domingo, 21 de maio de 2023

Sobre a memória, Stuart e o bolsonarismo no Flamengo

 

Cid Benjamin*



Na última segunda-feira, dia 8 de maio, o Ministério Público Federal pediu, oficialmente, à diretoria do Flamengo, informações sobre o paradeiro de uma placa em homenagem a Stuart Angel Jones, ex-remador do clube e militante político contra a ditadura, morto na tortura na base aérea do Galeão, no Rio de Janeiro.

Os restos mortais de Stuart nunca foram encontrados. Em setembro de 2019, seu assassinato foi reconhecido num atestado de óbito que caracteriza a morte como “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistêmica e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”.

Agora, o MP deu dez dias para o clube informar o que foi feito da placa. Desde 2010, ela estava num memorial na sede de remo do Flamengo, na Lagoa, como parte de um projeto intitulado Lugares da Memória. Foi retirada de lá em 2016, quando foram realizadas obras no local.

Além disso, os procuradores regionais dos Direitos do Cidadão Jaime Mitropoulos, Júlio José Araújo Junior e Aline Caixeta lembraram ao presidente do Flamengo que constitui obrigação do Estado e direito da sociedade o resgate e a preservação da história de mortos e desaparecidos durante a ditadura militar, incluindo a conservação e a restauração de monumentos alusivos `repressão política.

Segundo afirmaram os procuradores, esta é “uma forma de garantir às gerações futuras o direito de conhecer as violações sistemáticas dos Direitos Humanos praticados pelo Estado, de modo a prevenir, inibir ou, pelo menos, mitigar as chances de que voltemos a repetir no futuro as violações já cometidas no passado”.

Lembrou também o MP que cabe aos agentes públicos e particulares responsáveis pelos bens relacionados à preservação da memória prestarem informações que possam auxiliar na sua localização.

O Ministério dos Direitos Humanos se somou a esse esforço e tem um projeto de reinauguração da placa. Por meio de Nilmário Miranda, assessor especial de Memória e Verdade, também intimou o clube para que informe seu paradeiro. Há suspeitas de que a diretoria do Flamengo, controlada por bolsonaristas, a tenha posto no lixo.

Em reportagem publicada no “Globo” (5/5/2023) e assinada pelo jornalista Chico Otávio, um dos mais importantes repórteres do País, há a informação de que, embora procurada pelo jornal, a diretoria do clube preferiu não se manifestar.

Stuart foi meu companheiro de militância política no movimento estudantil em 1968 e, posteriormente, na resistência armada à ditadura, como integrante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro. Estivemos juntos na primeira ação de guerrilha urbana de que cada um participou, em fevereiro de 1969.

Mais tarde, em abril de 1970 fui preso e, dois meses depois, enviado para o exterior, em troca do embaixador alemão, que fora sequestrado por grupos guerrilheiros. Stuart foi capturado em maio do ano seguinte.

Na ocasião, outro preso na base aérea do Galeão, Alex Polari, o viu ser torturado com choques elétricos, depois de pendurado no pau-de-arara. Testemunhou, ainda, que Stuart foi arrastado pelo pátio do quartel, amarrado ao parachoque de um jipe militar. E atestou ter visto militares colocarem sua boca no cano de descarga do jipe, o que, certamente, o matou pela inalação de monóxido de carbono.

Retomar essa placa e voltar a exibi-la ao público para que as novas gerações conheçam a história de Stuart é parte do esforço para que os chamados anos de chumbo não caiam no esquecimento.

Nós, brasileiros, estamos atrasados na recuperação da memória desse período. Isso é consequência da forma em que chegou ao fim a ditadura militar em nosso país. Ela não foi derrubada, mas saiu de cena num processo que os próprios militares controlaram.

Isso deixou enormes limitações na reconstrução da democracia. Nos nossos vizinhos dificilmente alguém se elegeria presidente da República pregando teses nazifascistas como as que Bolsonaro teve o desplante de sustentar ao longo de sua trajetória política.

Os demais países do chamado Cone Sul desenvolveram iniciativas muito mais expressivas no campo da recuperação da memória. Argentina, Uruguai e Chile construíram importantes museus, com denúncias dos crimes das ditaduras militares. Eles têm ampla visitação e estão sempre cheios de visitantes. Sua existência contribui para que a barbárie não se repita. Além disso, muitos dos principais responsáveis pelos crimes contra os direitos humanos e a humanidade foram levados aos tribunais e condenados, em processos que tiveram ampla divulgação na imprensa.

Homenagear Stuart não é só homenagear um jovem assassinado aos 25 anos por lutar pela democracia e contra a opressão. É homenagear também toda uma geração que jogou a vida e seu futuro em busca da construção de um mundo melhor.

Recuperar a placa com seu nome e reconstruir o memorial é parte da luta para que não se repitam aqueles anos.

E é também mostrar ao País e aos fascistas que hoje dirigem o Flamengo que quem melhor representa as cores rubro-negras não são eles, mas gente como Stuart.

 

*Jornalista

Ilustração: Flamengo Antifacista

Dia da Luta Antimanicomial

 

Angela Monteiro*



No dia 18 de maio comemora-se o Dia da Luta Antimanicomial no Brasil que remete a um longo histórico de lutas importantes como a I Conferência Nacional de Saúde Mental em Brasília em 1987, com o tema “Por uma Sociedade sem Manicômios”, seguido da promulgação da Lei 10.216 - 2001, também nomeada Lei Paulo Delgado e Lei da Reforma Psiquiátrica, marco legal que trata da proteção dos direitos das pessoas com transtorno mental, e redireciona o modelo de assistência no país.

Os chamados manicômios ou hospícios, existiam como espaços de isolamento e depósito de pessoas com transtornos mentais ou marginalizados pelo sistema, permanecendo abandonados e excluídos do convívio familiar e social, sofrendo maus tratos e tratamento desumano, muitos morreram e de lá nunca saíram.

O Movimento da Reforma Psiquiátrica vem de encontro a essa cultura e lógica manicomial e excludente defender um modelo de cuidado em liberdade, com base territorial e comunitária, por equipe multidisciplinar, atualmente realizada pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que tem o ponto estratégico os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Muitos avanços foram realizados em 22 anos para reordenação de uma rede de cuidados e substitutiva ao modelo manicomial, fechamentos de leitos psiquiátricos, expansão de rede de serviços, um movimento que envolveu trabalhadores, usuários, familiares, sociedade civil, ministério da saúde, na consolidação de um política pública de saúde mental, mas sabemos que há muito ainda a ser feito diante dos desafios da atualidade.

E por falar em saúde mental, a quem interessa essa luta hoje?  Quem está livre ou imune à dor existencial, ao sofrimento humano e psíquico, aos momentos de crise?  Será mesmo “coisa de maluco”, de “gente doida”?

O que é ser normal em um mundo com tantas desigualdades, contradições e injustiças sociais, um mundo que destrói sua própria morada, terra e seus habitantes em nome da acumulação de capital, lucro e poder. Que loucura é essa?

O que falar da loucura em uma sociedade que reforça o modelo medicalizante abusivo, o diagnóstico que estigmatiza, o silenciamento de vozes e subjetividades?

Quem acolhe, quem escuta, quem sustenta a crise? De que crise estamos falando? A crise mundial, do sistema? É uma pista.

Uma sociedade antimanicomial é antes de tudo uma sociedade que não segrega, não exclui ou penaliza pessoas que sofrem ou são diferentes.

Antimanicomial é um posicionamento em defesa da democracia, da liberdade, da inclusão e da garantia de direitos humanos, do cuidado humanizado e integral.

A luta é em defesa da vida! E todas as vida importam!

Essa luta não está ganha e por isso mesmo não podemos parar, é sempre bom lembrar que trancar não é tratar. Manicômio nunca mais!

 

*Assistente social - Trabalhadora do Sus no campo da saúde mental há 26 anos, mestranda do Instituto de Medicina Social (IMS)-UERJ

 

Ilustração: Cacinho

Sem anistia para os convivas da Selma

 

Cid Benjamin*



De forma espontânea surgiu nas ruas e nas redes sociais a expressão “Sem anistia”, exigindo punição (com julgamento, claro) para os participantes da intentona do dia 8 de janeiro. Na ocasião, a Câmara dos Deputados, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal foram invadidos e depredados por hordas fascistas num ato terrorista que tinha o nome em código de “Festa da Selma”. O objetivo era forçar uma intervenção militar que abrisse caminho para um golpe.

A expressão “Sem anistia” – que tem como objetivo demonstrar que não se pode contemporizar com aquele ato de natureza golpista – foi usada largamente pelo líder do Psol, Guilherme Boulos, num duro discurso na Câmara dos Deputados na última quarta-feira, dia em que foi aberta a CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) que investiga os acontecimentos daquele dia.

Alguns se perguntaram: não seria mais acertado perdoar os golpistas, de forma a facilitar um entendimento e o esfriamento dos ânimos?

No caso, não.

