domingo, 5 de setembro de 2021

A urgente necessidade da discussão e construção de um novo modelo de desenvolvimento

“Meu amor, olha só, hoje o sol não apareceu, é o fim da aventura humana na Terra” (Eva – Banda Rádio Táxi – anos 80)

Por Angelo José Rodrigues Lima*

Estamos em agosto de 2021 e o país está repleto de notícias sobre crise hídrica, crise energética, aumento da fome e miséria, 15 milhões de trabalhadores (as) desempregados (as), aumento do desmatamento em todos os biomas brasileiros (Amazônica, Cerrado, Pantanal, Mata Atlântica, Caatinga e Pamap) e aumento das queimadas nos biomas Amazônico e Pantanal.


Mas o que estão questões têm em comum?


Basicamente são comuns por dois motivos: grande parte desta situação tem relação com o atual modelo de desenvolvimento e a forma ainda inadequada de realizar a gestão ambiental e das águas; com pouco investimento na governança (=estrutura administrativa) dos estados e municípios, ausência ou pouco planejamento, pouco fortalecimento da participação social e sem a integração com outras políticas públicas, já que ações oriundas de outras áreas (planejamento, obras, etc) podem impactar sobre o ambiente e as águas conforme já acontece.


O que está acontecendo com a Terra e com o Brasil?


Conforme Relatório de 2019 do Institute for Public Policy Research (IPPR), de Londres, “os impactos humanos negativos no meio ambiente vão além das mudanças climáticas para abranger a maioria dos outros sistemas naturais, conduzindo um processo complexo e dinâmico de desestabilização ambiental que atingiu níveis críticos. Esta desestabilização está ocorrendo em velocidades sem precedentes na história humana e em consequência disso entramos na idade do colapso ambiental”.


Este relatório demonstra que “os sistemas naturais globais estão sofrendo desestabilização em uma escala sem precedentes, como por exemplo: os 20 anos mais quentes desde o início dos registros, em 1850, foram nos últimos 22 anos, sendo os últimos quatro anos os mais quentes já registrados; a população de vertebrados caiu em média 60% desde a década de 1970 e mais de 75% da terra da Terra está substancialmente degradada”.


E o relatório do IPCC, de agosto deste ano, comprova esta situação, no qual são apresentados os seguintes dados:


    • É inequívoco que a influência humana aqueceu a atmosfera, os oceanos e a superfície terrestre. Mudanças rápidas e disseminadas ocorreram. Do aquecimento de 1,09 grau observado atualmente (2011-2020) em comparação com o período pré-industrial (1850- 1900), 1,07 grau provavelmente deriva de ações humanas, como a queima de combustíveis fósseis e o desmatamento. Cada uma das quatro últimas décadas foi mais quente que todas as anteriores desde 1850. Entre 2011-2020, o aquecimento da temperatura sobre os continentes é de 1,59 grau em média, contra 0,88 grau sobre o oceano.


    • A influência humana provavelmente contribuiu para o aumento da umidade na atmosfera. A precipitação provavelmente aumentou desde os anos 1950, e mais aceleradamente a partir dos anos 1980.


    • As concentrações de CO2 (gás carbônico), CH4 (metano) e N2O (óxido nitroso), os três principais gases de efeito estufa em mistura na atmosfera, são as maiores em 800 mil anos, e as concentrações atuais de CO2 não são vistas desde 2 milhões de anos atrás pelo menos. 


    • A temperatura global subiu mais rápido desde 1970 do que em qualquer outro período de 50 anos nos últimos dois milênios. As temperaturas desde 2011 excedem as do último período quente longo, 6.500 anos atrás, e se igualam às do período quente anterior, 125 mil anos atrás, quando o manto de gelo da Groenlândia desapareceu quase totalmente.


Segundo o relatório do MapBiomas Água lançado em agosto:  


O Brasil está perdendo superfície coberta com água desde os anos 90. A perda foi de 15,7%, caindo de quase 20 milhões de hectares para 16,6 milhões de hectares em 2020. 


A perda de 3,1 milhões de hectares em 30 anos equivale a uma vez e meia a superfície de água de toda região nordeste em 2020. Todos os biomas tiveram redução da superfície de água.


O Brasil está dividido em 12 regiões hidrográficas, destas, nove regiões hidrográficas perderam superfície de água entre 1990 e 2020, sendo que boa parte destas regiões hidrográficas são exatamente onde estão o maior contingente populacional do país e é importante dizer que mesmo a Região Hidrográfica Amazônica diminuiu cerca de 12% de sua massa de água.


54 das 76 sub-bacias hidrográficas perderam superfície de água nas últimas três décadas e 23 estados tiveram redução de superfície de água entre 1990 e 2020. Em Mato Grosso e Roraima, a redução alcançou 50%, e o Mato Grosso do Sul foi o estado com a maior perda absoluta (e relativa) de superfície de água em uma série histórica de 36 anos – passando de 1.371.069 de hectares de superfície de água em 1985, para 589.378 hectares em 2020. 


Mas porque estamos perdendo a superfície de água no Brasil? 


Um dos aspectos que explicam a perda de superfície de água, é o manejo e uso do solo inadequado na área urbana e rural, o modelo atual de produção agrícola, a forma e a concentração de ocupação na área urbana e o desmatamento.


Não se pode colocar culpa na ausência de chuva pela perda de superfície de água no Brasil. O desmatamento na Amazônia e nos outros biomas tem efeitos claros sobre esta situação. 


Em relação ao desmatamento, os mapas e dados atualizados do MapBiomas mostram que o Brasil perdeu 87,2 milhões de hectares de áreas de vegetação nativa entre 1985 e 2019. Isso equivale a 10,25% do território nacional. 


