segunda-feira, 31 de maio de 2021

Segurança pública e controle democrático

Júlio Araújo

    Diferentemente de outras Constituições, a de 1988 contém um capítulo específico sobre o tema “segurança pública” e demarca claramente o seu campo, diferenciando-a da chamada segurança nacional. Contudo, não houve na Carta a criação de um arranjo institucional novo, que fosse capaz de modificar o funcionamento das polícias. A persistência da estrutura do período autoritário inviabiliza a transparência e o efetivo controle dessa política. Sem qualquer mudança substancial acerca do sistema que havia na ditadura, persistiu uma lógica militar na organização das polícias.


    Luiz Eduardo Soares tem destacado que a arquitetura das instituições de segurança pública perpetua uma organização muito fechada e pouco transparente ao povo, inviabilizando o seu controle. Pode-se acrescentar isso o fato de que o tratamento da segurança pública pelo Estado brasileiro não recebeu a filtragem constitucional necessária, capaz de entendê-la em conjunto com a concretização de outros direitos. A segurança pública é um direito fundamental, mas não pode ser pensada a partir de uma lógica meramente repressiva.

    É necessário que a governança democrática dos órgãos de segurança apareça como um tema central. Afinal, as diretrizes mais rotineiras aplicáveis ao resto dos governos não atingem as polícias. Regras pouco transparentes e a lógica do segredo amplo e irrestrito em favor da investigação ou da “inteligência” costumam prevalecer. Como consequência, episódios de violência do Estado são sempre justificados com base em um “interesse maior” ou na luta do “bem” contra o “mal”. O impacto desproporcional e a anormalidade de incursões policiais em favelas, favorecendo a ocorrência de verdadeiras chacinas, mostram a insuficiência do argumento, tornando inadiável o debate sobre o controle democrático da segurança pública.

    O art. 5º da Constituição prevê o caráter inviolável do direito à segurança. Ao pensar a segurança pública, é necessário integrar o art. 144 ao art. 5º e à proteção de outros direitos fundamentais, associando-o à democracia, à dignidade da pessoa humana e à liberdade e igualdade.

    O art. 144 estabelece a segurança pública como um dever do Estado e direito e responsabilidade de todos. Ressalta ainda que ela deve ser exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. A ordem pública e a incolumidade das pessoas são conceitos indeterminados que não indicam claramente o rumo a ser tomado na definição do direito e da política que dela advém. É necessário, assim, definir esse conteúdo, desde que seja alinhado ao Estado democrático de direito e possua parâmetros de igual respeito e consideração às populações tidas como “indesejáveis”, sobretudo aos habitantes de favelas.

    Nesse ponto, para além da crítica imprescindível à chamada “guerra às drogas”, deve-se assegurar que o procedimento de formulação da política de segurança pública seja transparente e que o funcionamento das polícias esteja baseado em regras e diretrizes previamente definidas, com crivos constitucionais e democráticos. 

    Por exemplo, as buscas e apreensão em favelas sem mandado, o uso do chamado caveirão aéreo, o acesso indistinto a dados telemáticos e a vigilância permanente por meios tecnológicos, a discricionariedade na definição e programação de operações, com base unicamente em supostos mandados abertos, e os protocolos de atuação são alguns temas sensíveis que mereceriam controles de legalidade e sociais, não cabendo falar na lógica do sigilo. 

    A governança da segurança pública deve ser transparente, não se confundindo com os detalhes operacionais e sigilosos da atividade investigativa. É natural que o segredo seja mantido em relação a certos aspectos de uma determinada investigação, mas ele não pode ser utilizado como salvo-conduto para a falta de transparência da própria política. 

    No caso Favela Nova Brasília, que culminou na responsabilização do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, constatou-se que a falta de procedimentos claros e a ausência de responsabilização de violadores de direitos fundamentais ensejam um cenário de completa omissão estatal. 

    O sistema de justiça, sobretudo por meio do Poder Judiciário e do Ministério Público, deve com urgência delimitar seu campo de atuação com base em um diálogo institucional com os órgãos de execução que tenha como baliza a deferência democrática das diretrizes estabelecidas nas políticas de segurança. Regras construídas mediante controle social independente, em diálogo com as comunidades, com o fim de indicar a governança da segurança pública deveriam constituir um parâmetro fundamental na avaliação da atividade policial.

    Isso não significa o reconhecimento puro e simples da legitimidade democrática com base na vitória de um determinado projeto nas urnas, mas sim da necessidade de que as diretrizes e planejamentos estabelecidos sejam precedidos de processos de participação e discussão racional e fundamentada sobre a necessidade e a viabilidade de medidas capazes de restringirem direitos. Ao utilizar a deferência democrática como ferramenta, o sistema de Justiça pode indicar os horizontes e os quadrantes nos quais a polícia deve atuar. 

    Exigir a atuação democrática antes do estabelecimento de regras como fator de limitação da atividade pode ser um antídoto à falta de regras transparentes e um estímulo à participação social, além de criar as condições necessárias para a responsabilização do Estado quando ele não observa esses quadrantes ou quando extrapola essa governança em nome do sigilo. O desafio é premente.

domingo, 30 de maio de 2021

O golpe de 2016 e o Bolsonaro fizeram a vacinação virar uma zona

 

Crédito de imagem CAROL ÂNGELO


POR SYLVIO DA COSTA JUNIOR


O Brasil tem experiência em largos e amplos programas nacionais de vacinação desde 1973. A Política Nacional de Vacinação (PNI) é um dos muitos exemplos exitosos do SUS, que teve o mérito de eliminar do país a Poliomielite e a Varíola, ou ainda que, em 2010, vacinou 100 milhões de pessoas em três meses contra a H1N1. Historicamente o Ministério da Saúde (MS) se compromete com a organização das grandes campanhas nacionais de vacinação, porém desde o golpe de 2016 contra Dilma vimos a olhos vistos o MS se envolver em um show de trapalhadas, das mais variadas, que causam sofrimento e morte a milhares de brasileiros.