Não penso que se deva fazer política com ressentimento. Nunca. Mas é preciso ver as coisas sem perder a perspectiva política.

Sidarta Gautama, o Buda, nascido há mais de 400 anos antes de Cristo, já dizia que guardar rancor é como segurar carvão em brasa para jogar num desafeto. “Você é que sai queimado”, ensinava.

Tinha razão.

Depois dele, Pepe Mujica, uma das grandes figuras da atualidade, tem insistido sempre em que o ressentimento é mau conselheiro, tanto na vida, como na política.

Também tem razão.

Por que, então, não anistiar os golpistas de 8 de janeiro?

Porque o fascismo está vivo e tem que ser combatido e extirpado, em defesa dos interesses gerais da sociedade.

Antes de se corromperem os sandinistas tinham uma expressão boa: “Implacáveis na luta, generosos na vitória”.

O exemplo do Vietnã também é ilustrativo. Em janeiro de 1968, as forças que lutavam contra a ocupação norte-americana realizaram a chamada a Ofensiva do Tet. A maior parte das cidades mais importantes foi total ou parcialmente tomada e até a embaixada dos Estados Unidos em Saigon teve uma bandeira vietnamita hasteada em seu terraço. A fotografia correu o mundo inteiro

As forças vietnamitas fizeram grande número de prisioneiros. Os culpados de crimes mais graves foram rapidamente julgados e, muitos deles, fuzilados.

O objetivo da ofensiva não era expulsarem os Estados Unidos naquele momento, mas mostrar à opinião pública mundial e norte-americana a força da resistência e a impossibilidade de os norte-americanos vencerem aquela guerra. Este objetivo foi alcançado.

Seis anos depois, em abril de 1974, os americanos foram obrigados a deixar o Vietnã. Houve também grande número de presos, acusados de terem cometido crimes ao colaborar com a ocupação. A maior parte foi anistiada. A guerra tinha acabado e a situação estava sob controle.

Se o fascismo bolsonarista estivesse morto, os golpistas de 8 de janeiro poderiam ser anistiados. Mas está vivo e continua como ameaça à democracia, aos direitos humanos e à independência nacional. Passar a mão na cabeça dessa gente é criar cobras, correndo o risco de que, daqui a pouco, com seu veneno, ela ameace a nação.

É como dizem os espanhóis, “cria corvos e eles arrancarão teus olhos”.

Por isso, têm razão as ruas quando exigem: “Sem anistia”.

 

*Jornalista

sábado, 1 de abril de 2023

Ocupação não é invasão

 "A ocupação pode ser uma forma legítima de fazer pressão e chamar atenção para o descaso com a Reforma Agrária", afirma Carol Proner


Foto: Tarcisio Nascimento


Por Carol Proner


Do Brasil 247 e MST 


Para tratar de tema tão sensível, e em homenagem às crianças que vivem em acampamentos e assentamentos por todo o país e que lutam, junto de suas famílias, pela terra e por condições dignas de vida e de trabalho, em homenagem às mulheres do campo e o direito a semear, plantar, colher e produzir, em homenagem aos homens camponeses do Brasil e sua força de trabalho em prol de uma sociedade livre da miséria e da fome e em direção à agroecologia, façamos um trato contra a ignorância e a estupidez em matéria de direito à terra.

Ocupação não é o mesmo que invasão. A Constituição Federal de 1988 define o conceito de uso social da terra e os critérios para que seja legítimo, que não degrade o meio ambiente, que não se faça por meio de trabalho escravo ou análogo e que seja produtiva. A ocupação de terras tem sido historicamente a forma pela qual os movimentos camponeses chamam a atenção para este compromisso de direitos fundamentais e da necessidade de que a propriedade venha acompanhada de uma função social. Confundir os dois conceitos propositalmente é uma forma de negar a luta pela terra e os legítimos sujeitos de direito, assim reconhecidos pela Declaração da ONU sobre Direitos dos Camponeses. 

A ocupação pode ser uma forma legítima de fazer pressão e chamar atenção para o descaso com a Reforma Agrária. As ocupações que aconteceram no sul da Bahia, nas terras da maior empresa de celulose do mundo, trouxe ao conhecimento da sociedade um acordo descumprido desde 2011 entre a empresa e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), termo mediado pelo INCRA e que afeta direitos de 750 famílias que aguardam há 12 anos pela cessão das terras. Trazer luz para o caso concreto e também para a desativação das instituições de regulamentação fundiária é parte do papel das ocupações.

As ocupações podem ser uma forma legítima de rediscutir o sentido social da terra. Também o referido caso, já em processo de renegociação, revela aspectos da produtividade da monocultura que devem ser objeto de rediscussão pela sociedade brasileira e pelos órgãos de controle e financiamento público. É o caso da monocultura do eucalipto, cultivo incrementado com o uso de agrotóxicos aplicados inclusive por meio da pulverização aérea, o que gera efeitos indiscriminados de envenenamento. 

Eis a razão pela qual florestas de eucalipto são chamadas “desertos verdes”. Essa foi uma expressão que surgiu no debate a respeito da legitimidade das ocupações. Para que o eucalipto prospere, a mata nativa precisa sair do lugar, acarretando produção de uma só cultura utilizada para desenvolver a indústria moveleira e de celulose. Só a empresa do Sul da Bahia cultiva 3 milhões de hectares de eucalipto, o que forçosamente acarreta brusca redução da biodiversidade no território. Ao mesmo tempo, a cadeia de fauna e flora fica reduzida a uma única espécie exógena, uma vez que o eucalipto não é arvore nativa brasileira e, para agravar o problema específico do agronegócio associado à indústria de celulose, tanto a forma de cultivo como as substâncias utilizadas para intensificar a produção desgastam o solo e comprometem a recuperação de futuras florestas nativas. Existem soluções para aplacar efeitos nocivos, saídas da ciência e da tecnologia, mas diante dos efeitos devastadores e da imposição acrítica do agronegócio como única saída econômica, as ocupações de luta pela terra cumprem o papel de denunciar e despertar a reflexão da sociedade a respeito dos meios e métodos produtivos predominantes incentivados (por renuncias fiscais ou financiamento) diante da realidade de 33 milhões de pessoas que passam fome no Brasil.

Em meio ao debate, cresce o entendimento do que seja Reforma Agrária Agroecológica. Os movimentos pela terra, o MST em particular, têm defendido que a luta histórica pela Reforma Agrária seja substituída pela Reforma Agrária Agroecológica, compreendida nas dimensões da produção do alimento saudável e sustentável para toda a sociedade brasileira, isso em contraposição ao agronegócio. O debate inclui, além do acesso à terra como um direito humano, também a produção de alimentos salubres e livres de agrotóxicos, a defesa das formas de vida e trabalho no campo, o papel da mulher camponesa, a forma de organização em cooperativas da agroecologia, a riqueza da (bio)diversidade alimentar, a soberania alimentar, o combate à fome e tantos outros conceitos e efeitos de um debate responsável e consequente. 

O que esperar do temido Abril Vermelho? É notável a desinformação provocada por setores da imprensa e meios especializados que repercutem intolerância e preconceito contra camponeses e suas lutas. Mesmo involuntariamente, a desinformação estimula promessas de violência, atos potencialmente criminosos cogitados por fazendeiros com respeito ao uso de armas de fogo contra militantes. 

No histórico mês de mobilização pela Reforma Agrária, conhecido como Abril Vermelho em memória do Massacre de Eldorado dos Carajás, o MST atualiza as pautas de luta em 2023: repúdio aos agrotóxicos, fim do desmatamento, oposição à aprovação do novo Código Florestal em trâmite na Câmara dos Deputados e reconstituição dos canais estatais (Incra e outros) para finalmente viabilizar o assentamento de mais de 100 mil famílias que aguardam pelo acesso à terra. 

Conhecer o contexto dos enfrentamento e das ocupações é condição elementar de respeito à luta dos trabalhadores rurais do país, além de ser um dever legal e uma oportunidade de estimular a produção de alimentos saudáveis como alternativa ao envenenamento cotidiano ao qual estamos submetidos. 


* Jurista, advogada e articulista. É professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fundadora da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e integrante do Grupo Prerrogativas.

Doutora em Direito, professora da UFRJ, diretora do Instituto Joaquín Herrera Flores – IJHF 

domingo, 14 de agosto de 2022

Por justiça histórica, ambiental e climática para todos

Por Sônia Guajajara*

O Brasil é um país com cerca de 900 mil indígenas, segundo o tão defasado Censo de 2010. Ou, seja, considerando a subnotificação que assombra os dados sobre indígenas no Brasil, somos, em verdade, muitos mais. Possuímos o maior número de comunidades indígenas das Américas, a maior quantidade de indígenas isolados do planeta - e, ainda assim, levamos 518 anos para ter uma mulher indígena concorrendo em uma chapa à presidência da República. Isso, por si só, já evidencia a importância da luta que há mais de meio século travamos para garantir nossos direitos.