Os desmatamentos aumentaram a partir de 2018 em todos os biomas: Amazônia, Cerrado, Pantanal, Caatinga, Mata Atlântica e no Pampa. O mapa Biomas lançou um recente relatório demonstrando que perdemos 24 árvores por dia em 2020.


É bom lembrar que a Floresta Amazônica é responsável pelas chuvas que chegam às regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, por meio dos rios voadores.


Análises da equipe do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostram que a quantidade anual de chuva caiu à metade ao longo dos últimos 20 anos em regiões de Rondônia, norte de Mato Grosso e sul do Pará, onde a agropecuária ocupou até 60% de áreas antes florestadas, com prejuízo anual estimado em R$ 5,7 bilhões. 


Sobre a forma de ocupação na área urbana, é bom lembrar que a forma é padrão no Brasil, cidades como Belo Horizonte e São Paulo, outras poderiam ser citadas, tiveram seus rios urbanos canalizados em cerca de 80% e praticamente 90% da área urbana destas cidades estão asfaltadas. Com isso, a água da chuva nos centros urbanos não infiltra, causando enchentes com frequência. 


O aumento do desmatamento em todos os biomas do Brasil provoca a diminuição das chuvas e ao mesmo tempo, mesmo quando chove, por conta da ausência da cobertura vegetal, a água da chuva não infiltra no solo. Isso impede a regularidade na quantidade de água durante o período seco. 


O que significa perder superfície de água? Significa que estamos perdendo a quantidade de água armazenada nos rios que são capazes de garantir os usos múltiplos das águas, em especial do abastecimento humano. 


Portanto, estamos colocando em risco: o abastecimento de água para a população, os negócios e o desenvolvimento.


O Brasil ainda apresenta dados negativos em relação ao direito humano do acesso à água limpa e segura e ao saneamento:


Segundo dados oficiais, temos 35 milhões de brasileiros (as) sem acesso a água limpa e segura e 95 milhões de brasileiros (as) sem acesso ao saneamento. É sempre importante lembrar que boa parte dos leitos hospitalares no Brasil está ocupada por pessoas com doenças que têm origem na má qualidade da água e na ausência de saneamento.


Estudos recentes comprovam que moradores de locais sem saneamento básico ganham salários menores do que a população com acesso a água, coleta e tratamento de esgoto. Por isso, também estão mais vulneráveis a doenças comuns em áreas em que essa infraestrutura inexiste ou é precária – e o efeito disso é uma elevação nas despesas com saúde pública, que na realidade são despesas com doenças, não de fato com saúde.


Em 2017, em todo o Brasil, 872 cidades tiveram reconhecimento federal de situação de emergência causada por um longo período de estiagem. A região mais afetada foi a do Nordeste e o estado da Paraíba, que concentrou o maior número de municípios, com 198 que comunicaram o problema à Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec).


E a questão da desigualdade social?


A desigualdade social tem tanto relação com o modelo de desenvolvimento atual quanto com os impactos sobre o ambiente, sendo que neste caso são os mais ricos que causam maior impacto sobre o ambiente.


A riqueza da humanidade adulta (cerca de 4,7 bilhões de pessoas) é de 240,8 trilhões de dólares (2013). Mais de dois terços (68,7%) dos indivíduos adultos situados na base da pirâmide da riqueza possuem 3% (7,3 trilhões de dólares) da riqueza global, com ativos de no máximo 10 mil dólares. 


No topo da pirâmide, apenas 0,7% de adultos, parcela que possui 41% da riqueza mundial (98,7% trilhões de dólares). Somados, os dois estratos superiores da pirâmide – 393 milhões de indivíduos ou 8,4% da população adulta – detêm 83,3% da riqueza mundial.


Para satisfazer a avidez de 393 milhões de indivíduos – os 8,4% da população mundial adulta detentora de 83,3% da riqueza mundial –, move-se a economia do planeta, máquina produtora de crises ambientais, a começar pelas mudanças climáticas: “os 500 milhões de pessoas mais ricas do mundo produzem metade das emissões de CO2, enquanto os 3 bilhões mais pobres emitem apenas 7%”.


Portanto, precisamos vencer a desigualdade social de maneira que não isto não signifique produzir mais emissões e neste caso demonstra ainda mais fortemente a necessidade de um novo modelo de desenvolvimento, que combine o fim da desigualdade social com o fim das emissões de CO2.


Mas temos saída diante destes fatos e dados apresentados?? Qual é a saída? Ou como dizia a banda Rádio Táxi nos anos 80, com a música “Eva”: Será que temos de abandonar a aventura humana na Terra? 


A primeira resposta é que não devemos abandonar a aventura humana na Terra. Existem muitos movimentos acontecendo demonstrando que somos capazes e existem oportunidades para que possamos encontrar saídas para as crises.

Uma delas, e talvez a principal, é a urgente necessidade da discussão e construção de um novo modelo de desenvolvimento, pois um país profundamente desigual e que não cuida de suas águas e do ambiente não será sustentável.

Por isso, este novo modelo precisa integrar o social, o ambiental e a economia, deixando claro que nós seres humanos fazemos parte da natureza e não que estamos à parte da natureza.

As crises ambientais, hídrica e econômica pelas quais já passamos e estamos passando demonstram a necessidade urgente deste novo modelo de desenvolvimento, no qual as questões ambiental e social sejam o carro chefe do desenvolvimento e dizendo de que forma a economia deve funcionar.