Em 2018, no governo do usurpador Michel Temer, o MS orientou o fracionamento de doses de Febre Amarela por falta de vacinas. A Febre Amarela (FA) é uma doença transmitida por um mosquito muito comum no Brasil, o mesmo da Dengue, e apresenta uma das mais altas taxas de letalidade entre as arboviroses: em torno de 50%. Isso mesmo, metade de quem pega Febre Amarela morre.  Posto isto, entre 2017 e 2018, durante o Governo Temer, vimos um aumento dos casos de FA, principalmente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Nesse cenário, o MS orientou o fracionamento das doses, ou seja, aplicar 1/5 da dose recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS): o que deveria ser de 0,5 ml do soro passou a ser de 0,1 ml. Uma dose normal agora passou a ser usada em até cinco pessoas. Motivo? Não tinha vacina suficiente! Simples assim. Foi realizada essa campanha de vacinação sem informações precisas sobre a segurança ou o tempo de imunização da vacina.


Já no Governo Bolsonaro, o MS ficou sob cuidados do privatista Mandetta, do empresário da saúde Teich e do pior ministro da saúde da História, o desqualificado general trapalhão Pazuello. Na falta de orientação do Ministério da Saúde, vários municípios no final do mês de abril, como o Rio de Janeiro, que concentra sozinho mais de 6,5 milhões de habitantes, tiveram a desastrada idéia de vacinar a população com o máximo de doses disponíveis - diferente da orientação dos institutos produtores de vacinas para aplicarem a primeira dose e guardarem a metade das doses que receberam para garantir a segunda dose em todos que ali haviam se vacinado. Baseados em achismo e com forte irresponsabilidade, vários gestores municipais aplicaram o lote total de vacinas, sem a devida guarda para segunda dose. Assim, com o atraso da entrega de mais doses, não só o calendário vacinal atrasou, como também houve um prolongamento entre as doses que ainda não sabemos qual resultado clinico terá na população. Na falta de orientação e segurança nas posições do Ministério da Saúde, os gestores se sentem à vontade para fazerem a vacinação da forma que lhes vier à cabeça.


A bagunça é tão grande que no dia 15 de maio o Instituto Butantã anunciou que pararia por completo a produção da vacina Coronavac por falta de insumos, e o mesmo aconteceria com a Fiocruz em relação à produção da vacina AstraZeneca/Oxford. Não bastasse essa informação preocupante, na mesma semana fomos surpreendidos com o anúncio de que o Comitê Olímpico Internacional (COI), com a anuência do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), vacinará atletas para as disputas dos Jogos Olímpicos de Tóquio daqui a dois meses. Em um momento em que faltam vacinas, que a produção nacional de vacinas está parada e sem previsão de retorno, com milhões de brasileiros sem a segunda dose da vacina, uma segunda porta de acesso é criada para vacinar jovens atletas para uma competição que nem deveria estar acontecendo. Foi largamente anunciado que no Dia das Mães as famílias não deveriam confraternizar fisicamente juntas para evitar a propagação do vírus, porém, por motivos comerciais, não só as aglomerações e viagens internacionais acontecerão, mas foi criada outra porta de entrada para vacinação.


Nesse cenário de descaso e fazendo a vacinação virar um circo de horrores, chegamos no dia 16 de maio a 435 mil mortos por Covid, o equivalente a mais de duas vezes os mortos pelas bombas atômicas que os Estados Unidos jogaram no Japão, país sem armas nucleares e que já tinha assinado rendição antes das bombas norte-americanas. O golpe de 2016 não apenas gerou uma anarquia política no país como também uma montanha de cadáveres e mortes evitáveis, caso houvesse seriedade com o Sistema Público de Saúde e seus programas. Desde 2016, quando o Ministro Ricardo Barros, do PP, assumiu o Ministério, até os dias atuais, temos visto a forma displicente e irresponsável com a qual cargos técnicos foram ocupados quer por militares sem qualquer qualificação para o cargo, quer por políticos do Centrão, como pagamento pelo golpe 2016 e para garantir a governabilidade do Governo Bolsonaro. Vimos nesses anos situações bizarras, como assessor parlamentar do Centrão e dono de bar assumir a Coordenação Nacional de Saúde Bucal, como a “capitã cloroquina” assumir a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, ou um dono de curso de inglês ser consultor informal para assuntos de Saúde Pública, ou ainda um ministro especialista em Logística mandar as vacinas destinadas ao estado do Amazonas para o estado do Amapá e a do estado do Amapá para o Amazonas. A vacinação na pandemia apenas deixou exposta essa leviandade que já existia desde 2016. Tudo isso seria cômico se não tivesse impacto direto nas vidas das pessoas. O Bolsonaro é um dos grandes responsáveis, mas não o único; todos os golpistas têm suas digitais na esculhambação que virou o Ministério da Saúde e o cuidado com a vida dos brasileiros.


A NATUREZA SEMPRE DÁ CERTO!

 


Ilustração CACINHO


POR MANI CEIBA


Oi! Sem muitas delongas, com as palavras de Maria Muniz (Maya Tupinambá), inicio este texto:

“Com a terra me sinto muito forte, porque sem ela não temos firmeza para nos sustentarmos. Sabemos que a terra nos dá o direito de andarmos e de nos alimentarmos. Sem ela não temos forças nem vida. As matas nos enriquecem, nos dão muita energia de vida, saúde e a conexão com os seres espirituais. Os encantados de nossas matas nos trazem paz, harmonia e muitos ensinamentos.

