polares e neves eternas, portanto não está disponível para o consumo humano; o restante disso, apenas 31,0 % das águas doces, estão disponíveis nos rios e lagos para uso e consumo imediato e futuro, assim como compõem a umidade dos solos, vapor e águas dos pântanos. Ademais, acredita-se que menos de 1,0 % de toda a água doce seja potável, (REBOUÇAS, 1999).
O Brasil possui uma área de 8.511.965 km², sendo um país rico em água, pois dispõe de 177.900 m³/s de descarga de água doce em seus rios, o que representa, aproximadamente, 13,0 % de água doce superficial do mundo, (REBOUÇAS, 1999). Considerando ainda as vazões oriundas de território estrangeiro que ingressam no país (Região Amazônica, Uruguai e Paraguai), a vazão média total atinge cerca de 18,0 % da disponibilidade mundial (RAUBER; CELLA, 2008). Entretanto, devido a essa “disponibilidade”, o país viveu a ilusão de abundância em quantidade de água, esquecendo-se da manutenção da qualidade das águas. 
Na realidade, o Brasil tem 79,7% do potencial hídrico localizado na região Norte, onde vive 7,8 % da população e há a menor demanda hídrica. As águas restantes, ou seja, 21,3 %, estão localizadas nas demais regiões do país, as quais abrigam 92,2 % da população total, (GODOY, 2006). As regiões Sul e Sudeste se destacam pela concentração populacional, consumo elevado de água e por possuírem bacias hidrográficas localizadas em regiões altamente industrializadas que, há tempos, apresentam conflitos de uso, sobretudo em decorrência da contaminação por efluentes industriais e domésticos, como relata a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária, (ABES, 1990).
Na região Sudeste (figura 2) encontra-se, aproximadamente, 43,0 % da população brasileira e o volume das águas com relação ao Brasil não passa de 6,0 %. Na região Nordeste, onde se encontram 29,0 % da população brasileira, o volume é de apenas 3,0 %. Na região Sul, tem-se cerca de 15,0 % da população e apenas 7,0 % de água disponível. Na região Centro-Oeste se encontra cerca de 6,0 % da população e tem-se cerca de 16,0 %. Na região Norte, onde estão apenas 7,0 % da população, tem-se cerca de 68,0 % das águas. A figura 2 mostra, em quatro áreas, que a distribuição das águas dentro do país é desigual.



Figura 2: Distribuição da Água no Brasil.
Fonte: Secretaria do Estado da Educação; Superintendência da Educação (2016).

Em que pese o Brasil ter uma das maiores quantidades de água de um país no mundo, existem desafios, pois segundo o Atlas do Abastecimento Urbano de Água, de 2011, as regiões hidrográficas do Atlântico, onde vivem 45% da população urbana do país, detêm apenas 3% da disponibilidade hídrica, a qual está em franco declínio. Segundo este Atlas, 55% dos municípios brasileiros (73% da demanda) estarão sujeitos à falta de água no terceiro decênio do século. 
A ameaça da escassez hídrica não é mais, portanto, exclusividade da região Nordeste do país, cuja população sofre secas históricas e uma aridez crescente, com áreas sempre maiores de desertificação. De resto, as secas mostram sintomas de agravamento no Nordeste, que vão de par com o declínio da Bacia do Rio São Francisco. Segundo o Inmet, a seca de seis anos (2012-2017) que se estendeu por todo o semiárido foi a mais prolongada e a pior das oito grandes secas plurianuais registradas desde 1845. E após o interregno de chuvas muito desiguais do primeiro trimestre de 2018, a seca retorna com força, desde maio, em 10 estados do país, incluindo a quase totalidade do Nordeste, com temperaturas em julho entre 36º C e 38º C.
Em 26 de junho, 598 municípios do NE estavam em situação de emergência. Em 4 de julho, já eram 821 nessa situação, com pelo menos 1,7 milhão de pessoas tendo acesso à água potável apenas via carros-pipa, segundo dados do Ministério da Integração Nacional.