O desenvolvimento, para ser pleno, tem que ser baseado na integração do social com o ambiental. Os setores que são a favor de um novo modelo de desenvolvimento precisam incorporar a questão ambiental na discussão sobre desenvolvimento; afinal, são os mais vulneráveis economicamente que mais sofrem com ausência de água e de saneamento.

Porém, enquanto discutimos e construímos um novo modelo de desenvolvimento, é urgente e necessário que, no curto prazo, a população cobre e fortaleça a gestão ambiental e das águas, sob pena de termos cada vez mais conflitos pelo uso da água e aumentarmos os riscos para garantir segurança hídrica.

E, para isso, é preciso cobrar dos governos federal, estaduais e municipais, a ampliação e manutenção da governança ambiental e cobrar do Congresso que ele mantenha a legislação ambiental brasileira e não a modifique baseada somente com o viés econômico e ganancioso.

É fundamental ouvir a ciência para a tomada de decisão sobre qualquer mudança na legislação e para a tomada de decisão na elaboração de políticas públicas.

Por último, é importante afirmar de que é possível tanto resolver os desafios sociais e ambientais, mas se enxergamos ambas as lutas como apenas uma.


* Biólogo (UFRRJ), mestre em Planejamento Ambiental (UFRJ), doutor em Geografia em Análise Ambiental e Dinâmica Territorial (Unicamp).

 

Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira

Dos pobres e oprimidos, entre a utopia e a ideologia

Por Leandro Marins Sarmento

No próximo dia 19 de setembro comemoramos 100 anos do nascimento de Paulo Reglus Neves Freire. Governado por uma turma reacionária e, sem qualquer vínculo com o conhecimento que a humanidade construiu durante a história, o Brasil vai passar esse ano devendo justa homenagem ao Patrono da Educação Brasileira?



No centenário de seu nascimento não vão faltar textos sobre o educador, não se preocupem, e todos são muito importantes, uma vez que este governo militar não vai fazer uma linha sequer sobre. Cabe à iniciativa popular a lembrança e as comemorações. Mas tem algo mais singular para Freire do que a lembrança dos que querem gritar e não podem? A turma da caserna não encontra cognição para homenagear nosso pernambucano, eles são brilhantes, e Ustras, o suficiente para levantar a bandeira todo dia 31 de março.

Para variar um pouco a leitura sobre o brilhante, mesmo na imortalidade, Paulo Freire, escolhi dividir com os companheiros leitores uma reflexão sobre o momento em que estamos vivendo, com a companhia em memória do centenário, e explorar uma discussão que costuma ser calorosa entre os educadores: Paulo Freire era marxista? Seu legado e sua obra são marxistas?

Paulo Freire já respondeu diretamente essa pergunta em uma entrevista. Talvez não tenha ficado claro, então vamos brincar um pouco com os corações revolucionários apaixonados, e também, com aqueles que a dureza e as desilusões da realidade desistiram da ruptura e apostam suas fichas no caminho da conciliação. Esse povo é insistente.

Capanema

Na década de 1930, o país, os movimentos sociais e seus intelectuais construíram o nosso primeiro Plano Nacional de Educação. Gustavo Capanema, Ministro da Educação que mais tempo ficou no cargo, numa tarde do dia 15 de maio de 1937 se pronunciava com entusiasmo ao Conselho Nacional de Educação que aprovou o texto naquele dia por unanimidade: “Efetivamente, é a primeira vez que se vai fazer em nosso país, uma lei de conjunto sobre a educação!”

Não foi! No dia 10 de novembro de 1937, a República é golpeada pelo próprio presidente em exercício, Getúlio Vargas, fechando as casas legislativas representativas e implantando o Estado Novo. Gustavo Capanema, que permaneceu no Ministério da Educação, recua na iniciativa de promover o que seria o primeiro Plano Nacional de Educação. O leitor deve estar se perguntando: o que Paulo Freire tem a ver com isso?

Para muitos, Gustavo Capanema não pode ser considerado mocinho, afinal ajudou a criar o modelo de Educação Cívica, participou da reunião que discutiu as medidas após a desastrosa tentativa revolucionária comunista de 1935 e votou favorável à cassação dos mandatos dos parlamentares do PCB. No entanto, a contradição é, talvez, a biografia do pitanguense. No seu período à frente do ministério temos a criação do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e o Instituto Nacional do Livro e da União Nacional dos Estudantes.

Assombração

Em mais um episódio das desventuras em série promovidas pelo Governo Bolsonaro, a antiga sede do Ministério da Educação, o edifício Gustavo Capanema, assinado por Oscar Niemeyer, patrimônio tombado pelo IPHAN (legado de Capanema), foi colocado na lista para leilão. Quem encontra semelhanças entre Gustavo Capanema e Paulo Freire não é este autor. São, mais uma vez, os militares de pijama que pensam controlar o país.

Assim como fazem com Paulo Freire, os militares embaraçam a mente de quem deseja pensar o país e, tentando se desfazer de todas as marcas e características dos fantasmas comunistas que assombram o verde oliva, elegem Capanema - e obviamente Niemeyer, como mais um inimigo da tradicional família brasileira cristã e da nação. Obviamente Capanema não era comunista.

Os devaneios de um totalitarismo medíocre, mas violento, nos dão pistas de como os homens livres ameaçam os projetos de poder de uma minoria armada. Paulo Freire foi promovido à inimigo de Estado no projeto educacional Escola Sem Partido com o argumento de contaminar mentes e corações com seu marxismo cultural.