“A natureza é um tudo, porque diante de sua brisa nos serve uma calma para nossos espíritos e onde pudermos encontrá-la, temos tudo aquilo de bom, como a saúde e a fé em nossos encantados, a paz e um grande equilíbrio para sobrevivermos.”

Nós, que estragamos o planeta diariamente, consumimos filmes que mostram como poderia ser escassa a vida sem a natureza e o quanto dependemos dela. Filmes como Mad Max, no qual a personagem se esforça para retornar ao "lugar verde" – um oásis cheio de árvores no deserto em que a Terra se tornou. A água é a coisa mais valiosa e, sem árvores, a vida quase não existe. Nós sabemos da verdade disso!

 

As árvores cuidam do armazenamento de carbono, da conservação do solo e até da regulação do ciclo da água. E sempre os cientistas descobrem algo mais. Nosso sistema alimentar é todo conectado e dependente da natureza, mas ainda agimos como se fosse descartável, para ganhos econômicos ou como um inconveniente no caminho do desenvolvimento humano.


Não há como negar. Quem nunca pensou ou sentiu algo parecido com: “Quem vai ganhar, a Natureza ou homem?”; “Já imaginou a Terra sem humanos?”; “Será que o planeta seguirá bem sem a nossa presença?”

Qualquer pessoa que tenha um pouco de contato com a natureza sabe da incrível capacidade dela de regeneração e persistência. Olhe para um barco no fundo do mar e veja a quantidade de vida que pode abrigar. Ou lembre-se daquela árvore que, ao nascer, estava embaixo de uma pedra e fez a curva necessária para receber a luz solar. Estes dois exemplos darão a você um vislumbre do que estou falando. 

Imaginar a superfície terrestre sem humanos não é mais tão ficção assim. E todos sabem como a natureza pode ser avassaladora. Não precisa de muito para imaginar que ela pode seguir bem sem nós. E nós? Seguimos bem sem ela?

Dentro de tudo que somos, somos parte dessa natureza também. E como negar seu valor até nas coisas mais egoístas das nossas vidinhas. Por mais “de cidade” que você seja, não gosta de um banho de mar? Cachoeiras deslumbrantes? Beijar debaixo da sombra da árvore com aquelas folhas secas caindo? Pode odiar brócolis, mas entende a necessidade de seu filho comer sem agrotóxico? Ou o quanto a melhora de um problema de saúde tem relação com sua alimentação? 

Parece sempre que temos que estar em um lado ou outro. Um indígena é julgado se está usando um celular. Ele é da selva! Mas você consegue ficar acampando na mata sem tomada ou sabe como atravessar um rio sem a ajuda do Google. Ou sabe qual planta pode matar sua sede? Ele, sim. 

Escolhi ir pro mato. Sim, tenho uma personalidade que ajuda muito, mas fiz escolhas, como ter parto natural humanizado. Meu primeiro parto foi com indígenas e duas lições que ouvi das parteiras ficaram marcadas: 

– A natureza sempre dá um jeito de dar certo, mesmo que nossa mente não entenda! 

Naquele instante, aprendi sobre a arrogância do saber.

Eis agora a segunda lição: quer saber a melhor maneira de fazer algo? Veja como a natureza lida com problemas parecidos. Nesse caso, a segunda lição se referia ao fato de eu ter um corpo muito pequeno e estar com uma barriga gigante. Uma parte da minha família branca – alopática, da cidade e muito preocupada com isso – me ligava todo dia. Minha parteira indígena disse: “As melhores mangas nascem das mangueiras mais baixas. As crianças podem subir para colher, ela é generosa e seus galhos podem ficar muito carregados e pesados, porque estão mais perto do chão e sabem que podem apoiar seus frutos. Ela é humilde.”

É verdade, os povos originários têm uma forma própria de ver e estar dentro do meio ambiente. E se ouvíssemos, ao invés de supor como é? E se dessa troca descobríssemos que temos mais em comum do que se imagina? E que, assim como eles que buscam uma troca mais equânime com a natureza, podemos aprender também a valorizar a nossa estadia aqui neste planeta e que também temos algo para mostrar e acolher.


Maria Maya Tupinambá é Maria José Muniz de Andrade Ribeiro. Mês que vem faz 72 anos, nasceu na aldeia região da Água Vermelha do posto indígena Caramuru, município de Pau Brasil, na Bahia. Mora na Aldeia Milagrosa do posto Caramuru.

Maria Maya Tupinambá é professora, liderança, conselheira e algo mais! Muito mais!




Crédito imagem/arquivo pessoal

O meio: um ambiente inteiro

 

Crédito da imagem CACINHO


POR EDUARDO ALVES 


Quando o filme Matrix foi apresentado, em 1999, e as coisas - máquinas e tecnologias digitais - todas criadas por pessoas sapiens, mostraram o mundo destruído, sacudiu-se uma aflição generalizada. Aquilo era o mundo aguardado? Ou poderia ainda ser pior a fotografia? Agora, chegamos em 2021 em uma velocidade tétrica de morte e destruições. Estamos nós, sapiens, potencialmente destruidores, em um processo de exterminar o que tem vida e não é coisa. O ambiente inteiro, do qual nós sapiens fazemos parte, sofre a decadência de um necrocapitalismo necrosado em pensamentos e ações. Sentimentos esmagados por um meio que a morte e as doenças que ameaçam a vida andam em um tapete estendido pela política da destruição organizada por setores sociais que, em nome do lucro, abandonaram a vida das outras pessoas. São justamente as pessoas, que são ontologicamente potentes para a criação em sua grande maioria, as que mais padecem em vida e sem vida.