Nas últimas eleições municipais, em 2020, tivemos o maior número de candidaturas indígenas de todos os tempos. Num trabalho conjunto de articulação com representantes alinhados à luta do movimento, elegemos 237 indígenas: Um marco histórico e fundamental na busca por diversidade e protagonismo - mas, ainda assim, um passo pequeno frente à grandeza das pautas que historicamente balizam e direcionam nossa luta. 

Desde que o Brasil se entende como tal, os povos indígenas nunca foram prioridade de nenhum dos governos; desde antes da proclamação da República até a constituição da Nova República, as demandas do nosso movimento sempre encontraram entraves, quer sejam devido à falta de representatividade nos órgãos institucionais, quer sejam por pressão de setores antidemocráticos - tal como é o caso do agronegócio. Porém, com a eleição de Jair Bolsonaro - um governo declaradamente anti-indígena e antidemocrático - a situação alcançou outro patamar, pois tais entraves se tornaram políticas públicas. Assistimos, cotidianamente, ao agravamento da destruição dos nossos biomas; atingimos níveis alarmantes de desmatamento, queimadas e secas; o extrativismo e o garimpo ilegais avançaram à despeito da lei ou, até mesmo, respaldados pela aprovação de normas inconstitucionais. A violência contra a natureza tornou-se regra e acometeu também nossos territórios, nossos corpos e tenta, cotidianamente, calar nossas vozes. Vivemos sob um governo da morte, sustentado sobre os pilares do genocídio, do ecocídio e do epistemicídio: Um descaso com os direitos dos povos originários, dos quilombolas, das populações em desalento, em risco e que, historicamente, sempre sofreram com a opressão, a violência e a falta de acesso a seus direitos.

É neste cenário que se dará esta eleição - e é por isso que se faz tão importante garantir representantes indígenas que busquem garantir e defender nossos direitos. Não basta mais sermos representados, queremos ser representantes. Quando o governo brasileiro se propôs, minimamente, a dialogar conosco por meio da Comissão e do Conselho Nacional de Política Indigenista o Brasil passou a ser mundialmente reconhecido pelo seu esforço e inovação na proteção socioambiental. Esse diálogo foi bruscamente interrompido pelo atual governo. Isso porque não há ninguém que compreenda mais do que nós o que precisa ser feito para a preservação ambiental e para a busca pela justiça climática. É assim que se inaugura uma ousada e necessária proposta: a de eleger a Bancada do Cocar.  Minha candidatura como deputada federal por São Paulo, assim como a de outras irmãs por todo o território brasileiro, visa cumprir este papel que a História a nós atribuiu - não como sujeitos em busca do cumprimento de um projeto pessoal, mas como agentes históricos comprometidos com um projeto coletivo de aumentar a quantidade de indígenas no Congresso Nacional, trazendo nossas vozes, demandas e contribuições para a construção de um futuro mais plural, mais democrático, mais rico, mais integrado e mais envolvido com as demandas concretas do Brasil. Estamos espalhados pelos quatro cantos do país, com candidaturas comprometidas com as causas populares e com as reais necessidades do povo brasileiro, articuladas com a sociedade em um grande movimento - é o que estamos chamando de “aldear a política”. 

A busca exclusiva por lucro e o uso desenfreado dos recursos naturais nos trouxe ao cenário atual. Mais do que justiça ambiental, acredito que nossa luta é por justiça climática: A população periférica, os povos originários e comunidades ribeirinhas são as mais vulneráveis aos efeitos do clima e, para isso, basta ver quem são os mais vitimados por eventos extremos pelos quais estados como São Paulo, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, entre outros, passaram. Em São Paulo, somente no último ano, os desabamentos e soterramentos cresceram 18,3%, sempre em áreas periféricas. É fundamental entendermos que a vida humana e a natureza são a mesma coisa. Não podemos naturalizar dados absurdos como os que São Paulo tem apresentado: 4,4 milhões de paulistas não têm acesso à coleta de esgoto e cerca de 1,5 milhão de paulistas não têm acesso à água. Isso é inadmissível em um estado com um dos maiores IDHs do país.

São Paulo, particularmente, tem participação fundamental nesta batalha. Este é um estado que carrega muitos atributos fundamentais - entre eles, sua capacidade de inovação e o potencial de preservação e restauração de seus próprios biomas. Por se tratar do estado com maior concentração de poder econômico da nação, o potencial de influenciar na proteção da Amazônia, nossa principal aliada no combate à crise climática, é gigantesco.

Acredito, também, que a solução para a emergência climática passa pela conscientização do povo brasileiro do modo de vida que vem levando. Não é justo que se coloque sobre nós, povos indígenas, a responsabilidade de salvar a humanidade da crise climática e social em que vivemos - duas crises intrinsecamente ligadas e que se retroalimentam! É igualmente injusto que a população historicamente excluída dos bônus do crescimento econômico seja a mesma que arque com seus ônus. É passada a hora que o Estado e que nossos parlamentares compreendam o momento histórico e a responsabilidade que carregam, tendo todas essas questões em vista.

Por tudo isso, é primordial assegurarmos mais representatividade indígena no Congresso Nacional. Aldear a política nacional é nosso maior trunfo para contribuir com a proteção da vida de todas e todos; a criação de uma Bancada do Cocar, nossa maior ferramenta!



* Nascida em 1974,  filha de pais analfabetos, Sônia Bone é do povo Guajajara/Tentehar, que habita as matas da Terra Indígena Araribóia, no Maranhão. Separada, é mãe de três filhos; Luiz Mahkai, Yaponã e Y’wara. Liderança indígena feminista, Sônia é professora do ensino fundamental e auxiliar de enfermagem, tendo cursado o ensino superior na UEMA ( Universidade Estadual do Maranhão), onde graduou-se em Letras e pós-graduou-se em Educação Especial. 

Em quase duas décadas de luta pelos direitos das populações originárias, ocupa cargos de destaque em diferentes organizações e movimentos. Entre eles, a Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (Coapima), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), onde é coordenadora executiva.

Em 2018, aos 44 anos, foi a primeira mulher indígena a concorrer numa chapa à presidência da República, junto com Guilherme Boulos. No atual processo eleitoral, é candidata a deputada federal em São Paulo pelo PSOL.  


Foto: Leonard Okpor 

Inverdades e mentiras: eleições e o lugar do Parlamento

Por Eduardo Alves


O “poder legislativo” (assim instituído na Constituição Brasileira) é o mais convidativo para tecer e entrelaçar inverdades com mentiras. E, na Constituição de 88, o artigo 44 apresenta com evidência quem compõe esta esfera chamada de poder, que, na verdade é esfera de organização do poder. Mas vale conhecer o que está na Constituição: “Art. 44. O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal”. Há muitas sobredeterminações que esta esfera da organização do poder pode inventar, criar, fazer. Pode-se até, dependendo da correlação de forças, criar sobredeterminações que muito valem para a vida das pessoas. Afinal, no Brasil, onde há condições materiais para aprovar a RENDA BÁSICA INCONDICIONAL E UNIVERSAL, aprovada como política de Estado ou de governo traria muita diferença material e espiritual para a vida das pessoas. Assim como é possível em várias unidades federativas, colocar para aprovação uma moeda, como existe em Maricá, e estabelecer regras que podem chegar até à renda básica para as pessoas que vivem em tais ambientes. Mas para isso seria necessário inverter a direção da sobredeterminação que hegemoniza hoje o Legislativo.  

Mas, infelizmente, estamos em tempos que a hegemonia das esferas EXECUTIVAS, LEGISLATIVAS E JUDICIÁRIAS, em todo país, reforça a necropolítica. Há exemplos de diferenças, mas que não estão articuladas e acabam fazendo a disputa do arquétipo e não a disputa da política. A questão não é a melhor ou a pior pessoa que ocupa um cargo, a questão é a política, com quem e para que está voltada a organização do poder. E no parlamento, com a presença e a importância da VOZ PÚBLICA possuindo muita referência, pode-se ter uma focalização comum para ampliar o peso de utopias que sejam favoráveis ao BEM VIVER.  

Todo os parlamentos existentes em outras esferas, como das Unidades Federativas e dos Municípios, acompanham a tecedura do chamado “PODER LEGISLATIVO”. Eleger parlamentares que consigam disputar as verdades e o verdadeiro como uma das ações predominantes do “mandato de quatro anos” é grande desafio em época de eleições para que se possa realmente melhorar a vida da maioria da população. Agora estamos no tempo de eleger quem compõe o Senado e quem compõe a Câmara Federal, que juntos são a materialidade do que a Constituição do Brasil chama de PODER LEGISLATIVO. Atuar para que estejam em maioria, neste chamado poder legislativo,  pessoas comprometidas com o bem viver nas várias diferenças que se fortalecem,  é uma ação fundamental em período eleitoral. 

As eleições, por si só, não resolvem a situação cada vez mais lamentável que está imposta nos tempos atuais, assim como não está nas eleições a solução para os problemas mais profundos criados no Estado Capitalista com a formação social brasileira. Mas, não se pode esquecer, que se pode sim acumular frestas favoráveis à vida,  e não para sobrevivência opressora organizada pela necropolítica. Assim pode-se acumular forças e condições para superar as cercas do capitalismo e o próprio capitalismo que é a grande cerca que impede a vida e a liberdade.  

