terça-feira, 9 de novembro de 2021

Milton Santos - Intelectual da Periferia, Pensador do Mundo


 Ilustração Cacinho 

Por Jorge Luiz Barbosa*

Milton Santos nasceu no interior da Bahia, em Brotas de Macaúbas, em 3 de maio de 1926. Educado pelos pais, professores do ensino básico, Milton Santos segue para Salvador ainda muito moço para completar seus estudos em um ginásio-internato. Ali, já começou a lecionar, aos 15 anos de idade, para os alunos mais novos. 

Seu interesse dedicado à geografia, à filosofia e à história já começaria a formar sua cultura científica, social e humanística.  Formou-se em Direito, em 1948, na UFBA, formação/ profissão praticamente exclusiva para famílias brancas, abastadas e de mando na sociedade baiana e brasileira. 

O advogado estava apenas no diploma. O caminho seguido era mesmo o de professor de geografia, consolidado em 1958, com a sua Tese de Doutorado O Centro da Cidade de Salvador, defendida na Universidade de Estrasburgo (França).  Sua habilidade para ensinar foi sempre acompanhada da qualidade de sua escrita. Daí ter combinado o exercício de redator do jornal A Tarde com o de docente de geografia humana da Universidade Católica de Salvador e da Universidade Federal Bahia, até ser preso e exilado com o Golpe Civil-Militar em 1964. 

Crítica ao capitalismo

O exílio, com seus sofrimentos de solidão e de imposição de ausências, fez Milton Santos viver em desassossego. Morar em cidades diferentes (Paris, Bordeaux Toulouse, Nova York, Toronto, Lima, Dar-es-Salaam, Caracas) para ensinar em universidades diferentes, vivendo situações instáveis de trabalho, acabaram por forjar o intelectual e cidadão cada vez mais atento, ousado e profundamente crítico às condições sociais vividas em geografia plurais. 

Seus livros As cidades do Terceiro Mundo e o Espaço Dividido: os dois circuitos da economia nos países dos subdesenvolvidos — publicados em 1971 e 1975, respectivamente, em francês e inglês, originados no nomadismo — são demonstrativos da consolidação de um intelectual que afina a leitura do Brasil e da América Latina para entender o mundo.  

Sua construção intelectual defendia um território de fala e de escuta do conhecimento tão bem expressa na obra ético-política O Trabalho do Geógrafo nos Países do Terceiro Mundo. Intelectual do mundo fazendo da periferia a centralidade da crítica ao capitalismo. 

Milton Santos retorna ao Brasil no fim dos anos de 1970 (inclusive para que seu filho Rafael nascesse baiano). Volta a lecionar nas universidades brasileiras (UFRJ, USP e UFBA, onde recupera sua cátedra interrompida), trazendo uma bagagem de livros e artigos publicados em diversos idiomas. Todavia, seu olhar para mundo e para Brasil torna-se cada vez mais apurado, sensível e inventivo. 

Globalização

Milton Santos revoluciona a geografia brasileira com o seu livro Por uma Geografia Nova (1978) e daqui atiça reflexões originais para a geografia mundial (recebeu, em 1994, o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud; além dos títulos de doutor honoris causa em mais de 20 universidades pelo mundo ao longo de sua carreira). Seus estudos, pesquisas e ensaios se multiplicam em livros, artigos (inclusive em jornais) e conferências. 

Seu empenho em compreender as relações sociais, os meios técnicos e a produção do espaço geográfico revelam-se em seus mais recentes trabalhos Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional (1994), Da totalidade ao lugar (1996), Metamorfose do espaço habitado (1997), que desembocam na sua obra maior: A Natureza do Espaço (1996), no qual buscou “a criação de uma teoria geral do espaço humano como uma contribuição da geografia à reconstrução da teoria social“.

Em 2000, publica Por uma outra globalização, do pensamento único à consciência universal. Pensador da Periferia colocando o mundo sob a crítica à globalização: “o estágio atual da globalização está produzindo mais desigualdades (...) crescem o desemprego, a pobreza, a fome a insegurança do cotidiano, num mundo que se fragmenta e onde se ampliam as fraturas sociais”.

Herança escravocrata

O debate ardorosamente crítico da globalização não deixa em segundo plano as profundas contradições da cidadania mutilada em nosso país: “O modelo cívico brasileiro é herdado da escravidão, tanto o modelo cívico cultural como o modelo cívico político. A escravidão marcou o território, marcou os espíritos e marca até hoje as relações sociais. “

  A coragem crítica esteve sempre envolvida com a criação de sínteses para desvelamento da sociedade e seu espaço produzido. São referenciais importantes os conceitos de formação socioespacial, território usado, espaço como sistema de objetos e ações, meio técnico científico-informacional que se envolvem decisivamente com as questões relativas à cidadania, ao direito e à justiça em seus escritos publicados e falas públicas.  E assim alimentava sua convocação às utopias: “O mundo é formado não apenas pelo que já existe, mas pelo que pode efetivamente existir. “

A crença nas possibilidades da mudança estava depositada nos lentos, justamente homens e mulheres que viviam seus territórios comuns, suas esperanças compartilhadas, suas lutas cotidianas por direitos.  Favelas e periferias ganhavam o centro do debate do legado intelectual, ético e político de Milton Santos. 

 

“Ser negro no Brasil é, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado.”

“O poder da geografia é dado pela sua capacidade de entender a realidade em que vivemos.”

“A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une.”

Milton Santos

 

* Professor Titular de Geografia da UFF/RJ; fundador do Observatório de Favelas e do Instituto Maria e João Aleixo

* Cacinho é formado pela Faculdade de Cinema e TV da Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO/ Juiz de Fora, em 2006, foi responsável pelo Núcleo de Animação da Groia Filmes, até o ano seguinte, quando abriu sua própria produtora, a AGente QUE FEZ – ANIMAÇÕES, também em Juiz de Fora/MG, tem mais de 20 curtas metragens e muitos prêmios em festivais de cinema e animação. Ministra oficinas e cursos de animação em escolas, universidades, clubes e festivais de cinema e vídeo. Foi chargista do jornal impresso TRIBUNA DE MINAS, durante o ano de 2018. Em 2019, funda em sociedade com o chargista André Ribeiro a revista digital DUAS BANDAS E UM CUJUNTINHO, que é uma homenagem a extinta revista BUNDAS do Ziraldo e em 2020 junto com o Coletivo PAVIO CURTO do qual é coordenador, iniciou os trabalhos de charges, caricaturas, ilustrações e animações para a revista digital de mesmo nome.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Um ensaio crítico após o filme Marighella

 Por Eduardo Alves*


O filme Marighella (diretor Wagner Moura), lançado em 2019, tem a envergadura de um filme biográfico. Não se trata de uma fácil biografia, pois Carlos foi uma pessoa que assumiu conscientemente o lugar social e histórico que ocupava no capitalismo. Foi um ser humano que se destacou como estudante, ativista, poeta, revolucionário, guerrilheiro, enfim, alguém que poderia ter muitos filmes com aspectos distintos de suas múltiplas contribuições. Livros, como Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo (de Mário Magalhães), existiram como suporte na vida e nos ensinamentos de quem abraçou o BEM VIVER em todas as dimensões humanas. 