Registra-se que crises hídricas estão acontecendo em todas as regiões do Brasil, não somente na região Nordeste.
Uma questão a se destacar está relacionada ao ciclo hidrológico e às mudanças climáticas. Em algumas regiões ainda não se pode prever se com as mudanças haverá secas ou cheias. Desta maneira, o Brasil, por ter grande parte da água doce disponível no mundo e por ser estratégico do ponto de vista geopolítico (especialmente a região amazônica), necessita cuidar da manutenção qualitativa e quantitativa de suas águas. Atualmente os recursos hídricos do Brasil estão bastante ameaçados, devido a seu estado de degradação, causado pela ausência de tratamento de esgoto que é jogado nos rios, desmatamento nos diversos biomas do Brasil, redução das matas ciliares e a poluição industrial.
Devido ao aumento da população e ao modelo de industrialização, agricultura e urbanização, o homem tem contribuído para a alteração do ciclo hidrológico. As mudanças globais, em parte resultantes da aceleração dos ciclos biogeoquímicos e o aumento da contribuição de gases de efeito estufa na atmosfera, também interferem nas características do ciclo hidrológico, afetam a temperatura das águas superficiais de lagos, rios e represas e produzem impactos na biodiversidade, na agricultura, na distribuição da vegetação, consequentemente alteram a quantidade e qualidade dos recursos hídricos (TUNDISI, 2003).
A média de esgotos tratados para o Brasil é de apenas 49,1 %, consequentemente boa parte dos rios recebem grande volume de esgoto doméstico, degradando-os e ainda causando doenças, especialmente nos setores mais pobres da sociedade brasileira. A grande maioria das cidades não tem aterro sanitário e todos os resíduos sólidos são depositados em lixões que certamente contaminam os rios, especialmente o lençol freático. Deve-se mencionar ainda a poluição industrial e a poluição no campo, causada especialmente pelos agrotóxicos, sendo que o Brasil é um dos países que mais utilizam agrotóxicos. (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS 2019).
Nesse sentido, cabem algumas perguntas. Há 24 anos foi aprovada a Lei das Águas, Lei no 9.433, (BRASIL, 1997), que trata da Política Nacional de Recursos Hídricos. Quais são os seus resultados efetivos de implementação? Nestes anos de existência, a Política das Águas enfrenta enormes desafios para que possa ser implementada e tenha resultados concretos de conservação e recuperação das águas. Um dos pilares básicos, no âmbito político, são os Comitês de Bacias, hoje existentes em mais de 200 bacias de rios em domínio da União e dos Estados. Quais são os resultados efetivos de conservação e recuperação das águas através dos Comitês de Bacias? O Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos está funcionando? Os órgãos gestores trabalham de forma adequada? Existem funcionários suficientes em todos os órgãos gestores para a implementação da política? Como são os processos de organização e convocação das reuniões de trabalho dos comitês? Como garantir que haja uma igualdade de representação dos diversos atores na gestão das águas? O Comitê de Bacia em sua composição prevê a distribuição entre representantes do poder público, usuários e sociedade civil, porém isto por si só garante a representatividade dos três setores? Eles conseguem de fato representar os segmentos que representam?
    1. REFLEXÕES SOBRE OS CAMINHOS PARA A EFETIVA IMPLEMENTAÇÃO DA GESTÃO DAS ÁGUAS NO BRASIL. 
Depois de 24 anos da Lei 9433/97, ao analisar as ameaças e desafios para a gestão das águas no Brasil, este artigo apresenta que os seguintes elementos são centrais para a implementação efetiva da gestão: a) refletir sobre um novo modelo de desenvolvimento; b) tratar e resolver sobre a Governança do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH), envolvendo a questão da participação Social e a ampliação da democratização da gestão; c)  a visão sistêmica da gestão das águas; e d) a água precisa se tornar uma agenda política de “Estado” e não somente de governo, sendo que é fundamental que ocorra um diálogo e interação entre estas questões.