E parlamentos são ambientes para PARLAR e organizar o funcionamento do Estado e de Governos. Seja organizar para aprofundar os desenhos e marcas da necropolítica ou organizar para ampliar as contradições com frestas para o público inexistente. Como o espaço da “proporcionalidade” na política está no parlamento, há uma ideologia embaçando os sentidos e ampliando a ideologia e a estética parlamentar. Este sofismo contemporâneo, mais uma vez, cria confusões e funções inexistente para a compreensão das pessoas. 

Nesse sentido, pode-se afirmar que parlamentares comprometidos com a verdade e com o verdadeiro, seja para que nível do Estado, podem atuar para um acúmulo de forças favorável ao BEM VIVER. Inclusive seja qual for a sigla chamada de partido, pois, o que importa é uma atuação coletiva e favorável à grande maioria das pessoas. Como a condição social e política de parlamentares também importa muito, pode-se afirmar que para os votos mais qualificados a maioria da população precisa saber articular parlamentares contra os raios de repressão, contra os raios das faltas de condições materiais para a vida, contra os raios dos múltiplos preconceitos, contra os raios da exploração, contra os raios do racismo, contra os raios do machismo, contra os raios do sexismo, contra os raios da ignorância. Um coletivo de ações que fortaleça uma ação de inteligência com práticas que acumulem verdadeiramente em favor da vida. Mas, infelizmente, não é assim. Vive-se ainda em um ambiente nacional no qual a maioria das pessoas não sabe em quem está votando. No caso do parlamento, para a maioria das pessoas acaba pesando o funcionamento como a organização que faz de cada parlamentar uma espécie de micro-empresa, fazendo predominar a pergunta sempre presente do senso comum: “o que ganho com isso?” 

Mas o espaço do parlamento tem como função institucional conhecer sobre o que faz e o que deve fazer o executivo para assumir o local de fiscalizador e, por outro lado, elaborar leis que possam organizar orientar legalmente o funcionamento do Executo, do Judiciário e das pessoas. Pode-se sim acumular forças com eleição de pessoas que apostem nas organizações da sociedade civil, nos movimentos e de coletivos que ampliem os direitos e o rumo para a dignidade humana. Sim, o parlamento é um espaço da política e mesmo que vários conhecimentos sejam importantes, trata-se de um ambiente para que a orientação legislativa do Estado exista. Estará sempre em disputa o que, neste Estado, pode-se fazer a favor da maioria das pessoas e o que se pode fazer para ampliar o lucro do verdadeiro poder em um Estado capitalista.  

Entre os defensores dos proprietários haverá mutas diferenças de organização, afinal entre liberais e conservadores a escala de diferença é grande. Mas a mentira mais simpática em sua aparência não deixa de ser mentira e precisamos o vetor da verdade para mudanças em favor da vida. Por outro lado, há um grupo enorme de pessoas no ambiente político da disputa. Mas seja qual for a organização, o sistema que existe no Brasil, se volta para exercer o papel de mentiroso de um tal poder parlamentar.  

O parlamento é lugar de organização central em vários fatores: a) para organizar a compreensão da Constituição que mais interessa aos setores hegemônicos no poder; b) apresentar com a força de fala que o poder parlamentar tem, também de condições para estabelecer como verdade e mentiras no Estado. Pode-se afirmar que o Brasil tem todas as condições para que nenhuma pessoa passe fome, mas haverá sempre, no parlamento, condições para inventar a frase muito repetida: “isso que estamos estabelecendo como lei é o melhor possível neste momento” ou seja, com a aparência do melhor,  a fome continua se materializando como o pior para milhares pessoas. E precisa-se de pessoas que na atuação parlamentar não precise chamar todo o tempo o judiciário para organizar a política e possa fortalecer uma atuação comum contrário a qualquer tipo de violência, principalmente a que assassina as pessoas mais empobrecidas, negras, mulheres ou outras mais que vivem as marteladas do preconceito e das discriminações.  

A população, principalmente a grande maioria, e isso no Brasil significa aproximadamente 90% das pessoas existentes, é absolutamente dividida em pensamentos, ações, diferenças e desigualdades. Mas esse é um desafio da sociedade que trará consequência na política, na comunicação, na organização e na vida. O que aqui cabe levantar é que o Parlamento é um ambiente onde facilmente pode-se inventar mentiras e disparar inverdades pela grande cota de ignorância existir socialmente e, portanto, também com as pessoas que assumem o cargo. No caso do Brasil, principalmente após a Constituição de 88, são pessoas que assumem o cargo porque para isso foram eleitas e tiveram as proporcionalidades que justifica a palavra eleição.  

Nesta eleição de 2022 no Brasil haverá nova montagem das assembleias legislativas, da Câmara Federal, de 1/3 do Senado, do Executivo das Unidades Federativas e do Executivo Federal. Ou seja, em uma só eleição serão votos para cinco esferas institucionais de organização do poder, dos direitos, das possibilidades e de ações que o Estado fará para as pessoas. Se o Estado não será mudado, cada eleição representa uma possiblidade de utilização e organização dos aparelhos que existem no Estado. O Parlamento é o que reúne tanto o maior número de pessoas que representam setores sociais, organizados ou não. 

Então é sim importante eleger pessoas que possuam o simbolismo da Deusa Grega FAMA e possa falar com tal autoridade para as pessoas. É importante sim que tenha mais parlamentares que possam falar em favor da dignidade humana, em favor da liberdade, em favor de bons salários, em favor de empregos, em favor das várias diversidades que o grande grupo social que assume seu lugar com consciência precisa sempre conquistar para que seja uma sobrevivência que faça valer a pena viver. Não é natural morrer de morte morrida, passar fome, ser agredido por sexo, raça, cor, religião, gênero ou qualquer outra questão que forma a diversidade humana. Por outro lado, a consciência é a nutrição para que tenhamos força para organizar, acolher, formar e atuar com os muitos de nós mesmos. As eleições de pessoas que farão o Congresso Nacional existir precisam valer e precisamos fazer acontecer. 

Neste período que a eleição do Brasil, ao mesmo tempo que escolhe o Congresso Nacional, também forma as assembleias legislativas, com deputadas e deputados na Unidade Federativa, saber o que deve, o que pode e o que queremos que façam esses “parlamentares” é fundamental para colocar fogo no foco da inteligência coletiva em favor da vida. Isso porque nós somos do grupo social e política que não tem dúvidas e reafirma que Lula é um candidato que pode abrir os portais da esperança. Então faremos bases para que nos parlamentos e nos governos em cada Unidade Federativa a abertura das portas rumo ao bem viver esteja aberta para que a os muitos de nós possa construir com inteligência o BEM VIVER.


Eduardo Alves – Intelectual Orgânico da Periferia 

Ilustração: Cristóvão Vilella

Terá existência o beijo gay?

Homenagem ao grande João Bethencourt e à liberdade

Por Guilherme Maia



Chiquinho tinha 24 anos e era idolatrado por sua avó, senhora octogenária frequentadora da igreja do Poço Fundo do Jacó, adepta do “está-um-caos-mas-Deus-proverá”. Iniciou seus estudos aos 11 anos, para, assim, ser alfabetizado na escola de sua igreja. Educado na mais estrita e abençoada restrição: sua vida era resumida a ir da escola para casa e vice-versa. 

Dadas estas características iniciais que, por via de regra, enunciam uma espécie de síntese existencial do rapaz, passamos a relatar uma desastrada ocorrência que abalou sua reduzida rotina.

O dia era 25 de dezembro, o ano, 2028. Finalmente completara o curso de ciências aprofundadas no ramo da epistemologia oculta do Deus-me-livre na faculdade da Transubstanciação Dolarizada de Belford Roxo. Encontrava-se preparado, portanto, para assumir a função de balconista na loja de conveniências de um tio. 

Que tempestade se abateu na casa de Chiquinho devido a este trabalho! Sua avó – matriarca a essa altura já nonagenária – não aceitava o contato com a mundanidade daquela loja mantida pela “ovelha negra” da família: justamente aquele que vivia no Paraguai para fornecer artigos ao seu comércio.

A matrona encrencara também devido à morte de três clientes por ingestão de Whisky “batizado”.

Pois bem. Chiquinho era um santo. Fazia vista grossa ao Whisky – que continuava batizado – para honra da prosperidade predestinada de seu tio e, no fundo, porque conseguia dinheiro para alimentar seu novo e herético hobby. Seu desgraçado hobby.

Havia no fim da rua do Perdeu um velho cinema. Alguns grupos de profunda espiritualidade tentaram desde 1998 comprar o estabelecimento para montar a trilhonésima igreja do bairro; o dono disse que não o venderia porque amava o cinema; duas semanas depois, recebeu uma pedrada na têmpora esquerda (provavelmente uma arrebatação de fé): por fim, não foi dissuadido pelas vias sagradas. Era um homem decidido e possuía muito amor pelo cinema mesmo.