Muito chamaram a atenção, no filme, o contexto e o texto. O filme veio em um momento muito adequado e tratou com impulsos críticos o que foi a ditadura, operada diretamente pelos militares, mas planejada nos cadernos dos civis capitalistas que atuavam no Estado e que se assumiam donos do COMUM apropriado.

Os donos do poder — que se apropriam do comum para a obtenção do lucro e fazem vulto de shows, narrativas e mentiras, com proibições para as condições de subsistência e de existência da maioria das pessoas, com o controle do “saber” — apoiaram as ações com uniformes militares à frente. 

Bem viver

Marighella era poeta, criativo, comprometido com a vida e se dedicou à verdade e ao compromisso com o BEM VIVER. Para ele, já cedo, a escolha evidente pelo Partido Comunista, ainda do Brasil, era, em seu tempo, a maior demonstração do reconhecimento sócio-histórico e de sua compreensiva escolha como sujeito político em favor da vida, da liberdade e da democracia em todas as dimensões. 

Portanto, não há dúvidas em afirmar que o filme foi bem-vindo, com um personagem que não foi persona em vida e que existiu fazendo com que sua existência atingisse raios maiores que o limite de seu corpo. O que viveu Marighella em nossa história, sua posição crítica na formação social brasileira profundamente desigual e sua dedicação de organização, acolhimento, formação e luta por outra organização das pessoas na história e na economia são elementos que precisam ser conhecidos. Principalmente pelas pessoas brasileiras, mesmo para as que supostamente sabem, mas que não sabem, pois a maioria das pessoas no Brasil é impedida de, ao menos, ter conhecimento da existência de pessoas como Marighella. 

Nesse sentido, o filme muito contribuiu e traz para a cena da vida e dos ensinamentos o que nunca deveriam sair. Não seria possível, portanto, iniciar sem afirmar que o filme foi bem-vindo para impulsos de uma organização coletiva que preze pela inteligência e que conquiste e assegure o viver em todos os sentidos e dimensões.

Dominicanos

No texto de vida de Marighella, que foi cravado no contexto do capitalismo brasileiro, entre vários ensinamentos, muito se pode aprender sobre o papel dos freis dominicanos frente à ditadura militar (vale sempre lembrar que também civil) vivida diretamente pelas pessoas do Brasil, a partir de 1964. Impactos fortes sobre: de um lado os que buscavam revolucionar as bases da organização social capitalista e, de outro, os grupos sociais que produziram a guerra contra aqueles, impondo a ditadura aos que resistiram, lutaram contra e se organizaram para impedir e superar tal absurdo humano. Vale lembrar alguns ensinamentos como em Batismo de sangue (o livro) de Frei Beto e as importantes falas de Frei Oswaldo no lançamento do filme Batismo de Sangue

Frei Oswaldo era o dominicano que iniciou a ponte entre Marighella e os frades. Foi enviado para a Europa, pois seus superiores avaliaram que sua exposição era muito ampla e exigia cuidados necessários. Mas nos dias atuais, esse mesmo frei, que viveu com Tito o martírio de seu suicídio, nos ensina que a organização de enfrentamento à ditadura não teve fim no contexto desse tempo de terror. 

Afirma com disposição e entusiasmo que, apesar do período da ditadura iniciada formalmente em 1964 ter sido “traumático para os dominicanos envolvidos e para a Ordem em seu conjunto”, nos dias atuais estão espalhados nos vários cantos do país e estão no tempo do agora envolvidos com diversas organizações religiosas e humanitárias com ações de combate ao trabalho escravo, defesa dos direitos indígenas, das mulheres e dos presidiários, dentre várias outras ações humanitárias. 

O PCB — ainda Partido Comunista do Brasil quando Marighella se filiou — já havia alterado o nome quando a ditadura explícita é deflagrada em 1964, o que foi elemento das múltiplas discordâncias que geraram novas siglas organizativas. No filme só aparecem a ALN e o MR8, mas já se poderia falar de Polop, POC, PCBR, entre outras, gestadas ou em gestação. E, certamente, influenciaram os contornos de Marighella na política, principalmente porque há uma pontinha do Araguaia, no qual o grande conhecido foi o PCdoB, pois a ALN fora antes dizimada pelas tropas da ditadura.

O autor desses escritos nasceu um ano antes do dia em que Marighella foi assassinado - por obra da emboscada articulada pelo delegado Fleury. Essa realidade não passava ou sequer poderia se alojar na consciência de quem vos escreve, que, com apenas um ano de idade naquele contexto, nada imaginava, pensava ou sabia sobre a situação política vigente. 

Sentia, apenas tangencialmente, as sombras da história, pois isento de influência da ascendência direta, de pai e de mãe — que não tinham conhecimento para além das propagandas mentirosas —, não se tinha muito espaço para tais sentimentos. Elementos singulares que carrego na história e que se desenvolveram como potência crítica no solo fértil da construção coletiva diante da materialidade concreta da história e da análise objetiva desta, como enfrentamento da mentira. Nela assumi, desde muito jovem, o lugar da aproximação com o verdadeiro, sob a correspondência entre meu lugar na história concreta e minha consciência.

Compromisso com a vida

Marighella trazia isso em comum, antes mesmo de mim na cronologia, sem que nem me passasse pela cabeça. E de muitas pessoas, ainda hoje, não passa pela cabeça, mesmo após 50 anos do assassinato desse grande homem que foi fundamental para ilustrar e ampliar o conhecimento coletivo comprometido com a vida e com o verdadeiro em nossa sociedade; essa sociedade capitalista, cada vez mais necrocapitalista, na qual Marighella já havia se assumido, desde lá, marxista, leninista, revolucionário e comunista.

Vale muito lembrar que, pelas palavras do próprio pai, Carlinhos, seu filho, foi carregado de amor em todas as dimensões da sua vida. Ele não veio para matar: veio para assumir o seu lugar de sujeito para impedir a matança orquestrada pelo capitalismo. Matança da vida em vida, matança que leva a grande maioria das pessoas para a morte da vida, a morte da subjetividade, a morte da potência humana e a morte do corpo.

