sábado, 3 de abril de 2021

Uma noite que nunca termina: os sofrimentos dos povos indígenas durante a ditadura civil-militar (1964-1985)


 


Quando falamos no período histórico do golpe cívico-militar de 1964/1985 costumamos contabilizar as cassações dos direitos políticos dos parlamentares, as inumeráveis prisões arbitrárias, os fechamentos dos sindicatos, as perseguições aos trabalhadores e estudantes, as demissões de milhares de servidores civis e militares, graves violações de direitos humanos, a censura da imprensa, a vigilância interna dentro das repartições públicas e estatais através das Assessorias de Segurança Interna(ASI), os centros de tortura, os mortos e os desaparecidos políticos. E os povos indígenas? Como passaram por aquele período? Aqui mais uma vez prevalece o silenciamento social das inúmeras tragédias que se abateram sobre eles durante esse período.

Nem a Comissão Nacional da Verdade fez uma investigação aprofundada sobre os acontecimentos com os povos indígenas durante a ditadura. A inclusão dos povos indígenas na investigação, que ocorreu de 2012 a 2014, foi feita de forma secundária e até tardia. No último ano de funcionamento daquela Comissão é que ela acelerou e construiu um quadro das violações de direitos de forma muito incompleta.

O resultado mais impactante das pesquisas da CNV, registrado no seu volume III, foi o que detalhou os 434 mortos e desaparecidos políticos na pesquisa compreendida no período investigado - de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, mas ela não incluiu nessa listagem nenhum dos indígenas que foram mortos pela ditadura.

Quase 1 % dos indígenas assassinados; número real pode ser bem maior

Numa avaliação preliminar, a partir dos dados da própria Comissão, o número real de indígenas mortos como consequência das políticas de Estado e da política indigenista conduzida pelo SPI e sua sucessora Funai foi de 8.350 indígenas, em decorrência da ação direta dos agentes governamentais ou da sua omissão no período da investigação. Essa não é uma cifra definitiva, pois o número real foi muito maior, na medida que a apuração se deu sobre uma fração pequena dos povos indígenas do Brasil, a saber: em maior número 3.500 indígenas Cinta-Larga (RO), 2.650 Waimiri-Atroari (AM), 1.180 índios da etnia Tapayuna (MT), 354 Yanomami (AM/RR), 192 Xetá (PR), 176 Panará (MT), 118 Parakanã (PA), 85 Xavante de Marãiwatsédé (MT), 72 Araweté (PA) e mais de 14 Arara (PA).

O último Censo do IBGE, de 2010, apontava a existência de 305 povos indígenas, que somavam a 896.917 pessoas, deste total a apuração da CNV se deu somente com 10 povos, ou menos de 4% das etnias existentes no Brasil. Isso nos aponta uma terrível realidade: as maiores vítimas da ditadura e cujos nomes não foram nem levantados pela Comissão da Verdade foram os indígenas das diversas etnias espalhadas pelo país!! Além disso, proporcionalmente, foram mortos, só nos casos levantados, cerca de 0,9% da população indígena brasileira um número proporcionalmente gigantesco em relação as outras vítimas da ditadura. Deve-se continuar a apuração das atrocidades deste período nos outros povos indígenas, não cobertos pelo trabalho da CNV.

Entre os povos que sofreram genocídios, que quase os levaram à beira da extinção, estão os Waimiri-Atroari, do Amazonas, que foram visitados pela psicanalista Maria Rita Kehl, que esteve na Terra Indígena Waimiri-Atroari, em 2013, e ouviu sobre o massacre de 2650 indígenas daquela etnia. Eles foram afetados pela construção da BR-174 (Manaus-Boa Vista), que fazia parte do primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), que tinha como uma de suas diretrizes a integração da região Norte e Centro Oeste ao resto do país através da construção de diversas rodovias, a maior parte delas atravessando terras indígenas e também incentivando a construção de agrovilas, a colonização e ocupação por pessoas vindas do restante do país dos territórios indígenas.

Rodovias, hidrelétricas e garimpo

Além da rodovia, eles foram também afetados pela construção da hidrelétrica de Balbina e pelas levas de garimpeiros e de mineradoras que invadiram a região para explorar as riquezas minerais.

O Censo da Funai de 1972, revelava que a população Waimiri-Atroaria era de 3 mil indígenas. No ano de 1983 eles eram apenas 350 pessoas, depois desse conjunto de ações e omissões do Estado brasileiro em seu território.

Napalm, arma no terror causado por “homens brancos de uniforme cor de mato”

O Ministério Público Federal entrou em ação civil pública, em 2017, pedindo reparação aos danos provocados ao povo Wairmiri-Atroari, pela ditadura civil-militar. Em audiência judicial relativa a essa ação, os indígenas deixaram registrados os horrores a que foram submetidos: “homens brancos de uniforme ‘cor de mato’ entraram armados em suas terras, destruíram locais sagrados e provocaram a morte de crianças, adolescentes e adultos de aldeias inteiras”1 Aqui eles se referiam aos ataques dos militares as aldeias.

Os relatos apontaram o “derramamento de veneno, explosivos, ataques a tiros, esfaqueamentos e degolações violentas, praticadas por homens brancos fardados contra indígenas sobreviventes dos ataques aéreos”2

O bombardeio da aldeia com um elemento químico, possivelmente napalm, foi registrado judicialmente pela primeira vez por um índio sobrevivente, que era jovem na época, conforme registrado pelo Ministério Público: “Os indígenas ouviram muito barulho vindo de cima e não sabiam do que se tratava. Pouco tempo depois, começaram a sentir muito calor no corpo, não conseguiram mais andar e ficaram todos “muito doentes”, divulgou em nota o MPF, que reproduziu o relato do indígena. O calor provinha do veneno lançado do alto pelos aviões militares. Esse mesmo indígena prosseguiu seu depoimento dizendo aos procuradores que “depois que se ver praticamente sozinho em meio aos corpos de seus pais e irmãos e demais indígenas presentes, testemunhou entrarem homens brancos armados com facas e revólveres”3.

Esse quadro dantesco apresentado aqui, relata apenas um dos povos atingidos durante a ditadura civil-militar. Ele nos dá a dimensão do que foi aquele período sombrio e mostra o quanto se tem que apurar ainda dos crimes ocorridos naquela época contra os povos indígenas! E pior que a noite não tem fim, pois continuam sofrendo novos ataques as suas integridades físicas, culturais e de direitos territoriais na atual conjuntura!!

Bibliografia:

Valente, Rubens. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo, Cia. das Letras, 2017

Sites consultados:

https://midia.mpf.mp.br/6ccr/relatorio-figueiredo/relatorio-figueiredo.pdf

https://pib.socioambiental.org/pt/Quantos_s%C3%A3o%3F

https://amazoniareal.com.br/comissao-da-verdade-ao-menos-83-mil-indios-foram-mortos-na-ditadura-militar/

http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/audi%C3%AAncias-p%C3%BAblicas.html

http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=571

1 https://amazoniareal.com.br/waimiri-atroari-sobreviventes-de-genocidio-relatam-ataques-durante-obra-da-br-

2 Idem

3 Ibidem

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