Alfabetização

Mais do que sua obra, uma Pedagogia para os oprimidos e que deu, e ainda dá, esperanças às milhares de professoras e professores que enfrentam os desafios da pobreza e das desigualdades, todos os dias quando chegam para trabalhar no chão das escolas públicas, o que amedronta os reacionários no Brasil é a sua biografia. Mais do que um autor revolucionário, revolucionou o modo de ler o mundo e, portanto, o modo de ver os alunos, a escola e a Educação, Freire nos ajuda a compreender os desafios do cotidiano e perceber as urgências das lutas sociais quando, em 1963, alfabetizou trezentos adultos em 45 dias.

Ora, isso é apenas um episódio. Mas significa trabalho. Significa que Paulo Freire, mais do que um intelectual orgânico e teórico, que buscava e filosofava a revolução proletária, entendia a fome e a miséria do conhecimento como urgências inadiáveis e como forma de mudar a realidade. O inédito viável de Paulo Freire, como costumava chamar suas utopias, era construído no cotidiano junto daqueles que nada tinham.

O que une, na cabeça vazia dos militares no poder, Paulo Freire e o conservador Gustavo Capanema, é, justamente, o trabalho. Capanema escolheu participar de um governo totalitário e preservar algumas conquistas e vidas por dentro do Estado. Paulo Freire escolheu abandonar, se é que em algum dia escolheu essa via, uma revolução desenhada num futuro distante, para construir um presente que enfrente as faltas urgentes.

Pesadelo dos militares

Nesse cenário, Paulo Freire sofreu ataques da esquerda revolucionária quando se aproxima do novo sindicalismo e da fundação do Partido dos Trabalhadores. O novo sindicalismo abandonaria no final da Ditadura Militar (1976-1985, lenta e gradual) o horizonte revolucionário e avançaria para disputar o Estado e a narrativa do processo de democratização. Não foi o único, Darcy Ribeiro, Leonel Brizola e Oscar Niemeyer promoveram o maior projeto popular de Educação no Brasil, os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP).

Assim como Rosa Luxemburgo que, também criticada pelo marxismo duro, ao dizer que de “nada servia o marxismo se ele não servisse para superar-se a si mesmo”, e Carlos Nelson Coutinho, quando escreveu o texto crítico “Democracia como valor universal”, Paulo Freire foi duramente criticado pela tendência marxista-pedagógica denominada Pedagogia Histórico-Crítica, que tem como um de seus ícones o filósofo e pedagogo Dermeval Saviani, por não vislumbrar em sua obra a ruptura com a sociedade de classes.

Paulo Freire é o Patrono da Educação Brasileira porque sua biografia não se resume à militância.  O trabalho na obra de Paulo Freire é a mais revolucionária de suas obras. Paulo Freire representa milhares de professores e professoras que acordam muito cedo todos os dias e levam o trabalho para casa. Representa as marchas de todos os oprimidos, dos sem-terras, dos sem-tetos, das mulheres, negros, nativos, ribeirinhas, de todos os que não têm e querem ter. A sua herança nas universidades representa o pesadelo dos militares, a luta constante das professoras e professores pela liberdade. Não recuaremos.

Perguntado se era comunista, marxista, Freire respondeu: “Não foram os camponeses que disseram a mim: Paulo, tu já leste Marx? Não, eles não liam nem jornal, foi a realidade que me remeteu a Marx”.


Glossário: reacionária, turma da caserna, cognição, marxista, totalitarismo, marxismo cultural, revolução proletária, inédito viável

Até hoje o Patrono da Educação Brasileira, Paulo Freire, que completaria 100 anos em 2021, é visto como um doutrinador marxista por alguns militares e conservadores. Mas o pedagogo não “assusta” as elites apenas com suas ideias, mas principalmente com sua técnica alfabetizadora, que contribuiu na prática para a redução da desigualdade social. 

Se precisar, peça ajuda

Por Mani Ceiba

Setembro começou e já começo ver chamadas para o Setembro Amarelo em todo canto. Acredito muito na importância da campanha, mas não é só em setembro que isso tem que ser lembrado... Mas chamar a atenção para o assunto, falar e colocar na mídia traz olhares e isso ajuda. Mas sempre parece pouco. Pessimista? Não, são dados mesmo. A taxa de suicídios a cada 100 mil habitantes aumentou 7% no Brasil, ao contrário do índice mundial, que caiu 9,8%, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS)

O suicídio foi a segunda principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos, após os acidentes de carro. 



Cerca de 800 mil pessoas acabam com suas vidas todos os anos no mundo, o que equivale a uma morte a cada 40 segundos. Você leu certo, uma pessoa se mata a cada 40 segundos. É como uma guerra!! E ela está do seu lado, trabalhando, num jantar ou até rindo e você não percebeu ou julgou ou ainda disse: - É frescura, vai lavar uma roupa! 

Para mim, esse tema é como uma demonstração, mais que isso, uma chaga, um grito, um espelho gigante que mostra muito das mazelas e hipocrisias do mundo que vivemos

Primeiro o ser humano vive como se fosse eterno. Finge todo tempo que não sabe que a única certeza da vida é a morte. Sim, todos nós vamos morrer e pode ser amanhã ou daqui a dez minutos! A ilusão da eternidade, do para sempre é tanta que olhar ou falar dela é algo perigoso. Como que se falar de morte atraísse a morte... Tenho uma coisa para dizer meus caros, estamos morrendo todo tempo... a morte nos ronda e nos permeia em tudo, inclusive na fruta fresca que acabei de comer. Essa fuga é no mínima estúpida. Olhe para isso e talvez seus valores possam ter outro significado. 