Muitos assassinados são e seguem a ser hoje, repetição, sob outras formas, da história. Mais de meio milhão padeceu pela política atual que existe na pandemia, na qual a mentira do Estado apenas fala — pois não pode deixar de fala — de 446 mil assassinados pela necropolítica que atinge com mais força os que são interditados à vida. 

É, Marighella pegou outro tempo, mas tempo em que já era absurdamente óbvio que nascer, viver e morrer não são fases naturais; são organizadas pela política.

Ativismo crítico

Para além disso, vale lembrar que Marighella não se apresentava como um acadêmico do marxismo, e sim como um “ativista crítico” vinculado ao marxismo. Isso faz muita diferença e vale a pena ter acesso e ler A crise do marxismo, publicado por Perry Anderson em 1983 e traduzido para o português em 1985. Haverá, assim como ainda há, quem diga que não foi, que foi pouco ou que faltou — ou algo assim — para em marxista chegar. Seguem, assim, com todas as crises e dimensões diferenciadas, os grupos e as formações sociais que não conseguem unificar para firmar um basta ao capitalismo nem ao menos a um governo, como hoje vivemos. 

Nesse caminho, medir o grau de mais ou menos marxista se torna armadilha que cresce em esquerdismo e decresce em análise objetiva da realidade, o que gera, dentre outros perigos, o policiamento, o identitarismo e o esvaziamento da diversidade na unidade. A despeito da medida marxista, Marighella foi um ser substancialmente político, que se reconhece como sujeito, que se dedica à luta pela liberdade e pela dignidade humana e que vê no marxismo a principal terra teórica para pensar e agir concreta e consequentemente na realidade, para superar a ordem opressora dominante.

Vale dizer, e não poderia ser diferente, que um filme não poderia dar o sentido amplo, completo e magnânimo que teve a vida de um ser humano como Marighella. Destaca-se que sua neta biológica — e que é devidamente referenciada na trajetória e na formação sócio-histórica de seu avô — foi eleita vereadora em 2020, em Salvador, e atua em um dos partidos de esquerda do Brasil: o PT. Há muito o que falar, produzir e aprender com a passagem de Marighella neste mundo e muito o que ensinar, do livro ao filme, para aprender coletivamente em favor da vida.

Marighella presente! 

*Poeta, cientista social pela UFRJ, cursou Ciências Econômicas, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ. Com 16 anos, Eduardo já era secretário de juventude do Partido dos Trabalhadores - PT. Posteriormente, atuou como secretário de formação política do partido, junto aos diretórios municipal, estadual e nacional, sendo também da secretaria nacional. Foi da Teologia da Libertação e atuou na Juventude Operária Católica e em Pastorais. Em Brasília, foi assessor do Sindicato do Servidores Públicos Federais - SINDSEP-DF, por dois anos, e assessor da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal - CONDSEF, por onze anos. Foi assessor do vereador Adilson Pires em seu primeiro mandato no Rio de Janeiro e foi chefe de gabinete do deputado estadual Marcelo Freixo, por seis anos. Foi coordenador da Escola Popular de Comunicação Crítica - ESPOCC e, nos tempos de produção destes ensaios, foi diretor do Observatório de Favelas, situado no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, atuando no Instituto Maria e João Aleixo - IMJA. Atualmente, Eduardo é coordenador pedagógico do projeto de formação política do Instituto Pensamentos e Ações para a Democracia - IPAD. Colaborador do coletivo Pavio Curto


É preciso refundar a República

Texto Edson Diniz

Ilustração Mani Ceiba


“E o povo assistiu a tudo bestializado”! Essa frase, atribuída ao deputado e defensor da República, Aristides Lobo (CARVALHO, 1997), diz muito sobre o 15 de novembro e a Proclamação da República brasileira, em 1889. O deputado se referia a um fato concreto: as tropas do exército brasileiro desfilaram pelo Centro da cidade do Rio de Janeiro, naquela tarde, enquanto a população apenas assistia, ao que julgou ser uma “parada militar”, sem saber o porquê.

À frente do desfile militar estava o marechal Deodoro da Fonseca, espécie de “herói” da guerra do Paraguai e militar respeitado no exército. Ele acabara de destituir o ministro Ouro Preto, chefe do governo imperial, que se encontrava, naquele momento, reunido com seu gabinete, no quartel do próprio exército (GOMES, 2013).

O fato mais curioso desse episódio foi que Deodoro dissolveu o governo, mas não proclamou a República de imediato (SCHWARCZ, 1998). Alguns observadores da cena no Campo de Santana, onde as tropas estavam reunidas, afirmaram que o velho Marechal teria mesmo repreendido alguns presentes quando estes deram vivas à República. Era notória a simpatia de Deodoro pelo imperador D. Pedro II. 

Na verdade, a República só foi proclamada “oficialmente” mais tarde, na Câmara de Vereadores, de forma improvisada, na presença de poucos, e confirmada à noite em reunião onde se encontravam militares e políticos, na casa do próprio Deodoro. Havia um boato de que o Imperador ordenaria a prisão dos conspiradores e isso pode ter contribuído para a decisão do Marechal que, até o último instante, se mostrava hesitante em dar o golpe na monarquia.


Golpe militar

O fato é que assim nascia a República Brasileira, apoiada em um golpe militar e sustentada pelos fazendeiros ricos do oeste paulista – instalados no Partido Republicano - interessados na dinamização da economia, o que o Império já não conseguia oferecer. Destaca-se, ainda, o apoio dado pela classe média urbana, influenciada pela filosofia positivista que afirmava a “ordem e o progresso” como caminhos para o desenvolvimento social, numa perspectiva conservadora e que não correspondia a um ideal de democracia verdadeiramente participativa. 

No final das contas, mais do que a ação de indivíduos, a República Brasileira expressava o desejo das elites em superar a economia escravista, substituindo-a pela economia capitalista. Essa atendia plenamente aos anseios dos novos donos do poder no Brasil e não do povo trabalhador. 

Assim, quando nos perguntamos sobre o que mudou de verdade para a maioria da população brasileira no dia seguinte, ou seja, no dia 16 de novembro de 1889, a resposta invariavelmente é: absolutamente nada! Os ex-escravizados continuaram sem qualquer apoio ou assistência para que pudessem se integrar à sociedade na condição de pessoas livres, os mais pobres continuaram sem acesso aos seus direitos básicos e as desigualdades sociais, econômicas, étnico-raciais e de gênero, só aumentaram. 

A verdade é que desde então, a República Brasileira nunca consolidou o ideário de uma “res publica”, expressão latina que pode ser traduzida como “coisa pública” ou como “assunto público”. Pelo contrário, ela sempre foi tratada como algo privado, pertencente aos mais ricos e poderosos, e excluindo os trabalhadores e trabalhadoras. 

