sexta-feira, 18 de março de 2022

Porrajmos, o holocausto cigano esquecido

Por Marlucio Luna


Conhecido pela maioria das pessoas, o termo “Holocausto” sintetiza de forma inequívoca os efeitos da política de extermínio dos judeus implementada pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Mas quantos sabem o significado da palavra romani “Porrajmos”? Em tradução literal da língua falada pelos ciganos, ela quer dizer devorar, mas também passou a designar o processo de eliminação física da etnia pelas tropas de Hitler e de seus aliados — um holocausto pouco divulgado que assassinou meio milhão de ciganos dos grupos Rom, Sinti, Lalleri, Lovari, Kalderash e Manouches.

Enquanto a perseguição aos judeus virou fonte de inspiração para jornalistas, escritores e cineastas, o Porrajmos praticamente foi apagado da História. Mesmo sendo vítima do mesmo roteiro das atrocidades cometidas pelos nazistas — prisões arbitrárias, deportação para campos de extermínio e de concentração, trabalhos forçados, esterilização compulsória, tortura, fuzilamentos e execuções nas câmaras de gás —, o povo cigano precisou esperar 25 anos até que pudesse começar a contar os horrores sofridos durante a Segunda Guerra Mundial.



Histórico de perseguições — Cristalizou-se no imaginário popular a figura do cigano como alguém sempre envolvido em trapaças, roubos, violência e práticas de magia negra. Tal visão serviu de combustível para fomentar o preconceito na Europa desde a Idade Média. No século XII, o imperador alemão Karl IV decretou o extermínio de todos os homens ciganos em idade adulta. Já as mulheres e as crianças deveriam ter as orelhas cortadas, como forma de punição e de identificação de sua origem.

Na Espanha, durante o período da Inquisição, as ciganas eram alvos constantes de acusações de prática de bruxaria. A tradição milenar da quiromancia, a leitura das mãos, serviu como base para a abertura de diversos processos no Tribunal do Santo Ofício. Na visão dos seguidores de Torquemada, essa era uma prova inequívoca de “pacto com o demônio”. Também houve casos em que homens e mulheres ciganos receberam penas duríssimas pelo suposto uso da sensualidade para enfeitiçar os católicos.

No fim do século XIX, o governo alemão criou a Nachrinchtendienst in Bezug auf die Zigeuner (Central para Combate à Moléstia Cigana). A agência de informação tinha como objetivo registrar, controlar e manter sob severa vigilância os ciganos que viviam no país. A preocupação das autoridades se baseava no “comportamento altamente perigoso” desse grupo étnico. Uma das principais diretrizes da Central estabelecia a proibição de interação social entre ciganos e o resto da população.

A perseguição aos ciganos se intensificou na Alemanha com a chegada de Hitler ao poder, em janeiro de 1933. Vistos como “seres inferiores”, “antissociais”, “incompatíveis com a vida em sociedade” e “ameaça à pureza ariana”, os roma (plural de rom), os sintis, os kalderash, os lovaris, os lalleris e os manouches começaram a ser caçados pela polícia alemã e pelas SA, as milícias paramilitares do Partido Nazista. 

Em março de 1938, um relatório encaminhado ao comandante das SS nazistas e responsável pela criação e operação dos campos de concentração e de extermínio, Heinrich Himmler, sugeria “o início da solução definitiva do problema cigano a partir de um ponto de vista racial”. Cabe destacar que “solução definitiva” era um eufemismo tecnocrático usado como sinômimo de eliminação física, assassinato. Assim como os judeus, o povo cigano deveria desaparecer.

O início do terror — Em maio de 1940, as SS deportaram cerca de 2.500 ciganos roma e sintis residentes em Hamburgo e Bremen para campos de concentração na Polônia. A ação contou não apenas com o apoio dos membros do partido nazista, mas também de amplos setores da população alemã, reforçando a ideia de que o preconceito contra a etnia encontrava eco na sociedade.

Em meados de 1941, 5.007 roma, sintis e lalleris que viviam na Áustria foram deportados para o gueto em Lodz, na área central da Polônia, ocupando uma seção separada dos judeus. Nos primeiros meses, metade dos ciganos levados morreu de fome, frio e falta de medicamentos. No ano seguinte, os sobreviventes seguiram para o Campo de Extermínio de Chelmno, a 50 quilômetros de Lodz.

Antes da adoção das câmaras de gás como instrumento para extermínio, os ciganos eram assassinados a tiros pelas tropas alemãs e forças paramilitares simpatizantes do nazismo. Na Polônia, onde os ciganos ocupavam há séculos áreas rurais, a perseguição foi intensa nos vilarejos. Historiadores e investigadores soviéticos identificaram 180 locais de fuzilamento de homens, mulheres e crianças de origem cigana. Os corpos estavam em grandes valas comuns.

O fuzilamento de ciganos também se transformou em prática habitual nas regiões invadidas pelo exército alemão, principalmente na antiga Iugoslávia e nos territórios invadidos na União Soviética. A caçada muitas vezes contou com a colaboração da população local, em sua maioria católica — a mesma religião dos ciganos. Apenas os muçulmanos residentes nessas áreas demonstraram solidariedade e protegeram o grupo étnico perseguido, evitando que muitos tivessem como destino o fuzilamento ou os campos de concentração. 

Extermínio com método variável — O Porrajmos assumiu contornos distintos. Nas áreas anexadas ao Reich Alemão, a regra era simples. Homens e mulheres aptos seguiam para os campos de concentração e áreas de trabalhos forçados. Crianças, velhos e doentes tinham como destino as câmaras de gás nos campos de extermínio ou o fuzilamento. 