 

Atenção!  5 de junho é o Dia Mundial do Meio Ambiente e esse futuro próximo se anuncia no mesmo dia em que os sentidos fazem o corpo, ainda vivo biologicamente, padecer quando aparece a informação de que foram dizimadas mais de 450 mil pessoas no Brasil. O pessimismo da razão, em análises socio-históricas, amarga ainda mais. O genocídio que predomina no mundo destrói o ambiente inteiro e sapiens são parte desse ambiente que é destruído cada vez mais para o lucro, ao mesmo tempo que é organizado com mentiras e atitudes autoritárias de controles e opressões diversas. Radicalizar a democracia em todos os aspectos é mais que necessário para se manter, comer, morar, sonhar, agir e viver.

 

Nós, homens e mulheres, sapiens, vivos, temos o desafio de impor outra ordem para que o viver exista. Um ambiente inteiro nos chama atenção para que transformações da natureza e multiplicação do comum não sejam sinônimos ideológicos de destruição. Não há transformação para sustentar materialmente e espiritualmente as pessoas, quando todos os elementos vivos são grosseiramente destruídos para a mercadoria emplacar o capital. Quando o lucro é colocado acima de todas as coisas a vida padece no pior encontro com a inexistência. As necrologias que ampliam os termos políticos para tratar do decrépito capitalismo e das mais opressoras formas de poder são obstáculos para tudo que faz jorrar a vida. A dignidade humana inexistente é uma demonstração óbvia desse absurdo cronológico que amplia exploração, dominação, destruição e controle autoritário, com a necroversão mais dolorosa.

 

O que é chamado de Meio Ambiente é um ambiente inteiro, que combina o grande comum – águas, florestas, terras e minerais, seres sencientes ou não sencientes, sapiens – usurpado por um pequeno número de pessoas. O mesmo pequeno em quantidade numérica que se apropriou da grande maioria de sapiens e forçou que o objeto mercadoria, que é transformada a força de trabalho, tomasse a vida. Mas nós, que só temos a força de trabalho para viver e só podemos viver ao vender essa mercadoria, não somos coisas.

 

Como inicia o poeta em Tabacaria, “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Ou seja, nós sencientes, humanos, somos potenciais construtores da potência criativa. Somos nós as pessoas que podem se construir, pensar e agir como sujeitos que fazem a vida rodar, viver e valer. Nós somos tudo e fazemos parte do ambiente inteiro com o grande desafio de conquistar a vida com a mais ampla e plena dignidade em todos os aspectos e em todas as dimensões. Na relação entre pessoas para produzir, transformar a natureza, criar para além do natural e dar sentido ao viver, nós somos sujeitos fundamentais para pensar e fazer. 

 

Portanto, o Dia Mundial do Meio Ambiente é o nosso dia para crescer, aprender, construir a inteligência coletiva e fazer o comum viver. Não transformamos comum em natural, pois, temos nós a consciência que as relações socio-históricas podem conquistar um mundo de ampliação e superar esse mundo de destruição, exploração e guerra que nos é imposto. Vamos fazer acontecer a vida e nesse dia emblemático viver!

CPI DA COVID, ESPAÇO ONDE A ESQUERDA VIROU COADJUVANTE

Ilustração Cacinho


POR MARLUCIO LUNA


    Aberta em 27 de abril, a CPI da Covid ocupa há um mês o centro do noticiário político nacional. Os absurdos cometidos pelo (des)governo Federal na maior crise sanitária do país, o despreparo da equipe encarregada de lidar com o problema, a falta de compaixão e de humanidade com as vítimas da doença, tudo isso já é mais do que perceptível para a sociedade brasileira. Cabe à Comissão do Senado reunir dados, depoimentos e provas que indiquem de forma inequívoca que só há um caminho: o impeachment do inepto ocupante da cadeira presidencial. E para que a CPI chegue a tal conclusão, precisamos da esquerda como protagonista nos debates – algo que não aconteceu até o momento.

    A Comissão tem dois senadores da esquerda entre seus titulares: Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidência da CPI, e Humberto Costa (PT-PE), que foi ministro da Saúde do primeiro governo Lula, entre 2003 e 2005. Há ainda Rogério Carvalho (PT-SE), como suplente. Entretanto, apenas o primeiro – e por ser o vice-presidente da Comissão – tem ocupado espaços e assumido a responsabilidade de protagonizar debates. Os demais, no máximo, são esforçados coadjuvantes.

    Mas a CPI da Covid não é um clube privê, onde apenas os seus “sócios” têm o direito de participar. Os debates da Comissão são abertos a todos os senadores. Quem acompanha as sessões pela TV Senado – sim, tenho esse distúrbio – sabe que os defensores do (des)governo Bolsonaro se dividem em dois grupos: os completamente idiotizados e os incompetentes. Com isso, a oposição vem fazendo a festa. As acusações se multiplicam; os depoentes se limitam a mentir, dar respostas vazias, manter o silêncio ou, em poucos casos, confirmar todas as atrocidades cometidas a mando do capitão de milícias. É praticamente um jogo de ataque contra defesa.

    O campo progressista tem todas as condições para assumir o protagonismo na CPI da Covid, mas não foi isso que vimos neste primeiro mês de trabalho. Em um primeiro momento, Renan Calheiros (MDB-AL) – que pode ser tudo, menos do nosso campo político – monopolizou as atenções. Muitos militantes e/ou eleitores dos partidos de esquerda viraram torcedores do coronel da vez em Alagoas. De repente, Renan tornou-se depositário das esperanças da oposição.

