Nos últimos anos, vimos assistindo ao avanço de uma onda revisionista e negacionista no Brasil. Ela teve início com a negação, por parte dos setores militares e conservadores, da existência do terrorismo de Estado (torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados) e de práticas antidemocráticas durante o regime (fechamento do Congresso, suspensão do direito de habeas corpus etc). Trata-se da negação da verdade, do testemunho concreto das vítimas do regime que historicamente não encontraram um espaço público de escuta.
Entre os setores conservadores, há ainda aqueles que, mesmo admitindo a existência da ditadura, buscam abrandar suas consequências, graves, nefastas, falando em termos de “ditabranda” – 434 mortos e desaparecidos políticos não seriam um número significativo se comparado com as ditaduras dos países vizinhos, Argentina e Chile, que chegaram a 20 e 30 mil mortos – ou reduzindo a virulência do regime militar aos anos de chumbo (1968-1974).
De outra parte, temos os setores progressistas que compõem uma polifonia de vozes que falam desde lugares e ações distintos e se encontram no grande campo dos defensores dos direitos humanos. O Grupo Tortura Nunca Mais e os movimentos que integram o campo memória, verdade e justiça vêm pleiteando há pelo menos 40 anos uma justiça de transição capaz de garantir a efetivação da justiça, através da garantia do direito à memória e à verdade, bem como do direito à reparação, não apenas material, mas que passe também pela instituição de práticas pedagógicas, participativas e, se for o caso, reconciliadoras.
Comissão da Verdade
A criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e das comissões da verdade em nível estadual e municipal foram, sem dúvida, um marco importante deste processo transicional, uma iniciativa de passar o passado a limpo. As CV se dedicaram às investigações dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro, sua estrutura de funcionamento e as estratégias de luta e resistência da oposição política, bem como as violações aos direitos humanos dirigidas de forma difusa contra o conjunto da sociedade, através da implementação de uma política de arrocho salarial, cujo resultado foi o aumento da desigualdade social.
Além das revelações contidas nos relatórios produzidos pelas comissões da verdade, foram feitas diversas recomendações de políticas públicas a serem implementadas pelo Estado. As recomendações abarcam um conjunto amplo de mudanças: medidas institucionais, como a revisão da Lei de Anistia e a proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964; reformas constitucionais e legais, como a revogação da Lei de Segurança Nacional e a desmilitarização das polícias militares estaduais; e medidas de seguimento das ações e recomendações da CNV, como continuidade das investigações para identificação do paradeiro dos desaparecidos políticos e preservação da memória das graves violações de direitos humanos.
No que se refere às iniciativas na área da memória e patrimônio, as recomendações vão desde a mudança do nome de ruas e escolas que homenageiem torturadores até a construção de roteiros pedagógicos e museus dedicados à história e memória da ditadura. O contato da sociedade com os espaços físicos, o conhecimento e a consciência sobre os usos dos espaços no passado, abrem janelas de consciência, contribuindo para a constituição de sujeitos críticos e pleno exercício da cidadania.
Na região sul fluminense, a Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda (CMV-VR) (2013-2015) proporcionou pela primeira vez aos habitantes locais um conhecimento pormenorizado sobre o passado ditatorial na região, atravessado pelo sofrimento e pelo esquecimento. Em seu relatório final, podemos conhecer 14 casos de violações aos direitos humanos ocorridos em Volta Redonda e Barra Mansa, cujos impactos foram devastadores para a classe trabalhadora e suas famílias, grupos progressistas da Igreja católica, grupos da esquerda revolucionária, jornalistas e coletivos culturais, entre outros.
Tempo de conhecer
O espaço hoje chamado de Parque da Cidade, administrado pela Prefeitura de Barra Mansa, já foi sede do antigo 1° Batalhão de Infantaria Blindada do Exército, entre 1950 e 1972. No local, funcionam atualmente algumas unidades administrativas da municipalidade, o Tiro de Guerra, a Secretaria de Ordem Pública de Barra Mansa, além de alguns projetos culturais, como a Orquestra Sinfônica de Barra Mansa e o grupo teatral Sala Preta. Desde sua criação, nos anos 1990, o espaço já foi palco de shows, feiras agropecuárias, feiras de negócios e outras atividades de entretenimento e lazer. Os eventos e atividades lá realizados atraem antigas e novas gerações que pouco conhecimento têm sobre os usos do espaço no passado recente, contribuindo para o esquecimento induzido.