Já nos países com governos tutelados pelo regime nazista, as medidas adotadas excluíam o fuzilamento, limitando-se às ordens de deportação para os campos de concentração, o que não reduz a parcela a culpa desses governos. A Romênia, por exemplo, enviou sua população cigana para a Transnístria, uma região ocupada pelos nazistas entre a Ucrânia e a Moldávia. A administração alemã local determinou o fuzilamento apenas dos homens adultos, deixando que mulheres, idosos e crianças fossem abandonados e morressem de fome e frio. A justificativa para a tal diferença de tratamento era de ordem prática: não “desperdiçar” munição.

O governo colaboracionista de Vichy também teve sua participação no Porrajmos. Depois de uma longa e sistemática caçada, enviou para o campo de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, ciganos que viviam na França, bem como os roma que eram refugiados da Guerra Civil Espanhola.

A exceção ficou por conta da parte da Tchecoslováquia, que manteve sua autonomia tolerada por Hitler. Lá, os ciganos escaparam da aniquilação física, porém continuaram sendo alvo de preconceito e da eliminação sistemática de direitos civis. Contudo a “sorte” cigana se deu por conta de uma opção estratégica da burocracia. O governo tcheco priorizou a perseguição aos judeus, deixando os ciganos como alvo de uma segunda etapa de limpeza étnica.  

A partir de 1942, a maioria dos ciganos presos estava concentrada em Auschwitz-Birkenau, ainda que outros campos de trabalhos forçados e de extermínio mantivesse roma, sintis, kalderash, lovaris, lalleris e manouches presos. Enquanto os judeus traziam em seus uniformes listrados a estrela amarela, os ciganos eram identificados com um triângulo marrom costurado nas roupas. Os administradores dos campos procuraram mantê-los apartados dos judeus. A justificativa: o “espírito rebelde” do cigano podia “contaminar e influenciar” algum tipo de resistência ou rebelião.

O auge do terror ocorreu em 2 de agosto de 1944. Naquele dia, 4.300 ciganos inaptos ao trabalho (crianças, idosos e doentes) foram assassinados nas câmaras de gás de Auschwitz-Birkenau. Dos 23 mil ciganos enviados para Auschwitz-Birkenau, pelo menos 19 mil morreram de fome, exaustão, doenças infecciosas ou assassinados nas câmaras de gás. Não há um número oficial, mas existem registros de envio de ciganos para os campos de Chelmno, Belzec, Sobibor, Treblinka, Bergen-Belsen, Sachsenhausen, Buchenwald, Dachau, Maulthausen e Ravensbrück.

Vozes das vítimas — Mesmo sem estatísticas oficias confiáveis, os pesquisadores estimam que entre 220 mil e meio milhão de ciganos tenham sido assassinados na Europa durante o Porrajmos. Os números têm como base relatos de sobreviventes dos campos de extermínio e de habitantes das regiões onde ocorreram as perseguições, análise de documentos encontrados nos arquivos nazistas e estudos acadêmicos. 

O esforço para manter viva a história do Porrajmos contrasta com o esquecimento a que foi relegado o holocausto cigano logo após o fim da Segunda Guerra. Os argumentos usados para relativizar os crimes cometidos contra esse grupo étnico se baseavam nos já conhecidos estereótipos: a vida à margem da sociedade, o comportamento antissocial, a prática de pequenos delitos e a quiromancia. Dessa forma, a perseguição não teria viés racial, mas social.

A relativização do Porrajmos durou 25 anos. Apenas em abril de 1971, com a realização do Primeiro Congresso Mundial Romani, em Londres, teve início o processo de resgate histórico dos crimes cometidos contra a população cigana na Segunda Guerra Mundial. Na ocasião, foi apresentada a proposta de criação de uma comissão para investigar as atrocidades perpetradas contra os grupos Rom, Sinti, Kalderash, Lovari, Lalleri e Manouches.

O congresso estabeleceu como linhas de ação a luta contra o preconceito, o combate ao anticiganismo e o reconhecimento dos ciganos como nação. O movimento, iniciado em 1971, hoje reúne ONGs, grupos de mobilização e organismos governamentais que atuam na promoção de políticas públicas contra a exclusão social e econômica dos ciganos. 

O nacionalismo cigano é uma construção abstrata, baseada na história de um povo originário da Índia, com cultura e idioma próprios, além do trabalho de divulgação permanente do Porrajmos. A ideia busca estabelecer um sentimento de pertencimento comum entre os distintos grupos ciganos.

Em 1979, o parlamento da antiga Alemanha Ocidental reconheceu o direito dos ciganos à indenização pelos efeitos do Porrajmos. No entanto poucos usufruíram da medida, pois o número de sobreviventes era reduzido. Já o Parlamento Europeu estabeleceu o 2 de agosto, data do massacre em Auschwitz-Birkenau, como o Dia Memorial Europeu do Holocausto para os Sinti e os Roma.

Na tentativa de registrar as atrocidades cometidas pelos nazistas contra os ciganos, foi criado o portal Voices of the Victims (www.romarchives.eu), mantido pelo The Documentation and Cultural Centre of German Sinti and Roma. Ele reúne depoimentos de sobreviventes, cartas enviadas — na maioria das vezes de forma clandestina — por ciganos perseguidos, artigos de pesquisadores e documentos oficiais relativos ao Porrajmos. Além disso, o portal busca colocar em discussão questões da cultura cigana, divulgar a produção artística e estimular a articulação entre os grupos que compõem a etnia.

O trabalho desenvolvido pelos criadores do portal Voices of the Victims ganha maior relevância justamente no momento em que os grupos de extrema direita se expandem na Europa. Os ciganos se tornaram novamente alvo de perseguições e ataques em vários países. A sombra de um novo Porrajmos paira e assusta um dos mais antigos grupos étnicos.

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