Não satisfeito em fugir da certeza da morte, foge da dor e do que lhe parece feio e não representativo da vida cor de rosa com arco-íris. Dessa forma podem nascer preconceitos, julgamentos baseados em mundos faz de conta e verdades distorcidas. Assim uma pessoa pode não olhar para uma criança passando fome, isso é feio demais, não combina com seu mundo. Ela não vê o outro sofrer a ponto dessa dor ser tão intensa que só quer resolver.

Muitos motivos podem levar uma pessoa a cometer suicídio. E entenda, ser humano, você não sabe quais são... Somente ela sabe o que está sentindo e passando! Não tem gênero, não tem raça, não tem classe social e principalmente não tem religião! É dona de casa, é músico de sucesso, é adolescente. É um doente, é um religioso, é uma pessoa que teve uma perda muito grande ou não. E essa pessoa era filha, irmã, mãe, pai, vizinho de alguém. 

Ainda de acordo com a OMS, mais de 95% dos casos de suicídio estão associados à saúde mental mas 60% nunca se consultou com um profissional de saúde mental, percebam esse detalhe! As pessoas não buscam ajuda. Motivos? Posso pensar em alguns... quantas têm acesso, sabem aonde ir? Quantas não falam o que estão passando por falta de apoio, por vergonha, medo, preconceito? Quantos falam e não são ouvidos e atendidos? Falar de suicídio envolve falar sobre saúde mental, sobre cobranças, sobre ansiedade, sobre depressão, sobre acesso à saúde, sobre economia, já que 80% dos casos ocorrem em países de baixa e média renda, como o Brasil. Mas principalmente sobre olhar e respeitar o outro e nós mesmos. Sobre curar a doença em nós que apontamos o dedo, que negamos, que fugimos, que rotulamos, que manipulamos... e tem os que usam uma depressão ou outra patologia, por exemplo, como justificativa para falta de caráter também. 

A sociedade é doente. E a sociedade é feita de pessoas. Eu, você e seu vizinho. Das prioridades e valores que cada um carrega. Da mesma forma que nossa saúde está em perigo pelos agrotóxicos que comemos, nossa saúde mental também está em colapso por todas as mentiras e pequenos venenos que produzimos todos os dias nas relações da vida. Não estou dizendo que é a sociedade que cria um suicida, mas que contribui e ainda pode alimentá-lo já é difícil de não dizer.

Todos nós sabemos de casos de pessoas que pareciam estar bem, rindo em um dia e se matam no outro. Além de todos os fatores possíveis envolvidos nisso, não podemos negar que nós aprendemos a esconder o que sentimos muito cedo. Faz parte do desenvolvimento da autopreservação esconder o que sentimos diante do mundo. Há pessoas que precisam esconder tanto que sabem fingir outro sentimento. E isso foi evoluindo tanto que escondemos de nós mesmos. Por que precisamos esconder? Por que ser nós mesmos é tão sofrido? Por que tanto medo?

Existe também a mídia sensacionalista, que aborda o tema suicídio como um espetáculo, se for de um famoso então... uau... Gatilhos, métodos, manchetes escrotas dançam em imagens grotescas que só me fazem pensar mais na sociedade doente. Quem consome e quem ganha com isso? A morte e a dor sempre escondida, nesse contexto vira celebridade.

Estamos falando de pessoas. Como eu e você, aliás poderia ser eu ou você! Poderia ser sua mãe! Por isso campanhas como o Setembro Amarelo têm seu valor. Vamos falar sobre. Vamos ouvir sobre. Pensar sobre. Esconder não tem ajudado. Aliás esse é o recado desde a criação da campanha de combate ao suicídio. A origem do Setembro Amarelo, e todo esse movimento de conscientização contra suicídio começou com a história de Mike Emme, nos Estados Unidos. O jovem era conhecido por sua personalidade carinhosa e habilidade mecânica, tendo como sua marca um Mustang 68 que ele mesmo restaurou e pintou de amarelo. Em 1994, Mike cometeu suicídio, com apenas 17 anos. Nem a família, nem os amigos de Mike perceberam o que ele estava passando. No funeral, os amigos montaram uma cesta de fitas amarelas com a mensagem: “Se precisar, peça ajuda”. 

Em 2003, a Organização Mundial da Saúde (OMS) instituiu o dia 10 de setembro para ser o Dia Mundial da Prevenção do Suicídio. O amarelo do Mustang de Mike é a cor escolhida para representar essa campanha.

Algumas dicas como: não diga é mimimi, coisa do diabo, comentários muito desagradáveis e preconceituosos em redes sociais, vai passar ou é só levantar e beber água com limão, é o mínimo que se espera de seres humanos com noção, mas o recado mais importante é para quem está sentindo...

Procure ajuda! Ninguém tem que passar por nada sozinho e sem apoio.

O Blues Universal

Por Paolo D'Aprile - Ilustração Guilherme Maia

Lá naquela ilha maravilhosa dedicada a Santiago, no meio do mar oceano, de frente para a África, abraçada ao infinito, tem corpinho de algodón, saia de chita com cordón, um par de brinco roda pión. Espero ouvir o nome dela, a "Diva dos pés descalços", mas a cantiga continua: tem Nho Mano Mendi, tem Kaká, Nha Nácia Gomi... e o elenco vai longe, até o fim da melodia cantada pela voz de mel mergulhado no açúcar da magnífica Mayra Andrade. Mas o nome dela não. Por anos fiquei pensando que na lista dos notáveis da Ilha de Santiago faltasse o nome dela. Uma imperdoável gafe, um descuido, quase uma ofensa contra a maior artista do país, a “Diva dos pés descalços”, esquecida abandonada, jogada no escanteio por Mayra, a mais admirável e talentosa cantora, depois da grande artista que conquistou a glória nos palcos do mundo cantando sem sapatos. Na Ilha de Santiago tem corpinho de algódon, saia de chita com cordón...