Não é à toa que dos nossos 132 anos de República, poucos foram os momentos realmente democráticos. Como vimos, ela já nasceu sob o comando de dois militares: os Marechais Deodoro da Fonseca (1889-1891) e Floriano Peixoto (1891-1894). Depois, até a década de 1930, o país viveu sob o domínio das oligarquias cafeeiras do sudeste. Esse domínio foi interrompido por Getúlio Vargas que chegou ao poder também por um golpe de Estado. Entre 1937–1945, Getúlio governou como verdadeiro ditador (Estado Novo). Deposto Vargas, em 1945, e depois de um breve período de relativa democracia, temos o golpe civil-militar de 1964, que mergulhou o país numa onda de mortes e tortura. A partir de 1988, com a nova constituição e com a eleição para presidente, em 1990, consolidamos um novo período democrático. 


Retrocesso

Em todos os movimentos golpistas a nossa elite econômica esteve envolvida. Todas as vezes em que o projeto de República e de país desigual esteve minimante ameaçado, usou-se o recurso do golpe contra a democracia. Como foi o caso mais recente, o golpe parlamentar que derrubou o governo legítimo de Dilma Rousseff, em 2016. 

O fato é que hoje temos pouco a comemorar em mais um 15 de novembro. Neste ano, perdemos mais de 600 mil pessoas para a COVID-19, houve aumento da fome e da pobreza e tivemos retrocessos inimagináveis nos direitos básicos de nossos cidadãos. Tudo isso patrocinado pelo governo Bolsonaro, um governo incompetente, inconsequente e que não se importa com o destino do país, principalmente dos mais pobres.

Por isso, mais do que comemorar a proclamação da República, o que precisamos fazer é refundá-la radicalmente. Uma refundação apoiada na ideia de democracia popular, sobretudo a partir dos movimentos sociais, para atender aos anseios e necessidades da maioria da população e não dos grupos privilegiados que desde os tempos coloniais se perpetuam no poder.

Precisamos de uma República verdadeiramente “pública”, popular, e que garanta o bem comum; só assim deixaremos de ser os “bestializados” para sermos os donos da nossa história. É possível, mas precisaremos estar juntos na defesa de nossa democracia, agora mais do que nunca!


Referências:

SCHWARCZ. Lilia Moritz. Nas Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

CARVALHO. José Murilo de. Os bestializados:  o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1997

GOMES. Laurentino. 1889:  como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da monarquia e a proclamação da República no Brasil. São Paulo: Globo, 2013.

Sobre o autor: Edson Diniz é Morador da Favela da Maré por 40 anos, é graduado em história pela UERJ, mestre emeducação brasileira e doutor em sociologia da educação pela PUC-Rio. Cofundador da Redes de Desenvolvimento da Maré, criador do Núcleo de Memória e Identidade dos Moradores da Maré (NUMIM). Atualmente, desenvolve pesquisas nas áreas de sociologia da educação, segurança pública, história das favelas, direitos humanos, arte, cultura e memória das favelas. Colaborador do coletivo Pavio Curto

* Mani Ceiba (Fernanda Vaz) é desenhista, ilustradora, ceramista. Artista plástica formada pela EPA e faz bacharelado em artes visuais. Faz parte do coletivo Pavio Curto. Membro da direção do grupo de artes borboletadágua.

PEC 5: controle pelo Congresso não vai democratizar o Ministério Público


Ilustração Mani Ceiba

Por Julio José Araujo Jr.*


Setores importantes da sociedade e de movimentos sociais defenderam a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 05/2021, que trata do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e das atribuições do Ministério Público. Entre outros pontos, a PEC, cujo projeto substitutivo não conseguiu o número de votos necessários para ser aprovada, trata de mudanças na composição do conselho, a indicação de um código de ética para os membros e a previsão de que o corregedor nacional do CNMP será indicado pelo Congresso. 

Segundo os defensores da PEC, a justificativa para a alteração no funcionamento do Ministério Público residiria na necessidade de que os mecanismos de controle no Ministério Público sejam aperfeiçoados. Eu estou de acordo com essa premissa, mas não com a solução. Por isso pergunto: a PEC 5 atende a essa finalidade? Penso que a resposta só pode ser negativa.

Não tenho dúvidas de que o debate sobre os rumos do Ministério Público é muito importante. É uma pena que nas comissões legislativas a discussão tenha sido atropelada, pois naqueles espaços tivemos uma oportunidade de realmente pensar em mecanismos de aperfeiçoamento sobre o órgão. Poderíamos ter aproveitado para pensar um desenho institucional que aprofundasse a participação social e permitisse maior fiscalização do trabalho do Ministério Público, garantindo transparência, independência, controle e prestação de contas à sociedade.


Defesa de direitos

Afinal, de todas as inovações da Constituição de 1988, a previsão de um novo papel para o órgão foi das mais impactantes. O Ministério Público, que já detinha a titularidade da ação penal, passou a dispor de um acervo amplo de atribuições, muitas delas relacionadas à busca de efetivação dos direitos que a Constituição enunciava, como meio de garantia defesa da ordem jurídica e da sociedade.

Por se tratar de uma instituição com atribuições na defesa de direitos, os mecanismos de controle e a participação social são imprescindíveis. Afinal, é necessário não apenas ter ciência, mas também influir nas pautas que o Ministério Público levará a cabo ao tratar dos direitos humanos.

Assim, apesar de o órgão abordar quase todos os assuntos importantes e caros a diversos grupos sociais vulneráveis, a transparência na atuação deveria ser maior. Na prática, o povo negro, os trabalhadores e as trabalhadoras sem-terra, os povos indígenas, os sem-teto e entidades ambientalistas têm dificuldades em interferir nos rumos das decisões que a instituição adota acerca de pautas que lhes dizem respeito. 

Os movimentos sociais, por sua vez, não deixaram de perceber ao longo das décadas a importância do papel da instituição e acompanhar os seus passos, mesmo quando estes não atendem a seus anseios. Mesmo diante de uma agenda tão autônoma do órgão, os movimentos pressionam e influenciam na sua elaboração. As transformações por que passaram os movimentos sociais ao longo das décadas também lhes destinaram papéis diferentes, em que a forma de confronto e a busca — ou não — de uma interlocução privilegiada com o Estado vão ser características definidora de cada movimento. 


Ouvidorias 

Um caminho relevante para a participação social estaria na repetição do modelo de ouvidorias externas das Defensorias Públicas, por meio das quais a agenda do órgão é discutida com a sociedade. As ouvidorias oferecem uma possibilidade de intervenção concreta na definição da agenda da instituição e no controle de sua implementação. Além disso, pode-se pensar em um assento da sociedade civil em órgãos revisionais e de controle do órgão. Ações afirmativas e reserva de vagas também seriam um caminho importante para combater a elitização do órgão e garantir uma real oxigenação no seu funcionamento.