O 1° BIB foi criado em 1950 com a função de “assegurar a ordem pública” na região. Localizado estrategicamente, o batalhão ficava a cerca de 10km da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), inaugurada pouco antes, em 1946, como parte do projeto nacional desenvolvimentista do governo Vargas. Desde cedo, a empresa siderúrgica e o batalhão caminhariam juntas no controle e repressão à classe trabalhadora.
No dia 1° de abril de 1964, o 1° BIB teve como alvo principal os trabalhadores da CSN, sobretudo os líderes sindicais que organizaram uma resistência grevista na usina, no sindicato e na rádio siderúrgica, em Volta Redonda. Naquele mesmo dia, as lideranças sindicais foram presas, no 1° BIB ou na Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende, e nos dois meses subsequentes mais de 200 trabalhadores foram demitidos ou aposentados compulsoriamente, pelo Ato Institucional n° 1, e 185 funcionários foram punidos pela empresa. Desses, 77 permaneceram presos no BIB ou na AMAN, até 6 meses depois. O caráter de classe do Golpe de 1964 ficou claro desde o primeiro dia.
Além das prisões arbitrárias, as forças repressivas invadiram a sede do Sindicato dos Metalúrgicos, em Volta Redonda, confiscaram documentos históricos, destruíram mobiliário, cassaram os mandatos da diretoria democraticamente eleita e determinaram um interventor em seu lugar, impactando assim a capacidade de reivindicação de seus direitos por parte dos trabalhadores. Ao lado da perseguição aos sindicalistas, foram instaurados Inquérito Policiais Militares (IPM) contra o chamado “Grupo dos Onze” e contra o Partido Comunista que atuava nas cidades de Volta Redonda, Barra Mansa, Barra do Piraí e Piraí.
A partir de 1966, com a chegada do bispo Dom Waldyr Calheiros à região, os católicos progressistas se tornaram o novo alvo das perseguições políticas. A Igreja de Dom Waldyr assumiu um trabalho pastoral junto às comunidades mais pobres e foi uma força de oposição política ao regime de extrema importância. Padres e militantes católicos foram, tal qual os sindicalistas, intimados, obrigados a prestarem depoimentos, presos e torturados. Após o AI-5, a tortura foi institucionalizada no batalhão, atingindo trabalhadores, militantes católicos, militantes de organizações revolucionárias e, até mesmo, militares de baixa patente.
O 1° BIB foi um centro militar de perseguição e tortura para opositores do regime na região sul fluminense. O encerramento de suas atividades repressivas, em 1972, foi um acontecimento inédito na história da ditadura. Após a comprovação de que militares haviam torturado 15 soldados do próprio batalhão, o que resultou na morte de quatro deles, entre 1971 e 1972, os militares envolvidos com as torturas foram condenados à prisão, por determinação da própria Justiça Militar.
Em 1973, no auge da repressão política durante o governo Médici, a Justiça Militar condenou os militares envolvidos e encerrou as atividades do 1° BIB. Trata-se do único caso no Brasil em que militares foram responsabilizados e punidos por suas práticas violadoras durante (e após) o regime militar. Após 1979, com a Lei de Anistia, nenhum outro torturador poderia mais ser condenado por seus atos criminosos. Resta, ainda, como entulho autoritário, um entrave para a efetivação da justiça.
Recentemente, nova fagulha de esperança se acendeu entre os militantes de direitos humanos com a decisão inédita da justiça contra o sargento reformado do Exército Antonio Waneir Pinheiro de Lima, acusado pelo crime de sequestro, cárcere privado e estupro da jovem militante Inês Etienne, em 1971, na Casa da Morte, centro clandestino de prisão e tortura localizada em Petrópolis (RJ). Este ano, por ocasião das efemérides da semana do golpe de 1964, os movimentos por memória, verdade e justiça lançaram a campanha #ReinterpretaJáSTF, como forma de pressão política e midiativismo.
São muitas as idas e vindas. No sul fluminense, após a condenação dos militares envolvidos no assassinato dos quatro soldados, o 1° BIB foi desativado, com a intenção deliberada de apagamento das memórias traumáticas, e no mesmo espaço foi instalado o 22° Batalhão de Infantaria Motorizada do Exército, que passou a comandar a repressão política na região. A prática de torturas físicas não foi mais registrada, porém deu continuidade ao papel repressivo do antigo 1° BIB, especialmente contra a classe trabalhadora.