    Com o andamento dos trabalhos da CPI, ficou cada vez mais explícita a indigência dos debates. A bancada (des)governista, fiel à natural falta de inteligência, fornecia ela mesma os argumentos para que a oposição fechasse o cerco a figuras dantescas – como o ex-chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) Fábio Wajngarten, o ex-chanceler Ernesto Araújo (o “Beato Salu”, como ficou conhecido nos corredores do Itamaraty) ou o ex-sinistro da Saúde Eduardo Pazuello. Então, vem a pergunta, quem se destacou nessas oitivas? 

    O depoimento do ex-chefe da Secom foi um festival de respostas evasivas, mentiras, desmentidos e acusações de supostas manipulações da grande imprensa. Wajngarten falou por quase 11 horas. Ouviu as perguntas e as respondeu com desfaçatez. Desrespeitou a CPI e os próprios senadores. Renan Calheiros, jogando para a plateia, chegou a pedir a prisão do “estrategista” que comandou a Comunicação do Palácio do Planalto durante quase toda a pandemia. 

    Ninguém questionou a relação nada republicana que a empresa de Wajngarten mantém com as redes de TV bolsonaristas por meio da destinação de polpudas verbas publicitárias, principalmente para a Record e a RedeTV – o que direta ou indiretamente contribuiu para um noticiário “menos pesado” sobre a pandemia. A esquerda ficou a reboque de perguntas sobre eventuais contradições entre a entrevista do ex-chefe da Secom à Veja e o depoimento.

    A ida de Ernesto Araújo à CPI da Covid foi a prova inequívoca de como os setores progressistas não sabem se posicionar e marcar presença no debate dentro da Comissão. Em um longo depoimento, “Beato Salu” recebeu dezenas de ataques. No entanto, as pancadas mais duras partiram de representantes do setor industrial e do agronegócio, muito mais preocupados com os ataques do ex-chanceler à China – e a consequente perda de negócio$ com a maior economia do planeta – do que com a falta de insumos para fabricação de vacinas, à dificuldade de importação dos imunizantes ou os esforços para importação de cloroquina e outras invencionices para o gado.

    A senadora Kátia Abreu (PP-TO) virou a musa do dia. Seu discurso contra Araújo foi saudado efusivamente pela direita engomada e, surpreendentemente, também pela esquerda. Em um passe de mágica, esqueceram que a nobre parlamentar ficou conhecida internacionalmente como “Rainha da Motosserra” ou “Miss Agrotóxico”. Ela sempre foi uma ferrenha opositora da reforma agrária, atuando como porta-voz do latifúndio no Congresso Nacional e expoente da ala elegante da Bancada do Boi. 

    Até mesmo sites do campo da esquerda rasgaram elogios à senadora. O blog O Cafezinho estampou como manchete naquele dia Kátia Abreu detona Ernesto Araújo: “negacionista compulsivo” [https://www.ocafezinho.com/2021/05/18/katia-detona-ernesto-araujo-na-cpi-negacionista-compulsivo/]. O Brasil 247 comemorou a atuação da “Rainha da Motosserra” com a matéria cujo título destacava, ainda que indiretamente, a coragem dela: Kátia Abreu enquadra Ernesto Araújo e sua “memória seletiva” [https://www.brasil247.com/cpicovid/katia-abreu-enquadra-ernesto-araujo-e-sua-memoria-seletiva]. O Portal Vermelho, aquele que se apresenta como “A esquerda bem informada”, foi além, alçando a “Miss Agrotóxico” quase à condição de carbonária. Começou assim a matéria sobre o depoimento do Beato Salu: 

    “Numa fala arrebatadora, a senadora Kátia Abreu (PP-TO) criticou duramente o depoimento, nesta terça-feira (18), do ex-ministro das Relações Exteriores na CPI da Covid, pelo qual negou que tenha atacado a China e dificultado a importação de insumos para a produção de vacina contra o coronavírus.” [https://vermelho.org.br/2021/05/18/senadora-katia-abreu-detona-ernesto-araujo-pelas-mentiras-ditas-na-cpi/]

    Coube ao site da Revista Piauí, uma publicação pertencente a uma família de banqueiros, a matéria com tom mais crítico (e mais engraçado) sobre o depoimento de “Beato Salu” e a intervenção da senadora: Ernesto Araújo é o primeiro agrotóxico rejeitado por Kátia Abreu [https://piaui.folha.uol.com.br/herald/2021/05/18/ernesto-araujo-e-o-primeiro-agrotoxico-rejeitado-por-katia-abreu/]

    Já a oitiva do ex-sinistro da Saúde precisou ser interrompida e retomada na manhã seguinte – para sorte da esquerda. O primeiro dia foi marcado pelo total despreparo da esquerda para “espremer” o depoente com maior volume de erros no combate à pandemia: o general “PazuErro”. Ficou claro que o campo progressista não tinha feito o dever de casa. Pazuello apresentou dados falsos, informações inverídicas, versões fantasiosas. O debate ficou rebaixado, pois não havia argumentação contrária ao “gênio da logística”. Pela primeira vez, um membro do (des)governo ficou em vantagem na CPI. Ainda bem que “bateu medinho” no corajoso general e ele passou mal, causando a suspensão do depoimento. 

    No dia seguinte, depois que as respectivas assessorias parlamentares municiaram os senadores com material facilmente encontrado na internet (textos, áudios e vídeos), “PazuErro” foi confrontado com a verdade e saiu desmoralizado. Mais uma vez, a esquerda não se destacou. Nem Humberto Costa, um ex-ministro da Saúde, conseguiu ir além das perguntas básicas e das análises rasteiras feitas por seus colegas do centro e até da direita.