A Ilha de Santiago, eternizada na beleza do canto da jovem Mayra, deve realmente ser um lugar maravilhoso. Um arquipélago vulcânico despovoado até que os portugueses decidiram torná-lo entreposto marítimo, em um primeiro momento, para as naus diretas às Índias, depois para aquelas dedicadas ao abominável tráfico de pessoas a serem levadas escravizadas para os mercados europeus e americanos. Não conseguia eu entender o motivo da falta do nome dela. A causa de tamanho atrevimento não podia ser em razão de um trivial problema de métrica, de rima, de encaixe musical; havia de ter razões obscuras que fugiam ao meu conhecimento. Até hoje, quando chega um zap do meu amigo Guilherme: O que vc acha de a gente falar sobre ela, a dama da canção de Cabo Verde? E lá vou eu pesquisar sobre o ano do nascimento dela. Está escrito: Mindelo, 17 de agosto 1942. Agora entendi. Está explicado. A cidade de Mindelo fica na ilha de São Vicente. Mesmo arquipélago, outro santo. Santiago, São Vicente, nada a ver. Peço desculpa à doce Mayra. Tudo está agora perfeitamente claro. A “Diva dos pés descalços” nasceu em outra ilha. Pronto! Mas tudo isso não tem importância nenhuma. 

A única coisa que realmente importa aqui é a música dela, sua voz rouca, arrastada na mansidão da morna, o estilo musical declarado pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade. Da ilha para o mundo. A língua portuguesa, misturada aos dialetos dos africanos que ali chegaram cantada no ritmo binário da morna, por ela esquentou os maiores teatros em todos os países. Ligando a alegria dos batuques africanos com o desespero do fado, sua música abraça a Terra como uma pergunta nunca formulada, como a possibilidade concreta de desvendar a inexistente beleza no coração dos homens: pessoas esculpidas na lonjura, no sofrimento do desterro, na melancolia da espera sempre vã, na esperança de encontrar o caminho de volta. Sometimes I fell like a motherless child, às vezes eu me sinto como uma criança sem mãe, So long way from my home, tão longe da minha casa, canta a voz negra de Riche Hevens. 

Sodade, Sodade dessa minha terra, canta a voz negra da "Diva dos pés descalços" no blues universal inventado por ela. 

Lá na Ilha de Santiago, na Ilha de São Vicente, na Mouraria de Lisboa, nas festas do Caribe, nas noites de New Orleans, pelos becos de Salvador e Rio de Janeiro, tem corpinho de algodón, saia de chita com cordón, um par de brinco roda pión... e tem ela também, seus pés descalços, sua música morna, sua cálida voz, sua imensa Sodade: Cesária Évora.

https://www.youtube.com/watch?v=dNVrdYGiULM 

terça-feira, 3 de agosto de 2021

DIVINA ELIZETH

 

Ilustração Guilherme Maia

Por GUILHERME MAIA 



Elizeth Cardoso – a grande intérprete que sobrevoava o chorinho, o samba-canção, o samba raiz, a bossa nova e o emaranhado de concepções musicais a que se convencionou chamar MPB – dominou todos esses estilos da arte brasileira com maestria e se impôs como a Divina entre os críticos mais criteriosos, como o caso de José Ramos Tinhorão. Conquistou o coração de gerações sempre elegante e em sintonia com os anseios populares.


Fruto do Brasil, seu canto foi se firmando com uma série de fatores que parecem mais uma crônica que reúne nossa realidade: teve de trabalhar desde menina para o sustento de sua família (tinha cinco irmãos) e, com isso, aos 10 anos já era balconista, cabeleireira e operária de uma fábrica de sabonetes; por outro lado, bebeu da mística do samba na casa da lendária mãe de santo Tia Ciata, local de encontro dos ícones da arte brasileira (imagine Donga, João da Baiana e Sinhô no mesmo lugar) e foi lá em meio à Praça Onze que Elizeth começou a forjar sua persona na arte brasileira.

Essa dualidade pobreza e arte é uma síntese da brasilidade, porque nunca se produziu cultura de identidade pelas elites retrógradas. Toda a cultura sempre emanou do povo e dessa forma popular foi-se construindo um sentido de pertencimento a uma arte própria e que se diferenciava da proveniente da Europa, por exemplo.

Vale salientar que mesmo os literatos da Semana de Arte Moderna de 22 e Villa-Lobos se alimentavam da expressão popular para dar requintes eruditos à identidade nacional.

Em meio a todo esse caldo, surge Elizeth, a grande cantora do Brasil! Ela, que cantava Ari Barroso, Jacob do Bandolim, Tom Jobim. Esteve lado a lado, piano e voz, com Radamés Gnattali (gênio absoluto de arranjos clássicos e populares e clássicos-populares) e lado a lado, violão e voz, com Rafael Rabelo. Impressiona essa versatilidade que transpõe gerações.

O mundo tremeu em 1968 quando Elizeth juntou o Zimbo Trio (trio histórico do jazz brasileiro e da bossa nova), Jacob do Bandolim e o Época de Ouro no Teatro João Caetano. Que coisa maravilhosa foi aquela noite, o público vindo abaixo quando ela cantou em duo com o Jacob do Bandolim o clássico Barracão de Zinco.

Tem uma história antológica contada pelo Ricardo Cravo Albin sobre como foi feita a gravação desse show único. Ricardo trabalhava no Museu da Imagem e do Som (MIS), tinha recebido uma matriz com discursos do presidente John Kennedy pelo consulado estadunidense. Nem pensou duas vezes, pegou o que recebera levou para o Teatro João Caetano e gravou por cima a preciosidade daquele encontro e eternizou um dos maiores momentos da arte brasileira!

