Os dados obtidos a partir da Comissão Nacional da Verdade (CNV) demonstram que pouco mais de 6 mil militares foram perseguidos, o que os torna a categoria social mais perseguida pelo regime. Bruno Fonseca, em levantamento realizado pela Agência Pública demonstra como isso reflete nos dados sobre a anistia: são 10.523 civis e 3.614 militares anistiados, uma proporção de três civis para cada militar.1
Paulo Ribeiro da Cunha, professor da UNESP e consultor da CNV, afirmou em artigo que em relação aos militares perseguidos, “esses oficiais e praças foram atores importantes na história do Brasil, cujo arco político e ideológico envolvia nacionalistas, progressistas ou de esquerda, incluindo membros das Polícias Militares e bombeiros”.2
Contradições
Um ponto importante nesse apagão da memória sobre a perseguição aos militares, é que o senso comum, acriticamente, faz parecer que os militares das forças armadas são um grupo muito homogêneo, consenso que cai por terra quando examinamos trabalhos acadêmicos que apontam as fissuras e contradições que existiram - e existem - entre os militares.
Depois do Golpe de 1964, as perseguições e violações de direitos humanos de militares ocorreram em números expressivos, pelos mais variados motivos. Os relatórios finais das Comissões da Verdade, municipais, estaduais e nacional, são fontes privilegiadas para acessar as informações sobre essas violações de direitos.
Nesse texto informativo apresentamos alguns desses casos, observando a diversidade de motivações da Ditadura para perseguir e violar direitos humanos de militares. Nem sempre a causa da perseguição era decorrente de atuação política, como no extinto 1º Batalhão de Infantaria Blindada - BIB, sediado em Barra Mansa – RJ.
Tortura e mortes
Com base no Relatório Final da Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda – RJ.3 No fim de dezembro de 1971 e início de janeiro de 1972, ocorreu um Inquérito Policial Militar para apurar venda e uso de maconha por soldados do BIB. Durante aproximadamente vinte dias, foram presos e submetidos a interrogatórios sob tortura, 15 soldados da unidade. Todos foram submetidos à espancamento, choques elétricos, tiveram partes do corpo esmagadas em prensas ou tornos, seções de afogamento. Os soldados Vanderlei, Monção, Geomar e Vicente faleceram em consequência de brutal tortura.
Depois do assassinato perpetrado por companheiros de farda, seus algozes, os torturadores, capitão Niebus, tenente Miranda, sargento Etel, sargento Rubens, e cabo Cruz, ocultaram os cadáveres. Vanderlei teve a cabeça decapitada e as mãos cortadas para dificultar a identificação e foi colocado num buraco coberto de mato às margens da represa de São João Marcos.
Monção foi atirado numa vala às margens da rodovia que liga Angra dos Reis à Barra Mansa, depois teve o corpo resgatado e transferido para um bambuzal na estrada que liga Rio Claro à Bananal, encharcado com gasolina e queimado. Geomar teve o corpo enviado à necrópsia na Santa Casa, onde a família encontrou-o com muitos sinais de tortura, espancamento, esmagamento. Vicente morreu após ser internado no HCE-RJ.
Ocorreram também, minoritariamente, casos em que militares aderiram à luta armada contra a Ditadura. É o caso de Carlos Lamarca, que desertou e se tornou um dos líderes da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, grupo de orientação ideológica marxista. Lamarca foi morto pela Ditadura em 1971. Destino semelhante teve o sargento reformado e veterano da FEB – Força Expedicionária Brasileira, José Mendes de Sá Roriz. Era comunista, na clandestinidade, e se entregou depois que teve a família ameaçada pelos agentes repressores. Em 1973 foi preso no DOI CODI, torturado e assassinado.4
Democrata
Outros veteranos da Segunda Guerra Mundial também foram alvo de perseguição, mas o caso do Brigadeiro Rui Moreira Lima (fotos) é icônico. Herói de guerra, fez 94 missões de combate contra os nazifascistas na Itália. Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade5, em 2012, o militar explicou de onde vem sua posição de militar legalista. Uma carta recebida do pai, que era Juiz, e lhe escreveu quando soube da decisão do filho de se tornar militar:
“Rui, és cadete, amanhã, depois, mais tarde… general. Agora deves dobrar os teus esforços, estudar muito… Obediência aos teus superiores, lealdade aos teus companheiros, dignidade no desempenho do que te for confiado, atitudes justas e nunca arbitrárias. Sê um patriota verdadeiro e não te esqueças de que a força somente deve ser empregada ao serviço do Direito. O povo desarmado merece o respeito das Forças Armadas. Estas não devem esquecer que é este povo que deve inspirá-las nos momentos graves e decisivos. Nos momentos de loucura coletiva deves ser prudente, não atentando contra a vida dos teus concidadãos. O soldado não pode ser covarde e nem fanfarrão. A honra é para ele um imperativo e deve ser bem compreendida. O soldado não conspira contra as instituições pelas quais jurou fidelidade. O soldado não pode ser um delator a não ser que isso implique em salvação da pátria. Espionar os companheiros visando interesse próprio é infâmia, e o soldado deve ser digno. Aí estão meus pontos de vista, Deus te abençoe (…)”
Seguiu toda a carreira guiado pelos conselhos do pai, tornou-se um militar digno de ser chamado de democrata, que compreende o respeito às instituições como um mandamento militar. Durante o Golpe, era coronel e comandava a base aérea de Santa Cruz, que foi cercada por tropas do Exército. Passou o comando da base para um militar golpista e, no dia da troca de comando escreveu esses conselhos do pai na Ordem do Dia, divulgada para toda a tropa que comandava.
Condenou o Golpe, foi preso duas vezes, em uma foi sequestrado por sargentos do DOI-CODI. Sua família também foi perseguida, teve um dos filhos preso, e foi obrigado a ir para a reserva. Descreveu o torturador, Coronel Ustra, como “um torturador confesso(...) um sujeito muito mal, um covarde. Eu considero a pessoa que tortura os outros depois de preso, um desprezível, eu nem quero olhar pra cara de um desses.”
Como sociedade, precisamos desenvolver um olhar menos estereotipado sobre os militares e as forças armadas. Enxergar nas suas tradições, memórias, ações, reflexos de diversidade e disputas internas.
1 https://apublica.org/2019/03/os-militares-que-a-ditadura-brasileira-tentou-apagar/
2 ACERVO, RIO DE JANEIRO, V. 27, Nº 1, P. 137-155, JAN./JUN. 2014 – P. 138
3 Disponível em http://cemesf.vr.uff.br/textos/relatorio-final-da-comissao-municipal-da-verdade-dom-waldyr-calheiros-cmv-vr/
4 http://memoriasdaditadura.org.br/memorial/jose-mendes-de-sa-roriz/
5 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FuY1K7_hIZA&t=795s
Caríssimo Frederico.
ResponderEliminarSeu texto me toca muito.
Também acho fundamental o reconhecimento desses mais de 7.000 militares perseguidos por não concordarem com a ditadura.
Uma parte, por serem de esquerda. Outra, por nem serem de esquerda, mas defenderem o respeito à Constituição.
Tanto acho importante que tomei a iniciativa de imprimir 2.000 marcadores de página falando sobre isso...
...e apresentando em específico a história de Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, o "Capitão Sérgio Macaco", que se negou a dar prosseguimento aos planos de ataques terroristas que incluíam a explosão do Gasômetro no Rio de Janeiro, o que causaria centenas de mortes. A ideia era culpar a esquerda e, com isso, endurecer ainda mais o regime. Óbvio que sua carreira foi absolutamente comprometida.