Mesmo com o fim formal da ditadura em 1985 e a promulgação da nova Constituição em 1988, os militares do 22° BIMtz responderam com forte violência ao movimento grevista dos anos 1980, em especial na histórica greve de novembro de 1988, o que culminou, uma vez mais, no assassinato de três operários no interior da usina siderúrgica, William, Valmir e Barroso e, posteriormente, no atentado terrorista ao monumento 9 de novembro, na Praça Juarez Antunes, em Volta Redonda, em homenagem aos operários assassinados.
Tempo de planejar
Como fruto deste processo e de maneira a garantir a continuidade das investigações da CMV-VR e implementação de suas recomendações, o Centro de Memória do Sul Fluminense Genival Luiz da Silva, ligado à Universidade Federal Fluminense (CEMESF/UFF) estabeleceu como missão a preservação das memórias e histórias das lutas políticas na região. A partir de 2015, teve início o processo de transformação do antigo 1° BIB em centro de memória e defesa dos direitos humanos. Tais iniciativas se inscrevem no rol das políticas de memória e reparação, no quadro da justiça de transição e sua efetivação na região sul fluminense.
Este processo tem como amparo legal o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) n° 3/2016, firmado entre o Ministério Público Federal e a Prefeitura Municipal de Barra Mansa. O TAC prevê “assegurar reparações simbólicas em favor da preservação da memória e do patrimônio histórico nacional na área correspondente ao quartel onde funcionou o 1° Batalhão de Infantaria Blindada (1° BIB) e o parque ao redor”.
Para que as determinações do TAC pudessem ser cumpridas, foi formado um grupo de trabalho, coordenado pelo CEMESF/UFF, que identificou as áreas de interesse histórico, especialmente relacionadas aos eventos ocorridos durante a ditadura civil-militar, e dividiu o espaço em três grandes conjuntos de edificações: Tulhas, Intendência e Praça da Memória.
Como forma de sensibilizar e informar a população local sobre as graves violações praticadas na região, são desenvolvidos no espaço dois projetos de extensão, coordenados pelo CEMESF/UFF: Cine Arquivo e Visitas compartilhadas ao antigo BIB. Os projetos são voltados para atender a rede básica de ensino dos municípios de Volta Redonda e Barra Mansa e estão comprometidos em garantir o direito à verdade e à memória na região sul fluminense.
Em 2020, finalmente nasceu o projeto para o futuro Museu do Trabalho e dos Direitos Humanos, situado na Praça da Memória, no atual Parque da Cidade de Barra Mansa. Através da colaboração de duas consultorias, encarregadas de elaborar o pré-projeto arquitetônico e o Plano Museológico para o espaço do antigo batalhão, abriu-se um canal de escuta e de estruturação das propostas com a comunidade local.
De maneira a garantir uma construção mais participativa, o CEMESF/UFF promoveu encontros com grupos focais – ex-presos políticos, educadores, profissionais da cultura e ocupantes do Parque da Cidade, secretarias municipais de Barra Mansa e Volta Redonda – contribuindo para a ativação da rede de atingidos pela ditadura e de “empreendedores da memória” e provocando a imaginação comprometida com os direitos humanos, a cidadania e a democracia em torno das potencialidades para a transformação desse antigo centro de terror, hoje esvaziado de sentido, em lugar de memória e de re(existências).
Tempo de imaginar...
Agora, é tempo de imaginar. Imaginar o inimaginável, cuja voz nos sussurra histórias passadas, de um tempo que esperamos nunca mais.
Lascas de tempo, de memória, essa coisa não escrita que ganha matéria, vida, forma, até escapulir em imaginação. Aqui. Agora. Imaginar um tempo de medo, do não dito, ainda inaudito porque faltam ouvidos. As vozes estão por aí, por toda parte, abaixo e acima das paredes, da terra, do rio. Se dissipam em som, essa força etérea que atravessa o tempo, vagam passageiras no ritmo cadenciado do trem de minério e sangue, nas asas dos quero-quero (que lembram liberdade), no leve soluço do Paraíba (que embala a dor).
Mas, essas vozes, o que contam? O que podem contar? O que queremos ouvir? O que podemos ouvir? É preciso coração para aprender. Também coragem.
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