Fez ele muito bem!

O Brasil e a Arte agradecem!  

Elizeth foi um ícone de resistência. Demonstrou com sua vida de lutas como o povo brasileiro tem uma força interior que não há elite retrógrada, violência e arbitrariedade policial ou mesmo políticos neofascistas que o derrubem.   


Abolicionismo penal: superar o estado atual

Ilustração Cacinho

Por Eduardo Alves


É fundamental iniciar esta conversa informando as marcas ainda mais danosas do capitalismo no Brasil. Não bastassem todas as perversas dores impostas às pessoas que são empobrecidas pela força danosa dos preconceitos, do controle e das múltiplas explorações organizadas pelo Estado, o sistema penal joga aos cárceres privados a maioria do povo. O abolicionismo penal, ainda que não seja sinônimo do abolicionismo social que buscamos conquistar a cada dia com o fim das explorações, do racismo e das discriminações, é parte desta mesma história e possui muito peso em escala mundial. Aqui as veias abertas que ardem não permitem equívocos e nos conclamam a ser assertivos: afinal, das pessoas encarceradas, 66,7% são não brancas, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado em 2021. Segundo o mesmo anuário, “em 15 anos, a proporção de negros no sistema carcerário cresceu 14%, enquanto a de brancos diminuiu 19%”. 

Mas, cravando de onde falamos, vale destacar o papel que têm os meios de comunicação nesse processo profundamente danoso levado pela PUNIÇÃO. Thomas Mathiesen, um norueguês nascido em 1933, começou a formular na década de 1950, sem olhar para América Latina e o Brasil, elementos fundamentais que nós do PAVIO CURTO precisamos chamar ainda mais atenção. Afinal, para esse teórico crítico da linha do ABOLICIONISMO PENAL, “A irracionalidade verdadeira da prisão é um dos segredos mais bem guardados em nossa sociedade. Se o segredo fosse revelado, destruiria as raízes do sistema atual e implicaria o começo de sua ruína”. Ou seja, nós da comunicação temos um papel fundamental em uma questão com profundo peso social, histórico, cultural e ideológico. São informações que as pessoas não podem ser impedidas de ter, as quais precisamos garantir para que o papel das punições em prisões seja evidenciado em todos os seus aspectos, tonalidades, espaço de ocupação social e condições de viver.

Acompanha a comunicação, bem próximo, o direito à educação para as pessoas. Combinando os astros, todas as pessoas mais punidas, as que mais se amontoam nos cárceres, são empobrecidas, negras, da periferia, com os direitos a sobrevivência e a educação impedidos pelo Estado. O Estado, principalmente em países que sofreram o peso danoso da neocolonização, faz valer sem restrição para a grande maioria da população os IMPOSTOS E AS PUNIÇÕES. Herança imposta do Iluminismo, existente desde o século XVIII, que ganhou mais “canhões de luzes” no liberalismo e no que é chamado de neoliberalismo. A guerra, tão facilmente reivindicada e implementada pelo capitalismo, possui também desde os iluministas, liberalistas, até os mais autoritários que predominam em países de capitalismo tardio como o Brasil, rios bravos de punições que se aproveitam do discurso mais mentiroso e ideologizado sobre “as pessoas perigosas”. Afinal, quem são as pessoas perigosas do Brasil? Há essas pessoas ou o perigo está no lugar que ocupam nas formações sociohistóricas com o controle do capital, com a apropriação do comum e com o Poder do Estado?

Edwin Sutherland, sociólogo e pesquisador estadunidense, espantou-se com as consequências da crise de 1929, quando alguns homens considerados “bem sucedidos” passaram a ser processados criminalmente. Sutherland iniciou uma pesquisa que envolvia dezenas de grandes corporações empresariais, profissionais liberais entre outros grupos compostos por pessoas consideradas “cidadãos acima de qualquer suspeita”, constatando que, apesar de nunca terem sido alvo do sistema de justiça criminal, de forma generalizada, cometiam inúmeros crimes, condutas ligadas à posição privilegiada de suas atividades profissionais, porém proibidas e criminalizadas. Ou seja, as pessoas que cometem aquilo que é classificado como crime na sociedade não são as pessoas consideradas “estragadas”. Não se trata da “outra pessoa defeituosa” ou qualquer tom pejorativo que se constitua para falar das pessoas que são dos grupos mais explorados, marginalizadas, criminalizadas das diversas formas que o poder capitalista encontra.

Assim sendo, é mais que importante que todos os grupos sociais comprometidos com a superação do capitalismo ou com o enfrentamento das desigualdades enfrente necessárias ações para o abolicionismo penal. Desde proposições como RENDA BÁSICA UNIVERSAL E INCONDICIONAL para fazer com que o Estado garanta a subsistência de todas as pessoas e não se baseie no poder da cobrança, do controle e da punição, até a divulgação de ideias e notícias comprometidas com o verdadeiro são ações fundamentais que acumulam nesse campo.