Reconhecidas as deficiências e as possibilidades de avanços, constata-se que a PEC 5 não oferece qualquer saída para a democratização do Ministério Público. O que se busca é o enfraquecimento do próprio papel da instituição, sem haver qualquer reflexão sobre as questões que eu levantei acima. E não me refiro à ideia de um código de ética, que sistematizaria as condutas e infrações já previstas em lei. O código é importante e bem-vindo, embora tenha um caráter redundante (a previsão legal já existe) e não precise de emenda constitucional. Refiro-me muito mais à intervenção política que se pretende realizar na corregedoria da instituição.

Assistimos, na tramitação atropelada do projeto, ao mesmo método adotado na Câmara dos Deputados em projetos como o da grilagem, licenciamento ambiental e matéria indígena: pouca discussão, textos que são muito alterados em dias e horas — prejudicando a própria compreensão da proposta — e a formação de maiorias à base de pressões políticas distantes do debate argumentativo.


Maiorias ocasionais 

Além da forma de tramitação, a priorização do tema no momento em que assistimos à erosão das instituições democráticas torna os seus efeitos ainda mais danosos. Nesse ponto, é uma pena que se tenha aderido à lógica da presidência da Casa, como se um acerto de contas com o Ministério Público pudesse ocorrer sem a realização de audiências públicas com a sociedade e sem pensar nas suas boas atuações.

Quanto à proposta em si, a lógica de subordinação do poder disciplinar no CNMP à agenda das maiorias ocasionais do Congresso vai atingir justamente as boas atuações do Ministério Público em direitos humanos. Temas caros como a defesa dos trabalhadores, a pauta socioambiental e a defesa da ordem jurídica poderão ser prejudicados. A atuação da corregedoria deve ser técnica e discreta, e em nenhuma instituição ela está submetida à dinâmica da política. Veja bem: não se trata de demonizar ou criminalizar a política, mas entender que a autoridade responsável por impulsionar processos disciplinares esteja blindada quanto a interferências do Congresso.

Não dá para negar que o Ministério Público precisa ser discutido, criticado e escrutinado. A instituição deveria entregar muito mais à sociedade, sobretudo no campo da promoção de direitos. Mas a PEC 5 não pretende nada disso. Ela quer limitar a autonomia do órgão para garantir o controle pelos grupos majoritários do Congresso Nacional. Entendo os críticos, mas devemos pautar o debate pelo desenho institucional do MP, e não por intervenções casuísticas no seu funcionamento.

*Mestre em Direito Público pela UERJ e doutorando em Direito Público, especialista em política e sociedade no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ (IESP/UERJ). É membro do Ministério Público Federal desde 2012, com atuação nas Procuradorias da República no Amazonas, Volta Redonda (RJ) e São João de Meriti (RJ). Atualmente, atua na Procuradoria da República no Rio de Janeiro (RJ). É coordenador do Grupo de Trabalho Prevenção de Atrocidades Contra Povos Indígenas (6ª Câmara do MPF), do Grupo de Trabalho Reforma Agrária e Conflitos Fundiários (PFDC/MPF) e do Grupo de Trabalho Povos e Comunidades Tradicionais (CNMP). Foi juiz federal, membro da Advocacia-Geral da União (AGU) e servidor do MPF. Autor de “Direitos territoriais indigenas: uma interpretação intercultural” e “Ministério Público e movimentos sociais: encontros e desencontros”.

* Mani Ceiba (Fernanda Vaz) é desenhista, ilustradora, ceramista. Artista plástica formada pela EPA e faz bacharelado em artes visuais. Faz parte do coletivo Pavio Curto. Membro da direção do grupo de artes borboletadágua.

As profissões da saúde e o SUS

 Por Sylvio da Costa Jr. 


A implantação de um sistema de saúde universal obrigatoriamente precisa de um grande contingente de trabalhadores para efetivação desse modelo assistencial. Assim, o debate sobre a formação de recursos humanos no SUS dialoga ora com o mercado de trabalho de cada profissão e sua organização, e ora com a formação dessa mão de obra para operar essa nova política. Nesse modelo assistencial universal, implantado desde a Constituinte, e permeado pela lógica da equidade, ofertando mais a quem mais precisa, é imperativo que o Estado não apenas organize a oferta de serviços à saúde, mas também a formação profissional e seu mercado de trabalho. Mas não foi esse o caminho que os atores políticos trilharam.


Quero deste modo abrir o debate nesse texto sobre a formação acadêmica e do mercado de trabalho na Saúde, que forma e informa os verdadeiros operadores do sistema de saúde, aqueles que efetivamente fazem o SUS acontecer no dia a dia das comunidades e da vida das cidades.


Os reformistas da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e os parlamentares constituintes, em 1988, promoveram uma fundamental transformação no modelo assistencial, porém não reformaram na mesma intensidade a formação e o mercado de trabalho na Saúde. Dito em outras palavras, mudamos o modelo de saúde do INAMPS para o SUS, demos um cavalo de pau na organização dos serviços, mas não fizemos o mesmo na formação acadêmica desses operadores da política e nem seguimos uma lógica racional na abertura de novos cursos de graduação, principalmente no setor privado. Mudamos o modelo assistencial, mas é necessário muito mais que isso.


Mesmo com a efetiva implantação do SUS continuamos a promover a formação de trabalhadores no modelo pedagógico pré-SUS, pré-Constituição de 1988. As mudanças mais significativas na grade curricular remontam do governo Lula, em 2006, 20 anos depois da 8ª Conferência de Saúde e 16 anos após a aprovação das leis orgânicas da saúde, em 1990. Referente à formação, vemos ainda a ênfase em matérias clínicas e cadeiras como interação comunitária em segundo plano na formação dos alunos. Disciplinas com ênfase no SUS que deveriam ser cadeiras estratégicas e transversais a todas as matérias em diversas oportunidades se vêem como disciplinas exóticas e escanteadas dentro dos Departamentos. Afinal, não é função fundamental da universidade pública a formação de mão de obra para o SUS? Se não é, deveria ser.


Mercado imaginário 

Mesmo nos dias atuais as cadeiras voltadas à formação de mão de obra para o SUS são objeto de atrito dentro dos Departamentos dos cursos de graduação onde ainda a formação é baseada no micro especialista, em disciplinas clínicas, formando trabalhadores para o setor privado em um mercado de trabalho que não existe mais. Esse modelo hegemônico na formação sofre uma profunda crise pedagógica, pois o aluno em final de curso, que passou sua graduação inteira se preparando para um mercado de trabalho imaginário, ouve de seus pares recém formados que a realidade pós-universidade é distinta, quase oposta, a miragem que apresentam na formação micro especializada.  Isto acontece não apenas nos cursos privados, mas também nas universidades públicas financiadas com os recursos públicos, oriundo de impostos, de todos os brasileiros, da empregada doméstica e do auxiliar de pedreiro ao empresário de multinacional.