Esse era o último cinema que restara em todo o município e Chiquinho amou a Sétima Arte quando assistiu ao filme Murderssigun, quer dizer, Murder’s Gun -  tocante filme sobre um louco que sai matando todo mundo no condado do Bronx, em Nova York. A sutileza como o sangue jorrava da jugular ou da carótida para a tela emocionava os sentimentos mais piedosos de nosso protagonista e, com isso, passou a ser um aficionado no que foi convencionado ser o mais alto padrão de uma obra cinematográfica: a morte.

Aí então aconteceu!

Todos os filmes assistidos eram contidos, sensíveis e até “cristãos”. Assim foi a impressão sobre filmes como O Massacre de Todo Mundo, grande sucesso de Keith Machonvisky; A Carroça da Possessão do grande Geroge Killermen; dentre tantas obras-primas. Chiquinho era levado às lágrimas observando aquelas vísceras expostas, pendendo sobre corpos mutilados; todo aquele rol de armas em desfile. Nada atentava contra a moral e aos bons costumes!

Porém aconteceu aquilo!

O filme que estava em cartaz naquela sexta-feira 13 se chamava Açougueiro de Castro. Era o relato de uma onda de assassinatos no epicentro gay do mundo: o bairro de Castro, em San Francisco.  A velha fórmula “soldado que foi para o Afeganistão-perdeu as pernas em uma explosão-não teve assistência médica ou psicológica-enlouqueceu-saiu matando todo mundo que via pela frente” estava perfeita em conformidade com a grande arte. Porém, antes da vigésima matança promovida pelo Açougueiro, no canto direito apareceu aquela imagem perturbadora: dois homens se beijando!

Aquilo aterrorizou Chiquinho de tal modo que ficou boquiaberto de tanta perplexidade. Pálpebras distendidas, mãos trêmulas e molhadas, demorou alguns minutos para que aquele sentimento pudesse ser identificado. Uma mescla de estupor com a névoa da incógnita tomou-o de assalto e, com a cabeça agora feito um pingente balançando sobre o vácuo árido de um abismo, ele entendeu o volátil significado da dúvida.

— Agora entenda... — surpreendido ficou com a sua própria voz que acabara de iniciar um diálogo com ele mesmo.

— Cala a boca, imbecil! — irrompeu tonitruante um expectador a três cadeiras atrás.

Essa tentativa de diálogo íntimo e paradoxalmente exposto foi abortada logo de início. Adequada foi a continuidade, ou seja, a voz interna passou a se pronunciar para dentro e não mais para o meio ambiente do cinema.

— O diretor desse filme é o grande Charlie Fingerintheye, um dos maiores mestres! Um cara que trouxe ao mundo primores como Comi seu Fígado no Jantar e Com as mãos é que se Enforca não comete erro e sabe de tudo! Se dois homens se beijando aparecem em um filme desses, isso deve pelo menos existir!

A pergunta que não queria se calar na cabeça de Chiquinho era: existe beijo entre dois homens no mundo? Isso acontece? 

Terminado o filme, todos os expectadores saíram da sala de projeção deixando-o só e inculcado com toda aquela nova realidade que se abria a seus olhos. Havia em tudo aquilo um sentimento de completude ao mundo que cercava sua existência desde seu nascimento. A vida era mais do que tinha percebido até aquele momento: além de igrejas e lojas de produtos paraguaios, acontecia de dois homens se beijarem.

Andando pela rua do Perdeu às 10h30 da noite, o que, por óbvio, ocasionou a perda do relógio e do par de tênis após dois assaltos consecutivos, Chico começou a meditar sobre sua nova experiência querendo chegar a alguma conclusão sobre aquilo. Se existe no mundo dois homens que se beijam, isso é uma realidade, então, deve ser bom para quem o pratica. 

No fim, já estava entendendo o beijo gay como pertencendo à Criação assim como era da Natureza, era de Deus também. Portanto, tudo continua na mais bela paz predeterminada pelo Todo-Poderoso.

Como a vida é bela em todos os seus matizes e acordes...

Em sonhos, viu um mundo alegre e de irmanação universal. Um mundo harmonizado com coelhinhos saltitando em paisagens bucólicas de bosques verdejantes onde se ouvem quartetos de cordas de Haydn e Schubert em estereofonia pelo ar. 

Não havia mais adoração ao dinheiro ou lutas inumanas por ele. Não havia mais aquelas pessoas que se deitavam no chão da calçada e que provocavam estupefação sempre que via seus andrajos e mau cheiro no trajeto que fazia de casa para o trabalho. 

Na manhã seguinte, com os olhos transbordando de contentamento abraçou sua avó e o tio que acabara de chegar do Paraguai. Sorrindo deu o “bom-dia” e o “Deus-abençoe” habitual e disse que aquele seria um dia muito feliz, razão por que exclamou que todos deveriam se beijar incluídos aqueles homens que gostam de beijar outros homens...

Trovão! Ciclone! Desastres naturais! Terminal da Central de Japeri na hora de ida e volta ao trabalho! Nada se compara à estrondosa reação da avó de Chico, esta pulou da cadeira como não fazia já há 70 anos; brandiu sua bengala no ar como uma acróbata de sinal de trânsito; aos berros xingou seu neto de todos os palavrões possíveis — alguns, no entanto, tinham perdido seu uso há algumas gerações devido à sua longevidade.

No momento em que começou a jogar os pratos em direção a Chico, este teve de sair correndo de casa. Na rua, depois de ser assaltado, seu cordão de níquel levado por ladrões, foi ter com o Armênio, o dono da farmácia localizada na calçada em frente. 

— Seu Armênio.... Minha avó está muito alterada, não sei se é por causa da combinação de omeprazol, diclofenaco e diazepan que o senhor anda vendendo para ela. 

- Mas essa combinação desde 2023 já não causa mais mortes em idosos, os velhos já criaram resistência natural a isso! Não pode ser! Alguma coisa deixou sua avó nervosa ou espantada?

— Não! Apenas acordei sorri para ela e disse que hoje está um dia tão lindo que todos deveriam se beijar, inclusive homens que gostam de se beijar uns aos outros!

O dono da farmácia se encolerizou de tal modo que, com o rosto afogueado, partiu para cima de Chico. Os dois se atracaram e rolaram para o meio da rua. Nesse momento a avó já estava do lado de fora com um bastão de beisebol (sabe-se lá de onde surgiu esse utensílio); e Seu Armênio gritava: “Socorro! Tarado! Lincha tarado! ”

Acorreram de todos os cantos vizinhos portando tochas, foices e ancinhos; Chiquinho consegue se desvencilhar e corre alcançando a frente da turba enfurecida.

Já em sua cola está uma viatura da polícia; sobre o teto apoiados na sirene estão o padre da paróquia (tinha o hábito de dormir de 15 a 16 horas por dia e seu sobrepeso amassou a calota do veículo) e o pastor que vinha aos gritos – estes mais agudos do que o do alarma da sirene policial; — o perseguido consegue virar uma esquina obscura e despistar a todos.

“O que pode ter acontecido? O que eu fiz para estarem com tanta raiva atrás de mim?” — atônito, se perguntava reiteradas vezes. 

Tropeça sem ver em um mendigo deitada e coberto pela penumbra do beco; este resmunga e, logo, por solidão, puxa conversa com Chiquinho; Chiquinho volta a dizer que o dia era lindo e todos, sem exceção, deveriam se beijar; o mendigo ergue um porrete e desfere um golpe que, por muito pouco, não o atinge.

-— Você é um ignorante filho da puta! Eu perdi tudo o que tinha, minha família, meu emprego e carro por causa disso! Descobri que amava um outro homem! Se eu perdi tudo, você deve ser morto por propagar essa obscenidade!

Fugindo dessa última cena, escorrega em um rato morto; aos trambolhões rola por um barranco e cai num rio, em meio a entulhos, lixo, pedaços de corpos apodrecidos; some logo em seguida.

Hoje, mudou seu nome para Hepático (em homenagem às consequências do contato com o que encontrou naquele rio), é um próspero predestinado comerciante ambulante do Calçadão de Caxias e aprendeu de uma forma cruciante que

BEIJO GAY EXISTE SIM!


GUILHERME MAIA 

Chargista, escritor, crítico de arte e advogado terceiromundista com atuação em seus momentos de lazer.


Momento de atuação como advogado 

terceirmundista. Nesse caso defendia

O direito de um cego se aposentar após 

20 anos de processo. Essa cena

mostra o carinho com que são recebidos

advogados nas altas cúpulas do judiciário

brasileiro.

 

As Conferências e a 17ª CNS

Por Sylvio Costa Jr.

 Nos mais de 30 anos de existência desse adulto-jovem que é o nosso Sistema Único de Saúde, sem dúvida os últimos sete anos foram os mais difíceis de sua efetiva existência tal qual entendemos que o SUS deve ser: socialmente justo, integral na sua forma de cuidado e promotor de qualidade de vida a toda população.

