quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Kakistocracia, Teoria da Estupidez e bolsonarismo

Por Marlucio Luna


A kakistocracia é definida como o país ou estado governado pelos piores, pelos menos qualificados e menos escrupulosos de seus cidadãos. A palavra deriva dos vocábulos gregos kakistoi (piores) e kratos (poder). Há dúvidas sobre quem formulou o conceito: alguns apontam o sociólogo inglês Frederick M. Lumley; outros o atribuem ao filósofo italiano Michelangelo Bovero. Independentemente de quem seja o “pai” do termo, o fato é que ele se aplica perfeitamente ao atual (des)governo brasileiro.

Desde a posse, em janeiro de 2019, Bolsonaro procurou se cercar dos piores e menos competentes quadros. Um juiz corrompido foi para o Ministério da Justiça; um diplomata alvo de chacota entre seus pares subiu ao mais alto posto do Itamaraty; o Ministério da Educação caiu nas mãos de um economista medíocre e portador de graves distúrbios no uso adequado da língua portuguesa; um defensor do desmatamento e da liberdade para exploração predatória (e ilegal) dos recursos naturais aboletou-se no comando da pasta do Meio Ambiente; um general incompetente (com perdão do pleonasmo) e sobre o qual pairam dúvidas acerca do republicanismo assumiu as rédeas do genocídio na pandemia de Covid. Isso também vale para áreas como Direitos Humanos, Cultura, Reforma Agrária e Infraestrutura, entre outras. Mas para coroar a ascensão dos ineptos ao poder, a economia nacional passou a ser pilotada por um ultra-hiper-mega-superneoliberal, mais reconhecido pela desastrosa carreira acadêmica e por ser um especialista na especulação financeira.

Os resultados dessa seleção de craques da kakistocracia podem ser vistos e sentidos nas ruas, nos supermercados, nos postos de combustíveis, nos hospitais, nas escolas e universidades públicas, na Amazônia, em toda a sociedade. O país entrou oficialmente em recessão no dia 2 de dezembro, quando o IBGE anunciou queda do PIB pelo terceiro trimestre consecutivo. A inflação acumulada nos últimos 12 meses já supera a casa dos 10% e o desemprego fechou o mês de novembro em 12,6%. A Amazônia registra sucessivos recordes de desmatamento. O Enem de 2021 teve 44% menos inscritos na comparação com o anterior, sendo que o número de candidatos pobres foi 77,4% menor. O desmonte do estado se mostra visível até para um cego. E, para quem não se impressiona com a frieza dos números, basta flanar pelas avenidas das grandes e médias cidades brasileiras. Terá a oportunidade de verificar de perto o aumento brutal do número de famílias vivendo sob marquises ou em praças.

Então, por que, diante do fracasso retumbante em todas as áreas, o (des)governo Bolsonaro ainda registra nas pesquisas de opinião a média robusta de 15% de avaliações como ótimo ou bom? A análise política, a História e a Sociologia fornecem alguns indícios que justificam o fenômeno. Entretanto, são insuficientes para explicá-lo de forma mais consistente. É aí que a Psicologia entra.

Orgulho da estupidez — O alemão Dietrich Bonhoeffer, um teólogo e membro da resistência antinazista, analisou as condições que propiciaram a ascensão de Hitler ao poder na década de 1930. Ao constatar a adesão incondicional da população alemã, incluindo a maioria das lideranças religiosas, às ideias no nacional socialismo, ele fez um alerta: “A estupidez é um inimigo pior que o mal. Diferente da estupidez, o mal tem as sementes da sua própria destruição”. Bonhoeffer acredita que, ao contrário do canalha e do mal-intencionado, o estúpido não peca pela falta de caráter ou por uma repentina perda da razão. Insere-se em uma categoria sociopsicológica, algo mais complexo — e muito mais perigoso.

O teólogo alemão recorre aos mecanismos de funcionamento do cérebro para explicar a estupidez. A mente humana atua de forma heurística, sempre buscando atalhos por meio de vieses cognitivos. A estupidez, então, se aproveita do fato de o homem ser um animal social e usa essa sociabilidade como base. Surge então o efeito rebanho. O estúpido orgulha-se de si mesmo, pois tem a chancela do grupo, de seus pares, da “sua maioria”.

A análise de Bonhoeffer sobre o período da consolidação do poder nazista e da escalada bélica alemã mostra como a estupidez funciona no sentido de tornar “naturais” ideias já ultrapassadas pela civilização. Qualquer semelhança com os tempos atuais na frágil democracia brasileira não será mera coincidência.

“Contra o estúpido não temos defesa. Nem os protestos nem a força podem afetá-lo. O raciocínio é inútil. Fatos que contradizem preconceitos pessoais podem simplesmente ser desacreditados — na verdade, ele pode contra-atacar criticando-os e, se forem inegáveis, podem simplesmente ser deixados de lado como exceções triviais. Portanto, o estúpido, diferentemente do canalha, está completamente satisfeito consigo mesmo. (...) Nunca mais tentaremos persuadir a pessoa estúpida com razões, pois isso é sem sentido e perigoso.”