A fantasia capitalista e liberal acredita que o mercado, uma vez livre, se auto regula e que o equilíbrio entre demanda-oferta podem harmonizar, equalizar os interesses sociais. Esse pensamento liberal no campo da saúde causou uma total desorganização no mercado de recursos humanos no SUS. Durante os anos 90, nos governos FHC, ocorreram dois movimentos claros: de um lado o sucateamento das universidades públicas, com cortes de orçamento e atrasos de repasses, e por outro lado a abertura de cursos de graduação sem qualquer critério significativo entre as universidades privadas, o que levou, na prática, a privatização da demanda. Na histeria privatista dos anos FHC, como não havia força política para privatizar as universidades públicas, se privatizou a demanda, induzindo vestibulandos a ingressarem na recém enxurrada de universidades privadas que abriam cursos dos mais variados na Saúde. Esse movimento levou a um verdadeiro desastre na saúde.

Todo ano, dentistas, psicólogos, nutricionistas e enfermeiros, por exemplo, recém formados, inundam o mercado de trabalho sem qualquer possibilidade desse mercado absorver essa mão de obra gigantesca. O que leva à formação de um exército de reserva, uma pletora profissional, que rebaixa as condições de trabalho e salariais dos trabalhadores que conseguem se estabelecer nesse precário cenário. Dito em bom português, o mercado oferece R$4.000 de salário por 40 horas semanais. Mas a pletora profissional é tão grande que se oferecessem R$3.000 pelas mesmas 40 horas semanais também haveriam candidatos a trabalharem nessas condições. E a cada ano milhares de trabalhadores da Saúde são lançados no mercado de trabalho aumentando essa pressão por emprego. Nesses termos, nem o SUS, nem o setor privado absorvem a todos.


Corporativismo

A medicina, diferente das demais profissões na área da saúde, seguiu um caminho diferente, porém nada exemplar. O que efetivamente movimentou a classe médica foi seu espírito corporativo, e nada mais que isso. Para criar uma reserva de mercado (e não um exército de reserva, como a maioria das profissões da área), controlando através de pressão política de suas organizações de classe a abertura de cursos de graduação, levando a um cenário onde não há médicos para todos. Como isso, em diversos municípios do país, o fato da reserva de mercado se impõe de maneira cruel, com médicos fazendo, muitas vezes, uma verdadeira chantagem com gestores municipais onde verifica-se um verdadeiro leilão por altos salários. 

Nesse campo de batalha estabelecido na profissão médica o Estado se faz de sonso e finge não ver o óbvio, sendo assim conivente com as corporações médicas. Vale destacar que, por mais que reforcemos a importância da multidisciplinaridade no campo da Saúde, a medicina é uma profissão fundamental na assistência à saúde e, mais que isso, uma profissão socialmente necessária, pois quando o filho está doente ou quando uma dor aguda acomete a pessoa o povo quer o cuidado médico, o povo quer uma consulta com seu médico, quer ouvir da boca de seu médico de família o que ele ou seu familiar querido tem. 


Mais médicos

Uma exitosa experiência, onde o Estado chama para si a responsabilidade referente ao cuidado médico, aconteceu no Programa Mais Médicos pelo Brasil (PMM), onde pessoalmente trabalhei no início do programa, nos anos de 2014 e 2015. Em 2014, o Ministério da Saúde (MS), sob comando do Ministro Alexandre Padilha, uma pessoa que conheci no período que trabalhei no MS (de 2010 a 2015), e admiro como sanitarista e político, lançou o programa acima citado. O PMM trabalhava em três eixos fundamentais: o provimento médico, com a contratação e lotação de médicos em vazios assistenciais, não apenas nos sertões e grotões do Brasil, mas também em vazios dentro das grandes cidades como Rio e São Paulo; a organização da abertura de vagas em programas de residências médicas e a unificação do cadastro de especialidades. 

Esses três eixos dialogam fortemente entre si como a Santíssima Trindade para os cristãos, onde um eixo isoladamente não tem sentido sem o outro. Assim como na Trindade, só se consegue explicar o Filho explicando também o Pai e o Espírito, assim sucessivamente. Não preciso nem utilizar muito a língua de Luís de Camões para explicar a reação enlouquecida das corporações médicas. Teve desde cuspe, arremesso de ovo e ameaças de agressões físicas em médicos estrangeiros nos aeroportos até intimidação em locais de trabalho. Tudo isso sob o apoio e patrocínio das corporações. Uma verdadeira loucura.

Resumindo: as profissões da saúde de nível superior se dividem entre aquelas que tem gente demais e as que tem gente de menos. Tá certo isso? Sem falar na formação...

Não é possível uma efetiva implantação de um sistema de saúde universal sem alterar a organização de um conjunto de ações paralelas à assistência em saúde. Houve nos governos petistas ações nesse sentido, como a reforma curricular ou como o PMM, que obviamente foram sepultados com o golpe de 2016. O atual governo, de Jair Bolsonaro, incompetente na gestão dos negócios e interesses de Estado Brasileiro, e desprovido de compromisso social, tem ojeriza ao SUS. Haja vista a implantação do Previne Brasil, que tem como escopo diminuir o sistema de saúde para um sistema residual, ou ainda a gestão catastrófica do MS durante a pandemia que teve como efeito prático, além de mais de 600 mil mortos, a tentativa de desmoralizar o SUS diante da opinião popular, colocando um general despreparado como Ministro, que antecedeu e sucedeu médicos do mesmo nível.

Qualquer tentativa de alterar interesses corporativos, de interferir em negócios de conglomerados da educação privada ou de mudar o status quo das universidades passa necessariamente por decisões de governo e por opções políticas. Para alterar o caminho que o SUS trilha desde 2016 é necessário mudar o atual Governo Federal, de cunho fascista, e afastar de maiores ambições eleitorais os pescadores de águas turvas, como João Dória e Eduardo Leite. Que são semelhantes a Bolsonaro em sua essência, apenas usam sapatênis e comem de garfo e faca.

Derrota de Bolsonaro em 2022 não acabará com o bolsonarismo

 


Texto Marlucio Luna

Ilustração Cacinho


Salvo uma catástrofe de proporções apocalípticas, as eleições de 2022 provavelmente marcarão o fim do ciclo de Jair (o falso) Messias Bolsonaro à frente da Presidência da República. O país levará décadas para se recuperar dos estragos causados pelo miliciano nas áreas econômica e social. Derrotar o Rei das Rachadinhas é a tarefa menos complexa. O maior desafio para o próximo ocupante do Palácio do Planalto será derrotar não capitão, mas o bolsonarismo — essa variação tupiniquim do fascismo, que mistura aporofobia, racismo, misoginia, lgbtfobia, fundamentalismo neopentecostal, interesses econômicos e uma boa dose de oportunismo canalha por parte dos militares.