Após o golpe de 2016, o SUS foi gravemente ferido com a aprovação da emenda de teto de gasto — a famosa PEC da Morte — que promove uma perversão no financiamento do sistema, pois o SUS, que era subfinanciado, passou a ser desfinanciado. Somado a isso, tivemos um conjunto de políticas econômicas e sociais que tentaram restringir a participação social, como o duro ataque ao sindicalismo nacional e a constante hipertrofia do judiciário, sempre pronto a decidir pela ilegalidade das greves dos trabalhadores, quando não a própria prisão das lideranças sindicais e sociais.

Durante o governo Bolsonaro o SUS não poderia ter caído em piores mãos. O presidente, irresponsável do ponto de vista social e sem apreço pela gestão da máquina pública, nomeou como seu primeiro ministro da Saúde o deputado Luiz Henrique Mandetta, autointitulado “amigo da ciência”. O amicíssimo da ciência, em seu pouco mais de um ano à frente do Ministério da Saúde, implantou o famigerado Previne Brasil (PB). Como já escrito em outro artigo nesse veículo, o PB é um cavalo-de-pau no financiamento da atenção básica, pois promove a regulamentação da PEC da Morte na atenção básica. Esse foi o papel do autoproclamado “amigo da ciência” em sua passagem pelo Ministério da Saúde.

Despois tivemos nomeado como ministro o empresário do setor saúde Nelson Teich, conhecido como “Teich, o breve”. Após ficar alguns poucos meses à frente do Ministério, com seu aspecto sempre de cansaço e fadiga, a única coisa que se percebeu foi que ele era o homem errado, no lugar errado e no momento errado.

Em seguida, tivemos o general trapalhão Eduardo Pazuello, os escândalos das vacinas superfaturadas, testes estragando em estoques federais, as mortes em massa por Covid, e o Ministério da Saúde gastando sua energia alterando bula de remédio antiparasitário para ser consumido como antiviral, normas técnicas sendo emitidas de forma apócrifa e o país em estado de choque. A CPI da Covid mostrou um show de aberrações em meio à pandemia — como, por exemplo, um PM malandro de Pouso Alegre, em Minas Gerais vendendo vacina ao Ministério mediante pagamento de R$ 1 de propina por frasco vendido — e a  estranha compra da vacina Covaxin sem aprovação da Anvisa e, ao mesmo tempo, o boicote a compra da vacina da Pfizer e da Coronavac.

Após a saída do general de estimação do capitão, assume o Ministério o médico Marcelo Queiroga, uma espécie de Pazuello de jaleco. Óbvio que nada disso deu certo, e o Ministério da Saúde se encontra ao longo de quase quatro anos paralisado, sem programas robustos ou iniciativas de proa, apenas com patrulhamento ideológico a servidores e movimentos sociais. Chegado agora o período eleitoral, é sempre bom lembrar esses fatos, pois como se diz popularmente: na eleição até satanás se fantasia de sacristão.

Importante notar o papel de destaque em defesa da vida, da vacina e do interesse do conjunto da população que os movimentos sociais tiveram e tem até hoje. O Conselho Nacional de Saúde teve um papel de destaque no combate ao obscurantismo, à negação da ciência, na defesa do SUS e de seu financiamento adequando.

Na pandemia de Covid-19, foi clara a importância do controle social nos municípios e nos estados, fiscalizando governos locais na compra de vacinas, pressionando gestores para rápida aquisição dos imunizantes e rechaçando o uso de cloroquina para uso na população como antiviral, ou ainda, auxiliando municípios na organização da população para distribuição de vacinas. O controle social se mostrou vivo e presente no momento mais difícil da pandemia, cumprindo assim seu papel fundamental e que será lembrado na historiografia nacional, a defesa do interesse popular.  O controle social mostrou que a sociedade brasileira está viva e atuante.

Ao que tudo indica, passado o momento mais duro da pandemia, estamos em um momento chave para o controle social: a organização da 17ª Conferência Nacional de Saúde, em 2023. As conferências são espaços vitais para o SUS, pois, antes da Conferência Nacional, são organizadas conferências estaduais. O conjunto da sociedade brasileira se organiza ao longo de mais de um ano no debate sobre qual saúde pública queremos para o pais.

Paralelas à conferencia de saúde, outras conferências também vão acontecendo para desembocar na Conferência Nacional de Saúde  ou ser pautada no encontro nacional. Cito três exemplos dessa natureza: a Conferencia de Saúde Mental, que movimentou em 2022 um grande contingente de usuários e trabalhadores no debate referente a luta antimanicomial e como essa rede de cuidados deve ser organizar. Mesmo com o boicote do governo federal cancelando o encontro nacional em 2022, o debate e a organização popular já foram colocados e dados. O adiamento do encontro nacional só mostra o medo que o governo tem da organização popular e como essa pauta da saúde mental é importante e não será esquecida. O assunto e a pauta estão postos, queira o governo goste ou não.

Outro exemplo é a saúde bucal. Há quase 20 anos, em 2004, foi realizada a última Conferência Nacional de Saúde Bucal e, de lá para cá, muita coisa mudou na organização da rede de saúde bucal no SUS. Acredito que urge a necessidade de iniciarmos o processo de organização da IV Conferência Nacional de Saúde Bucal no Conselho Nacional de Saúde, entendendo seus desafios, obstáculos, mas também sua necessidade. Cabe ao controle social organizar trabalhadores, gestores e usuários para debater que saúde bucal deve ser levada para população brasileira, e inserida em qual modelo de sistema de saúde. Sempre aguardando o momento ideal, há quase 20 anos não se realiza uma conferência de saúde bucal. Quando o momento ideal virá? É necessário colocar a saúde bucal em movimento. Já!

Finalizando, não poderia deixar de falar da Conferência Nacional Livre, Popular e Democrática de Saúde. A Conferencia é uma atividade preparatória para a 17ª Conferência Nacional de Saúde e envolve na sua construção uma série de movimentos populares, instituições e organizações comunitárias. A Conferência Livre surge da iniciativa da Frente pela Vida, criada em 2020 por várias entidades que militam na saúde pública e no SUS. Elas se constituíram para oferecer respostas efetivas durante pandemia de Covid-19 diante do desastre na coordenação ao enfretamento da pandemia pelo governo Jair Bolsonaro.

Normalmente problemas complexos tem respostas simples e erradas. É necessário ouvir e debater com os diversos setores sociais para que a construção do modelo de sistema saúde que desejamos saia dessa energia social. A construção do SUS foi assim. Sem o povo na rua, sem o povo em movimento, o SUS será entregue de bandeja ao setor privado. No conforto da vida de classe média, dentro de casa, ou ficando horrorizado com as loucuras do governo Bolsonaro não avançaremos. O grosso da população está se virando para sobreviver. A pergunta que fica é: se os setores mais progressistas da sociedade, mais conscientes, e mais organizados não foram setores de vanguarda, capazes de iniciar as mobilizações, vamos cobrar a mobilização dos setores mais despolitizados e fragmentados do nosso tecido social?  Por isso: vamos as conferencias, vamos as ruas e, principalmente, vamos nos organizar, porque o paraíso não é perto.

Ilustração: Cristóvão Vilella

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Os Generais e o SUS

Por Sylvio da Costa Jr.


Foi comemorado no dia 17 de maio o aniversário de 34 anos do SUS, pelo fato de nesse dia ter sido instituída na Constituição de 1988 os alicerces do então novo sistema de saúde, entre seus artigos nº196 a nº200.

O Sistema Único de Saúde é motivo de orgulho do povo brasileiro e, como chamamos de forma recorrente, um patrimônio do pais. Ele muda a lógica e a prática da oferta de saúde, uma vez que abandonamos um sistema federalizado na gestão e na assistência de saúde e estabelecemos um sistema municipalizado de cuidados, no qual saímos de uma oferta de serviços de saúde apenas para os brasileiros no mercado formal de trabalho e passamos a oferecer saúde a todos brasileiros e estrangeiros, trabalhadores formais ou não.

Esse modelo de saúde não advém de um parto sem dor ou de um nascimento ao acaso, como um raio em céu azul. Poeticamente, podemos afirmar que ao morrer o velho nasceu o novo; ou que ao cabo de uma ditadura militar e ao início da Nova República, o SUS foi implantado. Essas afirmações estão corretas, mas é importante contextualizá-las cronológica e historicamente, para que não acreditemos que o SUS nasceu de uma eventualidade — ou que uma cegonha o trouxe do além — a partir de meia dúzia de pessoas que se reuniu e teve a ideia genial de criar um sistema de saúde para todos.