Desta forma, quando o grupo age de forma estúpida, o indivíduo se sente empoderado e se orgulha de sua própria condição. Respostas simples para questões complexas lhe bastam. A repetição de slogans, clichês e chavões sem qualquer conexão com a verdade alimenta o comportamento do rebanho. No fundo, apenas reproduzem a escalada irracional de compromisso, conceito psicanalítico que aponta a persistência em uma decisão que já causou prejuízos à pessoa apenas por já ter investido muito nessa decisão.

O bolsonarismo se alimenta do comportamento de rebanho e, principalmente, da estupidez enraizada nos seguidores do incapaz inquilino do Palácio do Planalto. Eles interditam o debate e saúdam a kakistocracia em vigor como a “salvação” contra as ameaças de sempre: comunismo, destruição dos valores tradicionais — tais como pátria, família, cristianismo — o perigo do globalismo, entre outros despropósitos carentes de qualquer fundamento lógico.

Mais uma vez, Bonhoeffer traça o perfil do estúpido, o nazista raiz — figura hoje tida como caricata, porém extremamente semelhante àquele tio do churrasco da família ou àquele colega de trabalho que se informa apenas pelos grupos de WhatsApp.

“Em uma conversa com ele, quase se sente que não se trata de maneira alguma de uma pessoa, mas de slogans e coisas do gênero que se apoderaram dele. Ele está enfeitiçado, cego, maltratado e abusado em seu próprio ser. Tendo assim se tornado uma ferramenta irracional, a pessoa estúpida também será capaz de qualquer mal e ao mesmo tempo incapaz de ver que isso é mau.”

Fenômeno expandido — A kakistocracia bolsonarista é filha dileta do governo Trump. Representa cópia fidedigna do modelo gestado nas eleições de 2016 nos Estados Unidos — desde as estratégias torpes da campanha presidencial até a fixação pela escolha dos piores quadros. O discurso calcado na “pós-verdade”, um eufemismo para mentiras descaradas, também é um pastiche das ideias disseminadas por Donald Trump.

Bolsonaro colocou no mesmo patamar “verdade” e “mentira”. Fatos, dados estatísticos, evidências científicas, estudos, nada disso importa para esses 15% de fiéis seguidores, os estúpidos aos quais Bonhoeffer se referiu. O país chegou a um nível tão baixo que, comparando-se as equipes ministeriais, até o governo golpista de Michel Temer parece uma reunião de luminares.

O economista italiano Carlos Cipolla, em seu livro “As leis básicas da estupidez humana”, parte do pensamento de Bonhoeffer para diferenciar os “bandidos” (não no sentido estritamente criminal da palavra) dos estúpidos. No primeiro caso, os indivíduos desfrutam diretamente de vantagens materiais ou pessoais derivadas de ações indevidas. Estes são os beneficiários — e muitas vezes os líderes — do sistema kakistocrático. Já “estúpido” causa transtornos sem qualquer ganho para si, tendo apenas a satisfação de ostentar a estupidez e se sentir parte o rebanho. 

O “bandido” se utiliza de ferramentas como boatos, discursos de ódio, discriminação e assédio para atacar seus opositores. Já o estúpido as reproduz de forma automática, sem qualquer tipo de análise racional sobre a veracidade do que dissemina. O fato de isso gerar ganhos e vantagens a terceiros não importa para o membro do rebanho. Ele se compraz em buscar a anulação da opinião divergente, daquele que não se parece com ele ou o silenciamento de quem não compartilha a sua estupidez.

Este modelo de governo inepto e corrupto, baseado em ataques à democracia e no desprezo pelas mais elementares noções de respeito à dignidade humana, continua sendo “ótimo/bom” para um vasto contingente de eleitores. Buscar o debate com os zumbis bolsonaristas, além de ineficaz, pode estimular o recrudescimento da violência latente no rebanho. 

Bonhoeffer terminou seus dias no campo de concentração de Flossenbürg. Foi enforcado uma semana antes da libertação dos prisioneiros pelas tropas aliadas. Naquele momento, os alemães já tinham percebido o erro cometido. No entanto, “os 15%” de Hitler continuavam fiéis ao führer e ainda dispostos a seguir o rebanho, “a sua maioria”. Não será diferente com o gado bolsonarista. Mesmo com a provável derrota eleitoral, permanecerão defendendo empedernidamente a kakistocracia. Se necessário, recorrerão a qualquer expediente ilegal, ilícito ou imoral. Afinal de contas, apenas a “verdade” deles pode prevalecer.

O próximo ano, ao contrário das visões otimistas da parcela significativa das forças progressistas, será duro. Seria bom não esquecer do alerta que Dante colocou na entrada do inferno: “Abandone toda a esperança aquele que por aqui entrar”.

2 comentários:

  1. Excelente! Cipolla é um dos poucos economistas que vêem além dos juros da doutrina econômica.
    Não conhecia o Bohnoeffer, fiquei com vontade de ler.

    Adicionaria só mais um tipo pra formar a santíssima trindade dos eleitores do Bolsonaro: os psicopatas.

    Juntos Psicopatas, bandidos e idiotas monstram-se mais legais que armas atômicas pois, perdoem o trocadilho, atuam em efeito retardado, ecoando e perpetrando paranóia, esquizofrenia e demência no te ido social.

    Fica o alerta achar que eles vão largar o osso tranquilamente é ser idiotamente otimista.


    Parabéns pelo necessário artigo!

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  2. Terrivelmente verdadeiro! Preparemo-nos se é que é possível!

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