A reflexão sobre um novo modelo de desenvolvimento não será resolvida no âmbito da gestão dos recursos hídricos, nem é tarefa desta, porém é muito importante que os atores da gestão entendam que muitos dos impactos negativos que afetam a qualidade e a quantidade das águas têm relação direta com o modelo de desenvolvimento atual; não é mais possível pensar em desenvolvimento apenas do ponto de vista do crescimento econômico, é preciso ter um desenvolvimento pleno no qual a água, o ambiente, a natureza, o social sejam o centro deste novo modelo de desenvolvimento.
No caso da água é preocupante a passagem de toda a política da água no Brasil para um Ministério de Desenvolvimento Regional. Sem dúvida que a água é central para o desenvolvimento, mas dependendo do tipo de desenvolvimento ele continuará ocasionando impactos sobre as águas, ameaçando a quantidade e a qualidade das águas e inclusive aumentando os riscos para os negócios, conforme os relatórios do Fórum Econômico Mundial.
O SINGREH é um sistema complexo e ousado, assentado na necessidade de intensa articulação e ação coordenada entre as diferentes esferas, atores e políticas para sua efetiva implementação indicando assim que a governança é um elemento importante deste Sistema.
As figuras 3 e 4 mostram o organograma de funcionamento do SINGREH, sendo que a figura 3 era quando o SINGREH até 2018, estava assentado no Ministério do Meio Ambiente, e depois, em 2019, o SINGREH foi assentado no Ministério do Desenvolvimento Regional.

Figura 3: Organograma do SINGREH até 2018 
Figura 4: Organograma do SINGREH a partir de 2019
Fonte: Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico


    Em que pese a crítica feita acima por esta mudança, a governança continua sendo um elemento central para a gestão das águas e neste caso amplia-se o desafio em relação a integração da gestão das águas com a gestão ambiental, já que antes os Sistemas de Gestão Ambiental e o Sistema de Gestão de Recursos Hídricos estavam no mesmo Ministério. O tema da governança envolve também a capacidade do poder público de ter estrutura funcional para dar conta das demandas da gestão de recursos hídricos. Elaboram-se grandes obras nos estados e em alguns municípios, porém não se leva em consideração se o Estado (poder público federal, estadual ou municipal) tem capacidade instalada na área dos recursos hídricos e ambiental para implementar medidas que possam dirimir ou diminuir os impactos que são causados pelas obras realizadas em outro Ministério ou Secretaria.
    A governança, conforme já dito, exige integração entre órgãos do Estado, integração de temas e articulação de atores. E ao tratar da articulação de atores, é fundamental que se realize um balanço da participação social na gestão dos recursos hídricos no Brasil. É fundamental verificar se atores estratégicos já estão fazendo parte da gestão, pois a participação social é um componente importante para ampliar a democracia da gestão.
É importante reconhecer que existe um debate sobre a questão da participação social, inclusive da desvalorização à participação, porém, sabe-se que a participação social tem muitos benefícios e o debate é mais sobre quais são as melhores metodologias e ferramentas para facilitá-la.
Estudiosos como Fiorino (1990), Laird (1993), Renn et al. (1995), ou Beierle e Cayford (2002), identificaram vários benefícios da participação, que vão desde o aumento da legitimidade de decisões ao desenvolvimento da democracia participativa, além da democracia representativa. Alguns destes e outros benefícios ocorrem como um produto da aprendizagem. Durante a interação, os participantes aprendem sobre os assuntos discutidos e os pontos de vista de outras pessoas. Eles também são capazes de descobrir novos pontos em comum e aprimorar suas habilidades de interaçãosocial.