Como estabelecido na Constituição Federal de 1988, em seu Artigo nº 196, “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas(...)”.  Logo, quando abordamos a temática da saúde pública, é impossível olharmos de maneira analítica sem entendermos a importância da variável econômica como produtora de saúde, ou de doença, a depender de suas consequências sociais. De tal modo, a oferta de cuidados em saúde também se organiza a partir do padrão epidemiológico da sociedade ou do território. Políticas econômicas que geram pobreza e miséria social para o conjunto da população geram também padrões de determinadas patologias e doenças. Nesse sentido, a saúde e a economia são campos ideológicos de disputas e conflitos que apresentam múltiplos vasos comunicantes. Em um ambiente economicamente degradado, ou seja, em uma economia doente, a população também adoecerá. 

Indo ao ponto do presente artigo, uma vez dado o golpe militar em 1964, e radicalizado em 1968 com o AI-5, o pais viveu economicamente uma sucessão de crises permanentes, com conseqüências no campo da saúde e no padrão de adoecimento da população. O golpe de 1964 interrompeu o debate que estava vivo na sociedade brasileira sobre as chamadas reformas de base, como a reforma agrária, a reforma tributária, a reforma urbana e a reforma sanitária. A quebra do regime democrático não só adiou a resposta para enfrentar os problemas e conflitos vividos pelo país naquele momento, mas prolongou e dificultou, por conseguinte, uma solução robusta para situações complexas. Assim, a ditadura foi um governo de crises sobrepostas, uma seguida da outra. O próprio período de crescimento econômico que o pais experimentou entre os anos de 1968 e 1973, conhecido como ‘milagre econômico’, se deu baseado em políticas econômicas de profundo arrocho salarial (reduzindo o salário mínimo em 1/3 de seu poder de compra) e ataque aos sindicatos — tudo com a justificativa de cortar a alta inflacionária. Como também recentemente, em 2016, o governo Temer, fruto também de um golpe, aprovou a ‘Reforma Trabalhista’, um ataque duríssimo ao sindicalismo nacional, sob a alegação de flexibilizar a contratação de mão de obra e gerar crescimento econômico. O resultado concreto disso foi que chegamos a 2022 sem direitos e sem crescimento econômico, assim como os anos do ‘milagre econômico’ foi para milhões de brasileiros um infortúnio.

Com a contenção à fórceps do poder de compra e grave crise social, a inflação no fim dos anos 60 caiu na marra. Foi realizado em seguida um processo de industrialização e investimento em infraestrutura do país, entre outras coisas, baseado majoritariamente no endividamento externo, como se não houvesse amanhã. Essa política de industrialização a jato e sem planejamento promoveu um fenômeno social nunca revertido, chamado ‘êxodo rural’, por meio do qual milhões de brasileiros das regiões mais pobres, notadamente o Norte e o Nordeste, saíram em caravanas, veículos precários de transporte chamados ‘paus de araras’, fugindo da miséria e do abandono para tentar uma vida melhor nas grandes cidades. Como o sistema de saúde da época era de usufruto apenas para os trabalhadores de carteira assinada, esse contingente gigantesco de pessoas estava entregue á própria sorte, no tocante a saúde, e sem acesso a consultas, exames e cirurgias. A assistência de serviços de saúde para o grosso da população nesse período se dava por entidades filantrópicas ou religiosas, nas quais os recursos eram escassos e a oferta de serviços se mostrava precária diante da massa gigantescas de brasileiros desassistidos.  Para se ter idéia, a mortalidade infantil era absurda. Morriam crianças pobres como moscas Brasil à fora. Mortes por diarréia infecciosa, subnutrição e fome faziam o país ser comparado internacionalmente a nações africanas em guerra.

Mesmo os trabalhadores no mercado formal de trabalho, aqueles que tinham acesso ao Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (Inamps) nunca tiveram atendimento gratuito. O antigo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e, depois, Inamps atuavam essencialmente por meio de convênios com a rede privada, ao invés de investirem na ampliação e qualidade da rede própria de serviços. O atendimento era majoritariamente conveniado com a rede privada, criando uma enxurrada de dinheiro público para ampliação da rede privada de serviços médicos.  O modelo de saúde gerido pelos militares não era apenas desigual, era perverso. Mesmo com um pequeno contingente de trabalhadores tendo direito ao usufruto do acesso à saúde, muitas vezes o cidadão não podia fazê-lo porque esse acesso era pago em clinicas e hospitais conveniados. 

O melhor retrato do “milagre econômico” foi a frase atribuída a Delfim Netto, ministro da Economia da época, dizendo que “o bolo precisa primeiro crescer para depois ser repartido”. Era como se ele dissesse: o crescimento econômico nesse momento não é para todos. Jamais foi. Durante o milagre econômico, o bolo realmente cresceu, mas nunca foi repartido de forma equilibrada e equânime. O próprio presidente da época, o general Emilio Garratazu Médici, afirmou que "a economia vai bem, mas o povo vai mal”, dando bem a dimensão do buraco em que estávamos metidos. Cabia perguntar: a economia vai bem para quem, cara pálida? Um famoso economista liberal, Edmar Bacha, apelidou o Brasil de então de “Belindia”, uma nação fictícia, formada pela união da Bélgica com a Índia, onde habitavam juntas, em um equilíbrio catastrófico, um pequeno país rico, branco, que consome bens e produtos importados (a Bélgica) e uma imensa nação pobre e desigual (a Índia). Estava claro que o milagre brasileiro era um gigante com pés de barro. O milagre econômico agiu como um cirurgião inapto, que não sabendo o que fazer diante de um paciente gravemente enfermo, o anestesia, mas não o opera, deixando-o lá, em um nirvana passageiro, enquanto a doença evolui.

Com a primeira crise do petróleo, em 1973, quando os países produtores árabes se negaram a vender óleo para países aliados de Israel, o sonho pueril do milagre brasileiro acabou de forma trágica, uma vez que toda fonte de energia no Brasil era importada e baseada no petróleo. E, no segundo choque em 1979, com a revolução do Irã, a ditadura ficou de joelhos. Decorrente da falta de organização e planejamento da ditadura militar para administração do pais a crise econômica explodiu, pois naquele momento tínhamos um pais com os mesmos problemas do passado e alguns adicionais, como alto endividamento externo e a hiper inflação. O fim da ditadura não se deu por fruto da generosidade dos generais, mas por conta do caos social e econômico quase ingovernável. O pais estava no fim dos anos de 1970 economicamente caindo aos pedaços.

O último general que governou o pais entregou ao governo Sarney, em 1985, uma inflação de 215% ao ano e uma crise intitulada de “colapso da dívida externa”. De tanto endividar o pais em fundos, bancos e organismo internacionais, como por exemplo o FMI, o Brasil não conseguia honrar compromissos externos básicos de pagamento de empréstimos, todos em dólar. A ditadura militar leva o país para um pântano de hiperinflação, associado a um crescimento econômico pífio, com o desemprego nas alturas, e um endividamento externo que funcionava como uma mão estrangulando e asfixiando o pescoço do Brasil. A ditadura militar entrega a nação para os governos civis subseqüentes nesse cenário, com um boom de desigualdade e altíssima concentração de renda, uma verdadeira selvageria social. A herança da ditadura no campo da economia levou o governo civil subseqüente à moratória da divida externa. Em 1987, diante do obvio, o país quebrou!

Vale lembrar para os mais novos, aqueles que não viveram nem estudaram esse período, que a ditadura militar não produziu apenas repressão, mortes e torturas, como se isso já não fosse muito. Tudo que os governos civis tentaram fazer a partir de 1985 foi consertar o estrago militar promovido no país do ponto de vista econômico e social. 

O SUS nasce, a rigor, como uma resposta corajosa diante da gravíssima crise social que o Brasil vivia.

Essa crise monumental obviamente carrega junto de si o sistema de cuidados em saúde e de aposentadorias. O Inamps vai à lona.  Impossível falar da origem do SUS sem contextualizar o momento social, econômico e político da época. O SUS não nasce de parto normal, muito menos sem dor, mas em um país em convulsão. Por isso, devemos nos orgulhar não apenas do sistema de saúde que temos hoje, por si só, mas também de todos os brasileiros que, tijolo por tijolo, ajudaram e ajudam a construir o mais ambicioso sistema publico de saúde do mundo. Viva o SUS, viva o povo brasileiro e viva a democracia. Ditadura nunca mais!


Reforma Agrária, uma importante fábrica de agricultores familiares

Por Mario Lucio M. Melo Jr.

(engenheiro agrônomo)


A frase exaustivamente repetida em um canal de TV “o agro é isso, o agro é aquilo” mostra principalmente exemplos de agricultura exportadora (produtos que são vendidos para fora do Brasil) ou agroindustrial (que vão para a indústria de grande porte, são transformados em um ou mais subprodutos e, em grande parte, são também exportados). Depois de uma chuva de críticas e caricaturas, vindas de vários setores da sociedade (brasileiro faz piada de tudo), o tal canal de TV mudou o rumo e passou a mostrar importantes setores da agricultura de alimentos abastecedores de nosso mercado, que ainda não havia citado — e, por último, mais recentemente, trata das “pessoas” que fazem o agronegócio funcionar.