    A esquerda tem um papel fundamental no processo de desconstrução do (des)governo Bolsonaro. Apenas os setores progressistas falarão a sério a palavra impeachment. Mas o apoio a isso depende, antes de tudo, do protagonismo de parlamentares e lideranças da esquerda em todos os espaços da sociedade. A CPI da Covid pode representar um duro golpe no fascismo reinante no Palácio do Planalto. Mas não será acendendo velas para Renan Calheiros ou endeusando a “fala arrebatadora” de Kátia Abreu que faremos o impeachment avançar.


sexta-feira, 14 de maio de 2021

VOTO IMPRESSO: O QUE ESTÁ POR TRÁS DESSA BOMBA?

 Por Alvaro Britto


Recentemente participei de um debate sobre a volta do voto impresso, motivo de uma proposta de Emenda à Constituição em tramitação na Câmara dos Deputados desde 2019 e defendida pelo presidente da República e seus aliados.  Coincidentemente, ela voltou a ser prioridade na agenda dos apoiadores do governo a partir do acordo para eleger o atual presidente da Câmara Arthur Lira e da aproximação das eleições de 2022. 

O principal argumento é a defesa da segurança do voto e da lisura do pleito, através da checagem do voto eletrônico com sua versão impressa. Entretanto, estudando a história do Brasil é fácil identificar que a totalidade das grandes fraudes e crimes eleitorais aconteceram justamente antes da implantação da urna eletrônica nas eleições municipais de 1996. 

As fraudes do voto impresso 

Duas práticas fraudulentas, desde o período imperial, eram conhecidas como “bico de pena” e a “degola”. A primeira consistia em manipulações realizadas pelas mesas eleitorais, que falsificavam assinaturas e até mesmo o preenchimento de cédulas. Já a segunda prática consistia na exclusão de adversários de forma deliberada do páreo eleitoral, como se o candidato tivesse sido degolado. 

Apresentar-se como outra pessoa, usando os documentos dela; votar mais de uma vez na mesma eleição, aproveitando do alistamento múltiplo; passar documentos falsos a fim de inclusão ou exclusão do alistamento eleitoral, eram outras práticas comuns.

Na República

Já no período republicano, temos o voto de "cabresto", que era o controle por coronéis e grandes figuras da época, que abusavam do poder e usavam até ameaças pra comprar votos de cidades inteiras. Cabresto é aquele arreio de corda para controlar animais.

Outras fraudes da época: reter título de eleitor, impedindo assim o voto; alegar idade falsa para poder votar; tentar votar mais de uma vez, ou no lugar de outra pessoa falecida; comprar, vender ou estabelecer qualquer outro tipo de troca pelo voto.

Emblemático foi o Caso Proconsult , uma tentativa de fraude nas eleições de 1982 ao governo do RJ para impossibilitar a vitória de Leonel Brizola, candidato de oposição, de modo a favorecer Moreira Franco, apoiado pelo regime militar. A fraude consistia em transferir votos nulos ou em branco para que fossem contabilizados para Moreira.  

Urna eletrônica

A urna eletrônica foi implantada no Brasil nas eleições municipais de 1996. Mais de 32 milhões de brasileiros, um terço do eleitorado da época, votaram nas mais de 70 mil urnas eletrônicas produzidas para aquelas eleições. Participaram 57 cidades com mais de 200 mil eleitores, entre elas, 26 capitais. 

Ao longo desses 25 anos, nunca houve comprovação de fraude. Pelo contrário, o sistema de votação eletrônico brasileiro é modelo para diversos países do mundo, pela garantia de eleições limpas, seguras, transparentes e auditáveis. Em 2020, foi realizada pesquisa que verificou que 73% dos brasileiros aprovam o uso da urna eletrônica.

Muito diferente dos EUA, cujo sistema de voto impresso tem sido proclamado como modelo pelos defensores da mudança no Brasil. As eleições estadunidenses de 2020 tiveram inúmeros problemas, com vários pedidos de recontagem, recursos judiciais e, para dificultar ainda mais, a inexistência de uma autoridade eleitoral nacional, como é a Justiça Eleitoral brasileira. Lá, cada estado tem sua regra própria e é a mídia que anuncia o resultado do pleito.

Sistema híbrido

Na verdade, a proposta em tramitação no Congresso e defendida pelos aliados do governo prevê que a urna eletrônica tenha acopladas uma impressora e uma urna transparente onde o voto impresso seria depositado para conferência do eleitor que assim desejar.

Já houve experiência com urnas híbridas no Brasil nas eleições de 2002 em Brasília, Tocantins e Sergipe. Na época, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu implementar o voto impresso em 5% das urnas para auditar o resultado da votação eletrônica. Ao final do processo, foi confirmada a eficiência e a segurança eletrônica. 

Segundo o TSE a implantação do sistema em todo o Brasil teria um custo aproximado de R$ 2,5 bilhões. Em plena pandemia, com falta de vacinas, valor reduzido do auxílio emergencial, aumento do desemprego, diminuição dos investimentos públicos em diversos setores, como a educação, quebradeira de micro e pequenas empresas, essa proposta é no mínimo irresponsável. 

Onde está a fraude eleitoral?

Na verdade, as denúncias de crime e fraude no processo eleitoral de 2018 na disputa presidencial do Brasil, amplamente comprovadas e documentadas e que são investigadas em CPI Mista do Congresso Nacional e por Inquérito no Supremo Tribunal Federal são a veiculação das chamadas fake news e do disparo ilegal de mensagens em massa realizados pela campanha do então candidato Jair Bolsonaro. 