Uma parcela significativa do eleitorado brasileiro — que, dependendo da pesquisa, varia entre 20% e 25% — permanece fiel a Asmodeu e aos desvarios cometidos por ele na condução do país. Desemprego recorde, 600 mil mortos na pandemia, elevação dos níveis de miséria, fome, corrupção, fake news e ameaça de recessão econômica parecem não ser suficientes para afastar a horda fascista de seu líder. O contingente de seguidores está consolidado em um patamar extremamente perigoso, o que coloca em risco a democracia e os avanços sociais conquistados a duras penas nas últimas décadas.

Os setores democráticos da sociedade ainda menosprezam o risco representado pelo bolsonarismo. Em uma análise com a profundidade de um pires, preferem encarar esse fenômeno político e social como se fosse apenas fruto da despolitização ou de um momento de crise econômica e política. Tal leitura incorre nos mesmos erros cometidos durante a ascensão de Mussolini na Itália e de Hitler na Alemanha. Ambos eram vistos como bufões, capazes de atrair parcelas pouco representativas das sociedades em que estavam inseridos. Deu no que deu.


Presença no cotidiano

A matéria-prima do bolsonarismo sempre esteve presente na sociedade — e, por mais difícil que seja admitir — e no cotidiano de todos nós. O futuro bolsominion nos acompanhava nas reuniões familiares, no trabalho, na escola ou faculdade, nas peladas de fim de semana. Podia ser visto ao volante dos táxis e dos carros de aplicativo. Era aquele tio que se comprazia com piadas racistas; o colega que, entre uma aula e outra, defendia a pena de morte e criticava a mais simples menção a direitos humanos; o conhecido que se recusava a participar de qualquer mobilização puxada pelo sindicato e acusava a representação dos trabalhadores de ser “coisa de comunista”; ou o parceiro de futebol que considerava normal tratar as mulheres com desrespeito. 

Os bolsominions estiveram o tempo todo ao nosso lado. Nós os subestimamos, classificando-os como “malucos”, “equivocados” ou simplesmente alguém que não merecia ser levado a sério — no máximo, motivo de chacota nas rodas de conversa. A partir de 2017, com a estruturação das redes de disseminação de fake news e a preparação da campanha eleitoral do ano seguinte, a manada de idiotas encontra canais para expressar o seu fascismo latente. Logo percebem que não são poucos. Passam a exibir aquilo que costumo definir como “ignorância ostentação”. Desaparece qualquer sentido lógico de argumentação. A negação da ciência, a mentira disseminada em larga escala, a religiosidade extremada, a defesa de valores superados há muito pelo processo civilizatório e a crença em uma suposta superioridade moral servem de base para o discurso vazio dos seguidores do Presidente Cloroquina.

A filósofa Márcia Tiburi escreveu um livro intitulado Como conversar com um fascista, no qual ela propõe estratégias de diálogo com justamente aquele que despreza o diálogo. Creio que ela não obteve sucesso, pois recebeu ameaças de morte e precisou sair do país. Este é apenas um exemplo de ingenuidade por parte de alguns setores do espectro político progressista. O fascista interdita qualquer canal de debate, pois apenas o ponto de vista dele deve prevalecer. Se tiver oportunidade, aniquila seu oponente e ainda se vangloria disso.

Militância de base

Então, o que resta às oposições do campo progressista fazer, já que não há possibilidade de diálogo com um bolsonarista raiz? Principalmente, rearticular os espaços de organização e mobilização da sociedade. Sindicatos, associações de moradores, grupos representativos das minorias (que hoje são maiorias) e entidades dos mais variados movimentos sociais precisam trabalhar arduamente para conter o avanço do fascismo. Retomar a boa e velha militância de base é o caminho para o despertar da consciência de classe. Não é o mais fácil, porém é o que garante resultados concretos.

As eleições de 2022 podem servir como polo aglutinador das lutas em defesa da cidadania plena. A questão é que ela deve ir além da mera disputa eleitoral. Reconstruir as bases de intervenção dos setores organizados da sociedade se coloca como ação vital para o enfrentamento com o bolsonarismo. Não há como repetir o erro de estimular apenas a criação de “consumidores”. É preciso apostar na formação de “cidadãos” capazes de compreender a dimensão dos seus direitos e a necessidade de defendê-los de ataques fascistas.

As mobilizações de 2 de outubro mostraram que ainda há uma longa caminhada pela frente. Mesmo com o relativo sucesso das manifestações, constatou-se que o campo progressista continua pregando para convertidos. Como pontapé inicial, valeu. No entanto, há urgência em ampliar os níveis de participação popular. O próprio modelo definido para os atos merece uma revisão. A sucessão de oradores repetindo os mesmos chavões, slogans e informações torna os atos enfadonhos e afasta quem não dispõe de um mínimo de formação política.

Enfrentamento

Aquele que derrotar Bolsonaro em 2022, seja quem for, encontrará um país destroçado. A população cobrará respostas rápidas para os problemas do desemprego, da fome e da falta de investimentos públicos. Muitas ações governamentais demorarão a surtir efeito. Nesse hiato, mora o perigo. O bolsonarismo vai se aproveitar da situação e voltar às ruas com suas camisas da CBF, dancinhas idiotas e discursos raivosos — isso sem falar na manutenção do discurso de ódio disseminados em grupos de WhatsApp, canais de YouTube e perfis falsos nas redes sociais. Esse será o momento do enfrentamento entre o campo progressista e a turba liderada por milicianos, pa$tore$ neopentecostais, militares entreguistas, latifundiários, grileiros, especuladores, oportunistas interessados em reconquistar espaços de atuação política e outros tipos de criaturas desprovidas de caráter.

Caberá ao campo progressista privilegiar o trabalho de militância nas bases, disputar o espaço de ação política nas favelas e periferias, no campo e na cidade. É possível conter e reverter o avanço da extrema direita em todo o país. Para tanto, basta sair às ruas e militar. É simples, mas dá trabalho.


Não é a PEC 5 que politiza o CNMP e, sim, é o MP que politiza a PEC

 Por Paulo Teixeira*



Preocupado com o corporativismo do Conselho Nacional do Ministério Público, propus, juntamente com um conjunto de parlamentares, a PEC - Proposta de Emenda Constitucional n. 5, tratando de alterações visando a aperfeiçoar e oxigenar esse importante órgão da República.

