De BBB ao programa da Ana Maria Braga; de lives com conteúdos acadêmicos aos feeds do Instagram, Facebook e Twitter, as insistentes, e equivocadamente chamadas, “pautas identitárias” estão em todo lugar causando muito reboliço.
Mas o que vem a ser isso que sacode tanto as redes sociais e anti-sociais? Pois bem, este é o pavio que desejo acender por aqui.
Falar sobre gênero, raça e classe é falar sobre aquilo que estrutura a sociedade em que vivemos - uma sociedade patriarcal, ou seja, que se organiza sob o domínio masculino cisheteronormativo1 e que é informada por raça e classe. Portanto, não se trata de discutir quem é machista, misógino, racista ou classista e quem não é para apontar o dedo, pois a verdade é que somos todas e todos, homens e mulheres, cis e trans, brancos e negros, pobres, ricos e classe média, constituídos, enquanto sujeitos, a partir destas opressões. Sem escapar ninguém! A diferença reside em ter consciência ou não disso e de adotar postura antirracista, anticlassista e antisexista. Mas não só isso.
“Homem universal”
O professor Silvio de Almeida (2018), em “O que é racismo estrutural?”, explica sobre o surgimento do “homem universal”, esta suposta representação da humanidade materializada em um homem cis, hétero, branco e europeu, resultado das relações de poder do período da expansão mercantilista e da descoberta do novo mundo, em meados do século XVI. É neste contexto que emerge a ideia de um “homem” moderno, se opondo à ideia de pertencimento a uma comunidade específica, até então vigente. É o período onde surgem reflexões sobre a unidade e a multiplicidade humana.
O colonialismo é o nome da experiência que visava levar as “maravilhas” do Estado liberal e do mercado, portanto, “da civilização”, aos povos “primitivos”. Levar os valores civilizatórios ao novo mundo era a “missão” dos iluminados europeus. Mas a experiência da colonização se mostrou absolutamente antiliberal; um processo de espoliação violento.
Ficou evidente que liberdade, igualdade e fraternidade, lemas da Revolução Francesa, que fundaram a ideia de Estado Moderno, não passavam de um discurso vazio que só servia a poucos privilegiados. Com a colonização nasceu também um processo de desumanização dos povos não europeus, retratados como bestiais, primitivos, degenerados, sem história. Destes processos nasceram as práticas discriminatórias e o genocídio que marcaram a história do nosso país.
Escravidão
Portanto, não há como falar em raça sem discutir gênero e classe, sobretudo no Brasil, vez que são opressões que nasceram do paradigma colonizador do sujeito universal: homem hétero, branco e europeu. Da mesma forma como não podemos discutir o país em que vivemos, e avançar em análises mais profundas, desconsiderando a escravidão como violência fundadora - escravidão que é parte do processo de expansão do capitalismo.
Simone de Beauvoir (1970), em “O segundo sexo”, vai questionar o que é “ser mulher” e, ao fazê-lo, questiona também o que é “ser homem”. A autora abriu um campo imenso para inúmeras teorias e ideias que vão surgir a partir daí. Antes dela, Soujorner Truth, em seu célebre discurso2, questionou: “não sou eu uma mulher?”, referindo-se à sua condição de mulher negra. Ao fazê-lo, denunciou que tudo aquilo pelo que protestavam as mulheres brancas de classe média não passava de privilégios de raça e classe e que, portanto, não poderiam falar e nome de todas as mulheres, vez que as mulheres negras não estavam incluídas em suas pautas.
Como se vê, não dá pra discutir gênero, raça e classe isoladamente, né? Nem tampouco descolados da realidade concreta em que vivemos – sob a ordem do capital. Pois é sobre isso que iremos dialogar aqui, neste espaço. Temos um longo caminho pela frente se quisermos compreender o Brasil e este estado de coisas bolsonarista que nos assola. E sem compreender a realidade em que vivemos não conseguiremos transformá-la.
Bora acender este pavio juntos e juntas?
Referência bibliográfica:
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. Coleção Feminismos Plurais. Coord. Djamila Ribeiro.
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, Col. Feminismos Plurais, 2018, p. 20.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro. 4. ed. 1970.
1 O termo cisheteronormativo ou cisheteropatriarcado remete ao “sistema político modelador da cultura e dominação masculina, especialmente contra as mulheres. É reforçado pela religião e família nuclear que impõem papéis de gênero desde a infância baseados em identidades binárias, informadas pelas noções de homem e mulher biológicos, sendo as pessoas cisgêneras aquelas não cabíveis, necessariamente, nas masculinidades e feminilidades duas hegemônicas. Consultar ‘Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos’, um guia técnico sobre pessoas transexuais, travestis e demais transgêneros formulado pela pesquisadora Jaqueline Gomes de Jesus”. (AKOTIRENE, 2019, p.118, item 3).
2 Sojourner Truth (1797-1883) foi uma ativista norte americana dos direitos das mulheres. Uma escrava alforriada, que ficou registrada na história com um discurso que proferiu na Convenção de Mulheres, em 1851, Ohio, nos EUA. No seu célere discurso disse: “Aquele homem ali diz que as mulheres precisam ser ajudadas a entrar em carruagens, e erguidas para passar sobre valas e ter os melhores lugares em todas as partes. Ninguém nunca me ajudou a entrar em carruagens, a passar por cima de poças de lama ou me deu qualquer bom lugar! Eu não sou mulher? Olhem pra mim! Olhem pro meu braço! Tenho arado e plantado, e juntado em celeiros, e nenhum homem poderia me liderar! Eu não sou mulher? Posso trabalhar tanto quanto e comer tanto quanto um homem - quando consigo o que comer - e agüentar o chicote também! Eu não sou mulher? Dei à luz treze filhos, e vi a grande maioria ser vendida para a escravidão, e quando eu chorei com minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus me ouviu! Eu não sou mulher? (...)”. Depois que conquistou sua liberdade, em 1827, Sojourner tornou-se uma conhecida oradora abolicionista. O discurso completo se encontra disponível na internet em diversos sites, entre eles no https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth onde pesquisei. Acesso em: 08 de março de 2021.
Já sou fã de Carol
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