O que está por trás dessa proposta de voto impresso é a tentativa de desqualificar o processo eleitoral e colocar em dúvida o resultado das eleições de 2022, como buscou fazer Donald Trump nas eleições de 2020 nos EUA.   Com a possibilidade real de derrota, os bolsonaristas tentarão criar um clima de instabilidade e de desconfiança para tentar uma virada de mesa. Mas estamos atentos. O Pavio Curto também! Não passarão!







DISSERTANDO E SAMBANDO COM MARTINHO

 Por Mani Ceiba



Felicidade, passei no vestibular

Mas a faculdade é particular...

Livros tão caros tanta taxa pra pagar

Meu dinheiro muito raro

Alguém teve que emprestar


Não é novidade pra ninguém que a sociedade é racista e a questão é estrutural. Não há como existir um projeto de desenvolvimento sem que todos os grupos estejam incorporados. Sabemos que negros, pobres, mulheres e indígenas não estão. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 36% dos jovens brancos entre 18 e 24 anos estão cursando ou terminaram a graduação. Entre pretos e pardos, este percentual cai pela metade: 18%.

Outros dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informam que – entre 2010 e 2019 – o número de alunos negros no ensino superior cresceu quase 400%. Os negros chegaram a 38,15% do total de matriculados, percentual ainda abaixo de sua representatividade no conjunto da população, que é de 56%. Em cursos como Medicina, Design Gráfico, Publicidade e Propaganda, Relações Internacionais e Engenharia Química, o número de negros é ainda menor. 

Isso me fez lembrar uma vez que estava na sala de espera de um ginecologista. O médico chegou, pegou as fichas e foi pra sua sala começar os atendimentos, quando duas mulheres se dirigiram até o balcão e perguntaram:

 - Ele é o médico?

 Diante da confirmação da recepcionista, elas disseram claramente: 

- Mas ele é preto! 


Morei no subúrbio, andei de trem atrasado

Do trabalho ia pra aula, sem

Jantar e bem cansado

Mas lá em casa à meia-noite tinha

Sempre a me esperar

Um punhado de problemas e criança pra criar


Acesso à universidade sempre foi um grande desafio para estudantes negros e periféricos.  Apesar de vivermos em um país recordista em desigualdade social e a TV fingir que não, quem vive fora da sua bolha sabe que os desafios são imensos e reais: dinheiro, acesso aos locais de estudo ou internet. Muitos, principalmente mulheres, dividem seus estudos com trabalho, tarefas domésticas, cuidar de filhos ou dos irmãos.

Sempre lembro da minha avó dizendo que tudo começa de verdade depois do “foram felizes para sempre”. Uma vez dentro da universidade, outros desafios aparecem para que se consiga permanecer nela. Além dessas dificuldades que enfrentam desde o ingresso na universidade, as e os jovens ainda se deparam com um choque de realidade cultural, social e econômica que, com o passar do tempo, vai permear a sua vida acadêmica. Os próprios professores fazem cobranças como se não conhecessem a realidade. Érica Belon, doutora em Administração de Negócio, mestre em Educação, especialista em Comportamento Humano, ouviu de seu professor, nos meados da década de 1990 na sua primeira graduação:

- Ah, querida! Você ainda não entendeu? Pobre não faz faculdade, pobre compra máquina de costura em vez de um computador! Faça isso! Não posso fazer nada por você!


Mas felizmente eu consegui me formar

Mas da minha formatura, não cheguei participar

Faltou dinheiro pra beca e também pro meu anel

Nem o diretor careca entregou o meu papel


Olhe na sua sala de faculdade, quantos negros há? Olhe para seus professores, quantos são negros? Olhe para seus colegas de trabalho, quantos são negros e quais cargos ocupam? 

E você, já tinha reparado nisso?


E depois de tantos anos

Só decepções, desenganos

Dizem que sou um burguês

Muito privilegiado

Mas burgueses são vocês

Eu não passo de um pobre-coitado

E quem quiser ser como eu

Vai ter é que penar um bocado


Assim termina o samba de Martinho da Vila. Estamos acostumados a cobrar e julgar a pessoa que alcançou algo como um privilegiado – como se nosso país fosse igualitário e justo e não houvesse classes sociais tão diferentes e, principalmente, não houvesse racismo.

Racismo se combate no dia a dia e na desconstrução. É no ouvir e no aceitar, observar e aprender. Os sinais do racismo aparecem não apenas nas limitações ao acesso de negras e negros às universidades, mas também quando o conhecimento produzido por eles é desconsiderado. Quantos pesquisadores e cientistas negros não se destacam por não terem visibilidade como os brancos?

A cultura do brasileiro, que pensa superficialmente, é baseada no eurocentrismo. A visão de mundo de que tudo o que vem da Europa, dos brancos – cultura, artes, línguas, religiões, política – é superior ao que tem origem nos povos da América, África, Ásia e Oceania. Os europeus em suas invasões subjugaram as demais culturas, mas o pior é o povo dominado acreditar que pertence a esse povo dominador e também virar as costas para a sua origem e identidade. E no momento presente chamam isso de patriotismo.


