domingo, 30 de maio de 2021

CPI DA COVID, ESPAÇO ONDE A ESQUERDA VIROU COADJUVANTE

Ilustração Cacinho


POR MARLUCIO LUNA


    Aberta em 27 de abril, a CPI da Covid ocupa há um mês o centro do noticiário político nacional. Os absurdos cometidos pelo (des)governo Federal na maior crise sanitária do país, o despreparo da equipe encarregada de lidar com o problema, a falta de compaixão e de humanidade com as vítimas da doença, tudo isso já é mais do que perceptível para a sociedade brasileira. Cabe à Comissão do Senado reunir dados, depoimentos e provas que indiquem de forma inequívoca que só há um caminho: o impeachment do inepto ocupante da cadeira presidencial. E para que a CPI chegue a tal conclusão, precisamos da esquerda como protagonista nos debates – algo que não aconteceu até o momento.

    A Comissão tem dois senadores da esquerda entre seus titulares: Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidência da CPI, e Humberto Costa (PT-PE), que foi ministro da Saúde do primeiro governo Lula, entre 2003 e 2005. Há ainda Rogério Carvalho (PT-SE), como suplente. Entretanto, apenas o primeiro – e por ser o vice-presidente da Comissão – tem ocupado espaços e assumido a responsabilidade de protagonizar debates. Os demais, no máximo, são esforçados coadjuvantes.

    Mas a CPI da Covid não é um clube privê, onde apenas os seus “sócios” têm o direito de participar. Os debates da Comissão são abertos a todos os senadores. Quem acompanha as sessões pela TV Senado – sim, tenho esse distúrbio – sabe que os defensores do (des)governo Bolsonaro se dividem em dois grupos: os completamente idiotizados e os incompetentes. Com isso, a oposição vem fazendo a festa. As acusações se multiplicam; os depoentes se limitam a mentir, dar respostas vazias, manter o silêncio ou, em poucos casos, confirmar todas as atrocidades cometidas a mando do capitão de milícias. É praticamente um jogo de ataque contra defesa.

    O campo progressista tem todas as condições para assumir o protagonismo na CPI da Covid, mas não foi isso que vimos neste primeiro mês de trabalho. Em um primeiro momento, Renan Calheiros (MDB-AL) – que pode ser tudo, menos do nosso campo político – monopolizou as atenções. Muitos militantes e/ou eleitores dos partidos de esquerda viraram torcedores do coronel da vez em Alagoas. De repente, Renan tornou-se depositário das esperanças da oposição.

    Com o andamento dos trabalhos da CPI, ficou cada vez mais explícita a indigência dos debates. A bancada (des)governista, fiel à natural falta de inteligência, fornecia ela mesma os argumentos para que a oposição fechasse o cerco a figuras dantescas – como o ex-chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) Fábio Wajngarten, o ex-chanceler Ernesto Araújo (o “Beato Salu”, como ficou conhecido nos corredores do Itamaraty) ou o ex-sinistro da Saúde Eduardo Pazuello. Então, vem a pergunta, quem se destacou nessas oitivas? 

    O depoimento do ex-chefe da Secom foi um festival de respostas evasivas, mentiras, desmentidos e acusações de supostas manipulações da grande imprensa. Wajngarten falou por quase 11 horas. Ouviu as perguntas e as respondeu com desfaçatez. Desrespeitou a CPI e os próprios senadores. Renan Calheiros, jogando para a plateia, chegou a pedir a prisão do “estrategista” que comandou a Comunicação do Palácio do Planalto durante quase toda a pandemia. 

    Ninguém questionou a relação nada republicana que a empresa de Wajngarten mantém com as redes de TV bolsonaristas por meio da destinação de polpudas verbas publicitárias, principalmente para a Record e a RedeTV – o que direta ou indiretamente contribuiu para um noticiário “menos pesado” sobre a pandemia. A esquerda ficou a reboque de perguntas sobre eventuais contradições entre a entrevista do ex-chefe da Secom à Veja e o depoimento.

    A ida de Ernesto Araújo à CPI da Covid foi a prova inequívoca de como os setores progressistas não sabem se posicionar e marcar presença no debate dentro da Comissão. Em um longo depoimento, “Beato Salu” recebeu dezenas de ataques. No entanto, as pancadas mais duras partiram de representantes do setor industrial e do agronegócio, muito mais preocupados com os ataques do ex-chanceler à China – e a consequente perda de negócio$ com a maior economia do planeta – do que com a falta de insumos para fabricação de vacinas, à dificuldade de importação dos imunizantes ou os esforços para importação de cloroquina e outras invencionices para o gado.