Todavia, o que era para ser uma legítima iniciativa do Parlamento – afinal, os Poderes da República são, pela ordem, Legislativo, Executivo e Judiciário – acabou se transformando em um palco político, por meio do qual o Ministério Público superestima e dramatiza as alterações e minimiza os benefícios republicanos, chamando a proposta de “PEC da Vingança”, “PEC da Revanche”, “querem acabar com o Ministério Público”, discurso que não se coaduna com a própria história das relações entre Parlamento e a Instituição.

Qual seria a revanche? Pelos quarenta adiamentos do julgamento do procurador Dallagnol? Vingança contra a notória dificuldade de se punir agentes que abusam de seu poder?

Sabe-se que a criação do CNMP e do CNJ foram conquistas da sociedade. Aliás, foram obras de projetos advindos do governo Lula.

O CNMP, a olhos vistos, necessita ser aperfeiçoado. Diferentemente do judiciário, o Ministério Público possui hierarquias. Por exemplo, não existe um Ministério Público Nacional, como o é o Poder Judiciário. Consequentemente, é necessário que a composição do CNMP seja “desministeriada”, por assim dizer, abrindo-se à sociedade.


Desproporcional

A reação às alterações propostas pela PEC se mostra absolutamente desproporcional. Quando mais a sociedade precisa de um órgão que estabeleça limites ao autoritarismo político-institucional do Ministério Público, mais se percebe o modo como o CNMP coloca obstáculos à verificação das faltas funcionais dos membros do MP. Desnecessário elencar o rosário de críticas que se acumulam ao CNMP durante esses anos todos.

O parlamento percebeu esses déficits institucionais. E, no seu papel, apresenta a PEC que propõe corrigir disfuncionalidades do órgão. Mantendo o seu cerne estrutural, o parlamento traz consistentes alterações, como a composição, retirando, em parte, o caráter classista, agregando mais dois membros externos. Ainda assim, a maioria do CNMP é composto de membros do MP. Disso não se fala.

Parece evidente, a qualquer democrata, que a oxigenação de um órgão deve ser bem vista. Surpreende, assim, que a desproporcional campanha midiático-corporativa apresente a PEC como uma tentativa de retirar a independência do MP ou de esvaziar suas tarefas institucionais. Outra vez, dicotomicamente se opõem interesses corporativos às tentativas de trazer mais controle e transparência.

Por acaso, o MP desconfia do Parlamento, ao criticar tão fortemente as duas vagas que a PEC introduz? E qual é o problema em esse mesmo Parlamento indicar, entre os membros do CNMP, ex e atuais, o Corregedor do órgão? O próprio sentido de “corregedoria” se apresenta mais transparente se o cargo não for reservado a um membro do MP.

Autocrítica

Um dos pontos que mais causa protestos é, veja-se, uma matéria constitucional. Com efeito, diz que compete ao CNMP rever, em grau de recurso, as decisões dos Conselhos Superiores sempre que negarem vigência ou contrariarem a CF, a tratados ou as decisões normativas do próprio órgão. Ora, os Conselhos tratam de matéria do âmbito administrativo. Todos sabemos das dificuldades de judicialização de decisões ilegais-inconstitucionais dos órgãos colegiados do MP. Daí a previsão de recurso ao CNMP. De quem se terá medo?

Do mesmo modo, apresenta-se saudável o poder de o CNMP fiscalizar os atos dos agentes do MP que utilizam o cargo para intervir na ordem pública – leia-se: politização da Instituição. Exemplos não faltam.

São todos pontos que, antes de serem repudiados, deveriam servir para que o próprio MP faça uma autocrítica. Analisando todas as objeções à PEC, percebe-se justamente o contrário do que se diz, isto é, não é a PEC que politiza o CNMP; é o Ministério Público que politiza a PEC, blindando a Instituição de controles externos absolutamente necessários na democracia, evitando a formação de “repúblicas autônomo-institucionais”, imunes a punições e, quiçá, a fiscalizações mais isentas.


*advogado, deputado federal (PT-SP) no quarto mandato e secretário geral do PT


Qual e como será visto o Brasil na COP 26


 Conferência das ONU sobre mudanças climáticas

Por Nilo Sergio S. Gomes*

O Brasil se aproxima das eleições de 2022 e há bem mais indefinições do que certezas. Apesar das pesquisas indicarem dados que permitem construir cenários mais definidos, as incertezas estão bem presentes também. A começar pela indagação se o país conseguirá chegar íntegro até lá, sem convulsões ou arroubos que transtornem e interfiram nos cenários até aqui possíveis de se desenhar. 

Uma pergunta inquietante é: qual Brasil chegará até à COP 26, antes, portanto, das próximas eleições, em 2022? 

A princípio se tem como certo que não haverá golpes ou impedimentos do processo democrático, tão penosamente conquistado após décadas de uma ditadura militar que instaurou o terror e lacrou as urnas. Mas, após um período de pleno exercício da democracia, o país mergulhou no obscurantismo que marca os últimos anos e que poderá ter fim com a volta às urnas, caso não se eleja, novamente, uma liderança que, na prática, se caracteriza por negar a ciência e seus incontáveis benefícios à humanidade, especialmente, às populações mais pobres. 


Amazônia

No Brasil a área de meio ambiente ganhou mais relevância em meados dos anos de 1990, tendo mudado de nome algumas vezes, mas retornando à denominação de Ministério do Meio Ambiente em 1999, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Hoje suas atribuições estão diluídas, o mesmo ocorrendo com suas responsabilidades, visto as queimadas na Amazônia, recentemente, e o aumento explosivo das favelas nas grandes cidades, para onde vão milhares de pessoas em busca de emprego e de melhores condições de vida. 

A Amazônia é considerada, mundialmente, como um santuário da flora e da fauna brasileiras, mesmo sofrendo a ação dilapidadora do garimpo ilegal e do extermínio de sua gente, especialmente os povos primitivos, reconhecidos como indígenas de diferentes etnias e origens. 

As favelas, por sua vez, abrigam milhares de trabalhadores, desde aqueles com carteira assinada e que atuam na chamada economia formal, aos que estão na informalidade, prestando serviços de todo o tipo e sem qualquer garantia de direitos, como 13º salário, Previdência Social, aposentadoria e férias. 

Mas qual Brasil estará na COP 26? Será o Brasil das chamadas “Fake News”, em que o país é apresentado como modelo exemplar de atenção com o meio ambiente, ou o Brasil verdadeiro, incapaz de cuidar de sua gente e de preservar suas riquezas naturais, em especial, a Floresta Amazônica? 

Joguem suas fichas, pois o jogo já está sendo jogado. 

* Jornalista, professor e pesquisador