Referências: samba pequeno burguês Martinho da VILA/;  Ericabelon-escoladecarreiras/Unicamp/ almapreta/IBGE/IPEA

Para conhecer a história da música O pequeno burguês, de Martinho da Vila, acesse https://musicasbrasileiras.wordpress.com/2014/07/02/o-pequeno-burgues-martinho-da-vila/ 


XUXA, A RAINHA DO FASCISMO

 Por Sylvio da Costa Junior


Não poderia deixar de comentar uma situação ocorrida em meados de abril e que ronda a mente da direita fascista: o nosso famigerado sistema prisional. O Brasil conta, em números absolutos, com quase 800 mil presos, uma das maiores populações carcerárias do mundo, atrás apenas dos EUA (população de 350 milhões de habitantes) e da China (1 bilhão e 300 milhões de habitantes). A política de encarceramento remonta ao período do Brasil colônia e em nada de substancial foi alterada. As polícias, e em especial a militar, foram concebidas na esteira das Divisões Militares da Guarda Real de Polícia do Rio de Janeiro, e se constituíram em guardas pretorianas que usam a repressão para manter as populações mais pobres ‘calmas’, sem se rebelarem contra os sistemas social e econômico. A política de repressão se dá diariamente nas incursões policias nos bairros mais pobres e levou ao encarceramento de enormes contingentes populacionais formados majoritariamente por afro-brasileiros pobres. Somado a isso temos hoje no Brasil 40% de toda população carcerária em prisões provisórias, ou seja, sem julgamento e majoritariamente por crimes como o tráfico de pequenas quantidades de drogas (25%) e roubos (30%). O homicídio corresponde a apenas 11% do total, segundo os dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, o CNJ.


Mesmo com a 3ª maior população carcerária do mundo, a sensação e os indicadores de segurança em nada melhoraram, levando-nos a crer que estamos no caminho errado. Mas estranhamente a direita acredita que devemos ter mais leis repressivas e mais incursões policiais nas periferias, em uma crença absurda, descolada da realidade e de exemplos exitosos no mundo. Política de segurança se faz com combate à desigualdade social, nossa maior ferida aberta, com programas robustos de geração de emprego, aumento da renda, radicalização de políticas universais de educação, de saúde e de assistência social. 


Nesse cenário caótico e com parte da sociedade brasileira tendo uma mentalidade de senhor de escravos, as cadeias brasileiras exercem a função de fazer o preso ‘’pagar pelo seu crime’’ e não recupera o indivíduo. Assim, as cadeias passaram a ser locais de crueldade e de crimes mais cruéis que a maioria dos crimes cometidos por quem está por algum motivo preso. Nesse abandono, organizações como PCC, CV, dentre outras, passaram a gerir a vida cotidiana das cadeias com seus códigos e leis próprios. Não por acaso, diferente de cartéis colombianos, mexicanos, etc., os grupos ligados ao narcotráfico no Brasil surgiram de dentro das cadeias, característica ímpar, verdadeira jabuticaba, como organizações oriundas do interior do Estado e sob sua tutela. Surgiram basicamente porque esse grande contingente humano de encarcerados foi entregue à própria sorte.


Como exemplo do argumento sustentado quando analisada a população carcerária no Brasil, os indicadores de saúde apresentam números assustadores: 0,6% da população brasileira é portadora do vírus HIV; entre os presos a taxa de incidência é 60 vezes maior que na população geral; a tuberculose é de altíssima incidência dentro dos presídios e casas de custódia, assim como outras doenças, que vão de sarna à desnutrição.


Isto posto, em audiência pública de uma Comissão da Assembleia do Estado do Rio de Janeiro, a Alerj, que debatia cuidados com animais e pets em geral, a ex-apresentadora infantil Xuxa Meneguel fez uma proposta exótica referente aos cuidados com animais. Segundo Xuxa, como os cachorrinhos, gatinhos e outros pets estariam servindo de cobaias para a indústria de fármacos. Então propôs, para proteger os animais, que se usasse presos como cobaias humanas nesse setor da indústria. Ao longo da audiência na comissão ela diz: “O pessoal dos direitos humanos não vai gostar muito”. Por que será? Não precisa ser esquerdista para não gostar; basta estar de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, que afirma que “(...) ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”, ainda mais sob a tutela do Estado. Assim, a declaração da Xuxa é pré 1948. Não satisfeita com a polêmica frase, ela acrescentou que “assim eles poderiam ser úteis para sociedade”. Recordo-me de um famoso médico com doutorado em antropologia e medicina, chamado José, que deve ter servido de inspiração para a ex-apresentadora. Certa vez, para continuar seus estudos antropológicos e pesquisas sobre a hereditariedade, ele usou prisioneiros para a experimentação humana. Os experimentos realizados por José, por exemplo, em gêmeos, abrangiam a amputação desnecessária de membros, a infecção intencional de um gêmeo com tifo ou outras doenças e transfusão de sangue de um gêmeo no outro. Esse jovem medico José ficou conhecido por seu nome em sua língua natal, o alemão Josef Mengele. Depois, com o fim do nazismo, regime do qual ele era um destacado entusiasta, seus experimentos científicos foram na realidade denunciados como um dos mais cruéis crimes praticados nas prisões nazistas.  


Em janeiro de 2001, em uma gravação de um programa da Xuxa, ocorreu um incêndio no qual 26 pessoas ficaram feridas, sete delas em estado grave. A menor T.G.V., de apenas 7 anos na época, sofreu as mais graves queimaduras (de 2º e 3º graus). Como as crianças estavam sob tutela dos organizadores do evento e com responsabilidades legais sobre sua guarda, não é difícil imaginar que o ocorrido poderia levar à cadeia os responsáveis. Nesse caso, se a ex-apresentadora infantil fosse responsabilizada judicialmente e consequentemente condenada, ela manteria seu posicionamento sobre utilização de presos para experimentos? Ou seria apenas para presos afro-brasileiros?


Xuxa Meneguel teve seu dia de Xuxa Menguele, a rainha dos fascistas.