    Como resultado dessa aprendizagem, os seguintes benefícios são atribuídos à participação: a) Decisões de melhor qualidade: quando o conhecimento de diferentes atores, incluindo especialistas, é reunido durante o discurso, isso pode, potencialmente, levar a decisões com mais informações; b) Melhor aceitação das decisões: envolvendo as pessoas que serão afetadas pela decisão, um acordo mais amplo pode ser negociado, o que, potencialmente, aumenta o apoio à implementação e c) Desenvolvimento de capital social: através da interação intensa em um processo de participação, os participantes podem construir novas redes e trabalhar para resolver conflitos, tendo assim a oportunidade de aumentar o capital social, que, por sua vez, pode permitir-lhes resolver mais facilmente problemas e novos conflitos no futuro.
Pedro Jacobi (2007) ainda cita que “o fortalecimento dos espaços deliberativos tem sido peça fundamental para a consolidação de uma gestão democrática, integrada e compartilhada. Atualmente, o maior desafio é garantir que esses espaços sejam, efetivamente, públicos, tanto no seu formato quanto nos resultados”.
Mas o tema da participação social não deve ser tratado de forma romântica, conforme afirma Pedro Jacobi, “o maior desafio dos espaços deliberativos é garantir que sejam, efetivamente, públicos, tanto no seu formato quanto nos resultados. A dimensão do conflito lhes é inerente, como é a própria democracia. Portanto, estes espaços de formulação de políticas onde a sociedade civil participa, marcados pelas contradições e tensões, representam um avanço, na medida em que publicizam o conflito e oferecem procedimentos de discussão, negociação e voto de forma legítima”.
No caso em questão, é preciso que os atores sejam capazes de apresentar e tratar dos conflitos que existem nas diversas bacias hidrográficas. Se os conflitos atuais não forem tratados, os atores não irão compreender sobre a negociação de conflitos, que será cada vez mais necessária, considerando que as mudanças climáticas poderão alterar completamente o ciclo da água em diversas bacias hidrográficas do Brasil.
Outras duas questões são muito importantes, como garantir que a gestão incorpore uma visão sistêmica em relação à implementação da gestão das águas. Ou seja, deve se tornar central, por exemplo, que os atores das águas devam se preocupar com o desmatamento da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal; e o tema do manejo e uso do solo na área urbana e rural: o tema do desmatamento não pode mais passar sem um posicionamento destes atores.
A segurança hídrica só será garantida com uma visão e atuação sistêmica para implementar ações que tenham esse princípio. Construir metas, realizar o monitoramento de forma transparente é também essencial para a gestão das águas.
Por último, a água precisa se tornar uma agenda de “Estado”: é fundamental garantir orçamento para o funcionamento da política das águas, assim como é a governança do Sistema da Saúde e da Educação.  Por vezes, quando acontece uma crise hídrica, escolas e hospitais são prejudicados no seu pleno funcionamento. É importante que a política pública da água não sofra solução de descontinuidade.
“O rio é a memória da terra”. A frase em destaque foi lida em uma exposição sobre as águas em Foz do Iguaçu, no ano de 2014, e remete à importância do estudo da governança, pois sendo memória da terra, a maneira em que são conduzidas as políticas públicas no território reflete nos cursos d’água. Dessa forma, reflete a presença ou não da capacidade institucional instalada, da integração ou não de políticas públicas, especialmente no caso de políticas para a gestão das águas, pois esta necessita de interface e integração com várias políticas públicas.


*Angelo José Rodrigues Lima - Doutor em Geografia em Análise Ambiental e Dinâmica Territorial (UNICAMP/2018), Mestre em Ciências de Planejamento Energético, área de concentração em Planejamento Ambiental (COPPE/UFRJ/2000); Especialista em Instrumentos Jurídicos, Econômicos e Institucionais para o Gerenciamento de Recursos Hídricos (UFPB/2000) e Biólogo (UFRRJ/1988). Atualmente ocupa o cargo de Secretário Executivo do Observatório da Governança das Águas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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