Todas as pessoas que trabalham nos mais diversos ramos da atividade são, sem sombra de dúvida, muito importantes. Porém o tijolo básico dessa catedral é a agricultura familiar. Ela é a base em que se assentam a força e a inteligência dessa atividade básica para a nossa sobrevivência. Sem isso, passaríamos fome e não teríamos matérias-primas para tocar importantes setores de agroindústrias básicas para nossa segurança alimentar. A propriedade agrícola familiar, onde trabalham o/a cabeça da família e seus agregados, alicerça e sustenta toda a cadeia de atividades dos alimentos que vão para a nossa mesa; melhor ainda, alimentos limpos e saudáveis.

Nesta altura do artigo você deve estar se perguntando: “Meu Deus, mas qual será a diferença entre essas agriculturas?”. Vamos listar, lado a lado, as principais diferenças:

Pelas evidentes diferenças reveladas por cada forma de produzir, pode-se deduzir as grandes forças que fazem uma verdadeira e desproporcional queda de braço na imprensa, na mídia e na política governamental quando é aprovada ou rejeitada cada “Política Pública” para o setor. Imagine os bilhões que são disputados pelos serviços de transporte das safras (empresas de caminhões, trens, barcos, portos etc); os bilhões que são disputados pela indústria de maquinário agropecuário (caminhões, camionetes de serviço, equipamentos para irrigação, estufas, armazéns, destilarias etc.); i os bilhões que são disputados pelos donos dos pacotes tecnológicos de herbicidas, sementes transgênicas, agrotóxico e adubos químicos, todos patenteados por empresas multinacionais. Essa lucrativa engrenagem gringa distribui uma pequena migalha para uma parcela do “Agro”, que afirma, aos quatro ventos, ser o setor que sustenta positivamente o PIB do Brasil. 

Imagine, você leitor, se TODO o lucro que sangra para a corrupção política e as indústrias estrangeiras ficassem no país para financiar um processo de agricultura agroecológica e a reforma agrária, que aproveitasse os milhares de brasileiros que desejam produzir alimentos saudáveis e garantir a sua renda e de seus familiares em suas próprias terras diretamente e indiretamente de outros milhares de empregos indiretos; que isso acarretaria para fortalecer indústrias e comércios, movimentando riqueza interna dentro do nosso país. 

Todos os países desenvolvidos e de economia forte fizeram sua reforma agrária, que é uma verdadeira fábrica de agricultores familiares. Os Estados Unidos fizeram a sua durante o século XIX, com a “Marcha para o Oeste”, culminando com o Homestead Act, ou Lei do Povoamento, em 1862. Essa lei, instituída durante o governo de Abraham Lincoln, ofertava lotes de terra no Oeste a um preço baixíssimo para americanos interessados e exigia em troca que a terra vendida fosse habitada e cultivada. Já na Europa, com o fim das monarquias e do feudalismo, na transição para a revolução industrial, os pequenos agricultores tiveram acesso à terra. Esses são apenas dois exemplos entre outras experiências de reforma agrária em todo o Mundo. Porém, como a história funciona em ciclos e nem tudo que é bom dura para sempre, com a concentração financeira nos bancos, que financiam as safras e os investimentos, em cada momento de crise econômica ou desastre climático, as instituições financeiras tomam as terras dos pequenos e as entregam em blocos maiores para os seus investidores. Esta situação gera então uma rápida e crescente concentração de terras e uma simultânea luta por uma reforma agrária agroecológica e sustentável em todo o planeta.

No próximo artigo discutiremos o que é uma Reforma Agrária agroecológica e sustentável.

Por que a governança das águas importa

por Angelo José Rodrigues Lima

Uma boa gestão das águas pode beneficiar 48 milhões de pessoas em bacias que são estratégicas para 20% do PIB nacional e para 14 Estados.*

Em 1997, tendo uma ampla participação de atores e instituições, a sociedade brasileira conquistou — e foi aprovada — a Política Nacional de Recursos Hídricos, que tem como objetivo garantir água em quantidade e qualidade para todos os usos. 

A partir dessa lei, a gestão das águas deve ser realizada de forma descentralizada e participativa, e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh) é constituído abrindo espaço para que os setores públicos, usuários públicos e privados e organizações da sociedade civil dialoguem por meio de instâncias para resolver os desafios e problemas relacionados as águas.

O Singreh é um sistema complexo e ousado, assentado na necessidade de intensa articulação e na ação coordenada entre as diferentes esferas, atores e políticas para a sua efetiva implementação, indicando assim que a governança é um elemento importante deste Sistema.

Rapidamente, vários atores se mobilizaram e atualmente o Brasil conta com 243 Comitês de Bacias Hidrográficas (CBHs), sendo que dez destes são CBHs em rios de domínio da união, como o CBH São Francisco e o CBH Doce.

Identificando que a governança é um elemento central para obtenção dos resultados de gestão das águas, representantes de organizações da sociedade civil, instituições do poder público e setor privado, mobilizaram-se para construir um Sistema de Monitoramento da Governança das Águas.

O Sistema está representado pela construção do Observatório da Governança das Águas (OGA Brasil), que atualmente é uma rede de 61 instituições e 22 pesquisadores (as) e foi construída a ferramenta de monitoramento da governança — o Protocolo de Monitoramento da Governança das Águas, lançado no fim de 2019.

Por que monitorar a governança pode beneficiar a população?

A governança prepara a gestão para implementação de programas e projetos; o monitoramento da governança amplia os resultados dos Comitês de Bacias e dos órgãos gestores para garantir água em quantidade e qualidade para todos os usos.


Figura 1: A governança prepara a gestão.

Fonte:https://www.provalore.com.br/governanca-publica-saiba-a-diferenca-entre-governanca-e-gestao/


A gestão das águas apresenta uma série de instrumentos de gestão, entre eles os planos de bacias. Ao elaborar o plano, identifica-se qual é a situação real da bacia. A partir deste diagnóstico, programas e ações são preparadas para garantir água para todos os usos e podem ser construídas ações para prevenção com relação a secas e cheias.

Tendo governança, os Comitês de Bacias elaboram seus planos de forma integrada com outras instituições, temas e instrumentos de planejamento de outras políticas públicas. Isso significa que os atores dos comitês estão mais articulados e integrados, que as informações serão transparentes e as mais precisas para uma adequada tomada de decisão sobre a gestão das águas na bacia. 

Além disso, a governança prepara os membros do Comitê e do órgão gestor para um olhar integrado e sistêmico sobre os desafios do monitoramento, do desmatamento, do manejo inadequado no uso e ocupação do solo na área urbana e rural. Portanto, a governança é um elemento central para que os mais de 243 comitês de bacias no Brasil, tenham ainda mais resultados.

A aplicação do Protocolo de Monitoramento da Governança

A partir do segundo semestre de 2020, o Protocolo vem sendo apresentado às instâncias de gestão das águas no Brasil. Até o momento, 16 CBHs de bacias estratégicas do Brasil e a Companhia de Gestão de Recursos Hídricos do Ceará (COGERH) aderiram ao monitoramento da governança das águas. 

O monitoramento da governança desses comitês e da COGERH(CE) pode beneficiar cerca de 22% da população brasileira, uma parte do PIB nacional e grande parte dos PIBs estaduais.

Tendo governança nestes comitês e no órgão gestor, eles colaboram para garantir segurança hídrica, o desenvolvimento social, econômico e ambiental e das atividades que necessitam do uso da água nestas bacias.

A importância econômica das bacias.

Os 16 CBHs e a COGERH estão em bacias hidrográficas importantes, onde acontecem diversas atividades econômicas e que representam cerca de 20% da arrecadação do PIB nacional e estadual.

A Tabela 1 apresenta a estimativa de valor do PIB com algumas referências nacionais, no caso da Bacia do São Francisco; as referências estaduais, nos casos das Bacias dos rios de domínio do Estado, e a arrecadação anual da COGERH, que tem responsabilidade de executar a gestão em todo o estado do Ceará (CE).

Tabela 1: Estimativa dos PIBs das Bacias cujas fontes de informação são diversificadas, já que nem sempre a informação do PIB é realizada a partir da bacia hidrográfica. Elaboração própria

 

Pela tabela 1, é possível identificar quais foram os 16 CBHs que aderiram ao monitoramento da governança, pois estes têm os mesmos nomes das bacias hidrográficas.

O grande significado da adesão dos CBHs e da COGERH ao monitoramento da governança é que estes já perceberam a importância da governança para ampliação dos resultados de gestão e para garantir os múltiplos usos das águas.

A governança ajuda a se antecipar nos desafios de garantir água para todos os usos, mesmo nos tempos das mudanças climáticas.

*Angelo José Rodrigues Lima – Biólogo (UFRRJ), mestre em Planejamento Ambiental (COPPE/UFRJ), especialista em Recursos Hídricos (UFPB), doutor em Geografia (UNICAMP) e atualmente exerce a função de secretário executivo do Observatório da Governança das Águas – www.observatoriodasaguas.org 

Artigo também publicado na Revista Página 22 em 16/05/2022