    A senadora Kátia Abreu (PP-TO) virou a musa do dia. Seu discurso contra Araújo foi saudado efusivamente pela direita engomada e, surpreendentemente, também pela esquerda. Em um passe de mágica, esqueceram que a nobre parlamentar ficou conhecida internacionalmente como “Rainha da Motosserra” ou “Miss Agrotóxico”. Ela sempre foi uma ferrenha opositora da reforma agrária, atuando como porta-voz do latifúndio no Congresso Nacional e expoente da ala elegante da Bancada do Boi. 

    Até mesmo sites do campo da esquerda rasgaram elogios à senadora. O blog O Cafezinho estampou como manchete naquele dia Kátia Abreu detona Ernesto Araújo: “negacionista compulsivo” [https://www.ocafezinho.com/2021/05/18/katia-detona-ernesto-araujo-na-cpi-negacionista-compulsivo/]. O Brasil 247 comemorou a atuação da “Rainha da Motosserra” com a matéria cujo título destacava, ainda que indiretamente, a coragem dela: Kátia Abreu enquadra Ernesto Araújo e sua “memória seletiva” [https://www.brasil247.com/cpicovid/katia-abreu-enquadra-ernesto-araujo-e-sua-memoria-seletiva]. O Portal Vermelho, aquele que se apresenta como “A esquerda bem informada”, foi além, alçando a “Miss Agrotóxico” quase à condição de carbonária. Começou assim a matéria sobre o depoimento do Beato Salu: 

    “Numa fala arrebatadora, a senadora Kátia Abreu (PP-TO) criticou duramente o depoimento, nesta terça-feira (18), do ex-ministro das Relações Exteriores na CPI da Covid, pelo qual negou que tenha atacado a China e dificultado a importação de insumos para a produção de vacina contra o coronavírus.” [https://vermelho.org.br/2021/05/18/senadora-katia-abreu-detona-ernesto-araujo-pelas-mentiras-ditas-na-cpi/]

    Coube ao site da Revista Piauí, uma publicação pertencente a uma família de banqueiros, a matéria com tom mais crítico (e mais engraçado) sobre o depoimento de “Beato Salu” e a intervenção da senadora: Ernesto Araújo é o primeiro agrotóxico rejeitado por Kátia Abreu [https://piaui.folha.uol.com.br/herald/2021/05/18/ernesto-araujo-e-o-primeiro-agrotoxico-rejeitado-por-katia-abreu/]

    Já a oitiva do ex-sinistro da Saúde precisou ser interrompida e retomada na manhã seguinte – para sorte da esquerda. O primeiro dia foi marcado pelo total despreparo da esquerda para “espremer” o depoente com maior volume de erros no combate à pandemia: o general “PazuErro”. Ficou claro que o campo progressista não tinha feito o dever de casa. Pazuello apresentou dados falsos, informações inverídicas, versões fantasiosas. O debate ficou rebaixado, pois não havia argumentação contrária ao “gênio da logística”. Pela primeira vez, um membro do (des)governo ficou em vantagem na CPI. Ainda bem que “bateu medinho” no corajoso general e ele passou mal, causando a suspensão do depoimento. 

    No dia seguinte, depois que as respectivas assessorias parlamentares municiaram os senadores com material facilmente encontrado na internet (textos, áudios e vídeos), “PazuErro” foi confrontado com a verdade e saiu desmoralizado. Mais uma vez, a esquerda não se destacou. Nem Humberto Costa, um ex-ministro da Saúde, conseguiu ir além das perguntas básicas e das análises rasteiras feitas por seus colegas do centro e até da direita.

    A esquerda tem um papel fundamental no processo de desconstrução do (des)governo Bolsonaro. Apenas os setores progressistas falarão a sério a palavra impeachment. Mas o apoio a isso depende, antes de tudo, do protagonismo de parlamentares e lideranças da esquerda em todos os espaços da sociedade. A CPI da Covid pode representar um duro golpe no fascismo reinante no Palácio do Planalto. Mas não será acendendo velas para Renan Calheiros ou endeusando a “fala arrebatadora” de Kátia Abreu que faremos o impeachment avançar.


4 comentários:

  1. Muito bom!!!
    Agora queremos outro texto falando da Dr. Luana!!!

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  2. Perfeito Marlucio. As vezes chego a pensar que a esquerda, ressalvando alguns bons quadros, está ainda enlutada pelo golpe. Incapaz de se impor e se contrapor a este pavor que reina aqui. Baita artigo.

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  3. Esse posicionamento seria involuntário ou parte de uma estratégia para aglutinar forças contra o bolsofascismo? Duro ter que aplaudir Renan e Kátia Abreu, mas temos problemas maiores no momento, não?

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  4. Marlucio foi cirúrgico. Texto perfeito

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