Por Paolo D'Aprile - Ilustração Guilherme Maia
Lá naquela ilha maravilhosa dedicada a Santiago, no meio do mar oceano, de frente para a África, abraçada ao infinito, tem corpinho de algodón, saia de chita com cordón, um par de brinco roda pión. Espero ouvir o nome dela, a "Diva dos pés descalços", mas a cantiga continua: tem Nho Mano Mendi, tem Kaká, Nha Nácia Gomi... e o elenco vai longe, até o fim da melodia cantada pela voz de mel mergulhado no açúcar da magnífica Mayra Andrade. Mas o nome dela não. Por anos fiquei pensando que na lista dos notáveis da Ilha de Santiago faltasse o nome dela. Uma imperdoável gafe, um descuido, quase uma ofensa contra a maior artista do país, a “Diva dos pés descalços”, esquecida abandonada, jogada no escanteio por Mayra, a mais admirável e talentosa cantora, depois da grande artista que conquistou a glória nos palcos do mundo cantando sem sapatos. Na Ilha de Santiago tem corpinho de algódon, saia de chita com cordón...
A Ilha de Santiago, eternizada na beleza do canto da jovem Mayra, deve realmente ser um lugar maravilhoso. Um arquipélago vulcânico despovoado até que os portugueses decidiram torná-lo entreposto marítimo, em um primeiro momento, para as naus diretas às Índias, depois para aquelas dedicadas ao abominável tráfico de pessoas a serem levadas escravizadas para os mercados europeus e americanos. Não conseguia eu entender o motivo da falta do nome dela. A causa de tamanho atrevimento não podia ser em razão de um trivial problema de métrica, de rima, de encaixe musical; havia de ter razões obscuras que fugiam ao meu conhecimento. Até hoje, quando chega um zap do meu amigo Guilherme: O que vc acha de a gente falar sobre ela, a dama da canção de Cabo Verde? E lá vou eu pesquisar sobre o ano do nascimento dela. Está escrito: Mindelo, 17 de agosto 1942. Agora entendi. Está explicado. A cidade de Mindelo fica na ilha de São Vicente. Mesmo arquipélago, outro santo. Santiago, São Vicente, nada a ver. Peço desculpa à doce Mayra. Tudo está agora perfeitamente claro. A “Diva dos pés descalços” nasceu em outra ilha. Pronto! Mas tudo isso não tem importância nenhuma.
A única coisa que realmente importa aqui é a música dela, sua voz rouca, arrastada na mansidão da morna, o estilo musical declarado pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade. Da ilha para o mundo. A língua portuguesa, misturada aos dialetos dos africanos que ali chegaram cantada no ritmo binário da morna, por ela esquentou os maiores teatros em todos os países. Ligando a alegria dos batuques africanos com o desespero do fado, sua música abraça a Terra como uma pergunta nunca formulada, como a possibilidade concreta de desvendar a inexistente beleza no coração dos homens: pessoas esculpidas na lonjura, no sofrimento do desterro, na melancolia da espera sempre vã, na esperança de encontrar o caminho de volta. Sometimes I fell like a motherless child, às vezes eu me sinto como uma criança sem mãe, So long way from my home, tão longe da minha casa, canta a voz negra de Riche Hevens.
Sodade, Sodade dessa minha terra, canta a voz negra da "Diva dos pés descalços" no blues universal inventado por ela.
Lá na Ilha de Santiago, na Ilha de São Vicente, na Mouraria de Lisboa, nas festas do Caribe, nas noites de New Orleans, pelos becos de Salvador e Rio de Janeiro, tem corpinho de algodón, saia de chita com cordón, um par de brinco roda pión... e tem ela também, seus pés descalços, sua música morna, sua cálida voz, sua imensa Sodade: Cesária Évora.
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