domingo, 13 de março de 2022

Modos, meios e formas de produção agrícola

por: Mario Lucio Machado Melo Junior,

engenheiro agrônomo


A agricultura humana evoluiu muito desde os primórdios do surgimento de nossa espécie, e hoje, contraditoriamente, ainda convivemos com essas práticas ancestrais entrelaçadas com outras supermodernas e tecnificadas. Para exemplificar, vamos fazer uma viagem ao tempo das cavernas. Os grupos humanos, para se alimentarem, praticavam a caça e o extrativismo há pelo menos 195 mil anos. Em pleno Século XXI encontramos diversos grupos humanos ainda neste estágio de modo produtivo, inclusive aqui no Brasil. Esta forma não utiliza nenhum insumo externo para aumentar quantitativamente a produção, sem produzir excedentes expressivos, de forma geral, ecologicamente em equilíbrio, convivendo, muitas vezes de forma não pacífica, com outros meios e formas de produção que surgiram durante o passar dos anos e não se tornaram hegemônicas, tais como: em pequenas propriedades familiares; em grandes propriedades com trabalho escravo (ou análogo); em grandes propriedades com trabalho assalariado; em pequenas e grandes propriedades com uso de mecanização de diversos graus/ formas de tração, dependências tecnológicas de insumos e energia externos às propriedades.

As contradições e conflitos de interesse são evidentes, não ocorrendo um convívio pacífico entre os rurícolas, como podemos constatar pelo enorme número de mortes de trabalhadores, líderes sindicais, dos povos indígenas ou de militantes dos movimentos sem-terra e/ou conservacionistas (como Chico Mendes). Nestes casos, sempre ocorre o predomínio dos grupos política e economicamente dominantes com submissão por coerção dos interesses dos mais frágeis por pura omissão das autoridades públicas, que deveriam cumprir a Constituição e as leis complementares e regulatórias.

A partir da década de 1970, surgiu um forte movimento de resistência contra a guerra do Vietnam, onde o exército americano usava desfolhantes químicos para bombardear as rotas de abastecimento das tropas norte vietnamitas, similares aos herbicidas já usados nas lavouras de seu país. Em ambos os casos foram constatados os efeitos colaterais de doenças neurológicas e cancerígenas nos soldados que retornaram do Vietnam e nos trabalhadores rurais dos cinturões de produção de milho, soja e algodão americanos.

Simultaneamente, no Brasil em 1971, o engenheiro agrônomo José Lutzenberger largava sua carreira como funcionário da indústria agroquímica alemã Basf, tornando-se ecologista no Rio Grande do Sul. Na década de 1980, ele foi ministro do Meio Ambiente no Governo Collor por indicação dos crescentes e populares movimentos ambientalistas. As críticas dele, bem como de outros — por exemplo da professora engenheira agrônoma Anna Maria Primavesi e da pesquisadora engenheira agrônoma Johanna Döbereiner — aos agrotóxicos e ao modelo agroquímico de agricultura dita “moderna” ou “revolução verde” tinham fundamentação científica e comprovação prática real, influenciando uma legião de estudantes de Agronomia, e hoje de uma série de outras profissões, seguidores das ideias agroambientais de diversas correntes filosóficas, por exemplo a agricultura biodinâmica, fundamentada nas teorias antroposóficas do filósofo austro-húngaro Rudolf Steiner. Tudo isso gerou, posteriormente, um arcabouço legal de controle do uso abusivo e indiscriminado de agrotóxicos e todo um trabalho de produção e ecoconsumo dos “orgânicos” no Brasil (paralelamente com experiências semelhantes nos demais países do mundo que não convem aqui citar).

Certamente esse movimento cresceu entre os produtores e consumidores e não ficou sem resposta raivosa e forte reação das classes dominantes. Empresas e indústrias fabricantes dos agroquímicos que funcionam simultaneamente com sementes geneticamente modificadas e patenteadas, formaram um pacote tecnológico só, contendo: maquinário próprio; adubos químicos; sementes modificadas; agrotóxicos; equipamentos de irrigação; maquinário de colheita e, finalmente, silos de secagem e armazenamento primário. Estes setores, em geral, formados por conglomerados multinacionais, em combinação com o comércio, os bancos e empresas transportadoras terrestres, fluviais e ferroviários, saindo das regiões produtoras diretamente para os portos de exportação, não tardaram a reagir no Congresso e no Governo para desqualificar os modelos agroecológicos e destruir as leis, regulamentos e normas que disciplinavam a fabricação, o transporte, o armazenamento e o uso irresponsável, indiscriminado e abusivo desses produtos que tanto prejudicam a saúde dos trabalhadores, consumidores e do ambiente (água, solos e seres vivos que habitam). Hoje, em um governo rendido e estes setores, circulam toneladas de produtos químicos sem rótulo e bula de aplicação — prescritos por pessoas sem a devida qualificação ou ética comercial —, proibidos nos países de origem de sua fabricação e vendidos aqui sem nenhum controle institucional, até pela internet.

Enquanto isso, os produtores que já perceberam essa armadilha e ciranda sem fim e que, quando ocorre qualquer variação climática ou instabilidade “dos mercados internacionais”, pagam sozinhos toda a conta. Mesmo os pequenos produtores e os agricultores familiares que optaram pela produção agroecológica, por motivos de filosofia, ideologia, fé (Fundação Mokiti Okada) ou mesmo por percepção da perversa realidade destrutiva ambiental (modificações climáticas), esses já estão sendo sufocados pelo complexo e caro sistema de certificação, processamento, legalização, transporte e comercialização no qual o lucro líquido é completamente insuficiente para sua manutenção e retorno do capital investido inicialmente. Isso não é apenas um problema aqui no Brasil, mas, sim, mundial. Trataremos dessas questões no próximo artigo. 

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