Nós temos assertividade sobre o grupo social do qual fazemos parte e o grupo político de qual, como sujeitos, construímos em formas de representação. Neste sentido, não temos dúvidas: o papel do Estado não é a garantia da punição para as pessoas mais oprimidas, marginalizadas, as que mais sofrem o peso desastroso da exploração. Somos, sim, comunicadoras e comunicadores comprometidas e comprometidos com a democracia e com a liberdade. Neste sentido, não há dúvidas, seja o “lugar de fala” de pessoas oprimidas, marginalizadas e exploradas, são os lugares de solidariedade ativa que nos unifica na ação comprometida com o verdadeiro. E, neste sentido, o tema do ABOLUCIONISMO PENAL é fundamental para, além de bons debates e estudos que nutram potentes pensamentos que façam fluir inteligências coletivas na vida. Para além disso, que seja a bandeira crítica do abolicionismo penal seja também uma aspecto fundamental para nos mobilizar contra todo o tipo de racismo, machismo, patriarcalismo, patrimonialismo e poder que desapropria as pessoas do comum e impõe as variadas formas de exploração como modelo de Estado.

Na formação social brasileira, não há fronteiras entre as necessárias ações anticapitalistas que unificam a luta pela superação do racismo, do machismo e da exploração. E, neste sentido, o BEM VIVER, como forma de organização economia, política e social e a CONVIÊNCIA entre as pessoas diferentes, mas não desiguais, nos coloca o compromisso por educação e comunicação como instrumentos críticos, para a Vida e a Liberdade a serem conquistadas. Temas, como abolicionismo penal, possuem o desafio de nutrir a inteligência solidária e coletiva para superar o capitalismo e fazer a comunicação mais criativa e comprometida com o viver.


AQUI E AGORA

Ilustração Guilheme Maia


ELE NÃO!

Por Guilherme Maia e Rodrigo Cosenza

Estamos em um tempo de revelações, da exposição das mazelas arraigadas em nosso pensar e fazer coletivo. Isso em relação aos incontáveis preconceitos e práticas de violência direta e simbólica praticadas pelos arcaicos donos do poder no Brasil - a classe dominante de nosso país.

O Brasil era um país onde não havia racismo? Provou-se que não. O Brasil era de uma cordialidade indelével e que compensava desigualdades e concentração de renda? Também se demonstrou à vista de todos que isso é uma tolice que mais servia para conter a contestações e revoltas do conjunto da população frente ao grau de exploração a que é submetida.

O fato de não ter havido uma ruptura estratégica com os grupos de poder que estruturaram a ditadura militar – seja pelas condições ou possibilidades dadas à época – permitiu que, por duas décadas, o ovo da serpente fosse chocado livremente na chamada “Nova República”.

Resistência

Na História do Brasil sempre foi importante a resistência cultural – uma verdadeira trincheira – formada por artistas e intelectuais orgânicos das gerações passadas, que  combateram por meio da estética e da lírica. Criticavam e apontavam perspectivas de um convívio mais livre e justo, que superasse uma realidade de pobreza material e exploração, mas também para agitar as massas promovendo a mobilização de encontro à conjuntura extremamente desfavorável que se apresentava.

As forças progressistas e as forças reacionárias sempre disputaram como se estabeleceriam as regras e, por vezes, tivemos vislumbres de avanços, a muito custo e com a reação pronta e disposta a cobrar o preço. Exemplos foram a criação e instalação do Sistema Único de Saúde, o SUS, que teve como protagonistas os comunistas brasileiros; o Estatuto das Cidades ou o Sistema Único da Assistência Social (SUAS). Todos foram grandes avanços em nossa possibilidade de coletividade cidadã, mas sempre bombardeados com restrições orçamentárias e propagandas ideológicas de descrédito almejando sua privatização total. A luta está aí, como sempre esteve.

Somos vítimas de um projeto de domínio que passa pelo entorpecimento da consciência coletiva. E também pela manipulação da revolta que turvou o sentimento de pertencimento à uma nação em um chauvinismo culminando na ascensão de um fascista de cores auriverdes. Patriotismo de fachada, posto que o que de fato temos é o desmonte do Estado e dos bens e serviços públicos.  Vemos assim a impossibilidade de formação de identidade nacional real e aberta ou mesmo uma globalização participativa entre culturas. O que temos é o desmonte até mesmo da cultura popular em seus sentimentos mais enraizados!

Elite predatória

A classe dominante brasileira que fomenta o atual estado de coisas é predatória e impõe e usufrui de uma concentração obscena de renda e de riquezas, sempre saudosa da República Velha, talvez até da escravidão do tempo do Império. Para garantir seu poder a elite leva a cabo o projeto autoritário de agora.

A deturpação dos sentidos, como uma desenvolvida máquina de alienação em massa, alça essa desorientação ao fazer político e isso é uma produção cultural, mesmo que pelo DarkSide. É, sim, uma produção cultural, porque põe de ponta cabeça o entendimento por produções de realidades estéticas, seja da retórica, seja da diagramação de memes e quejandos. Trata-se de uma anticultura, de uma antiarte. É o pensamento de quem domina as condições materiais e políticas se fazendo hegemônico na arte, na cultura, nas diversas formas de expressão.

Por isso, a organização antifascista e democrática precisa produzir cultura e manifestar a beleza do criar artístico com as reivindicações políticas de liberdade, da diversidade e da superação da exploração. Da arte mais simplória às elaborações mais sofisticadas, é preciso apontar para a emancipação humana. Seguir e avançar no caminho de gente como Carybé, Portinari, Jorge Amado, Chico Science, Gonzaguinha, e tantos outros.

Nós aqui demos nossa pequeniníssima contribuição. Compusemos a música Ele Não para marcarmos a época em que vivemos, pois temos de produzir e participar de nosso tempo, para sermos plenos em nossa vida! 

“Vamos acordar e viver um novo dia

Nossa liberdade conquistar”

Entoa a música antes do ápice “Ele Não!”.

Já sabemos que “Ele Não”! Agora falta cantarmos, desenharmos e encenarmos isso para deixar nossa marca em nossa época ou, ainda, combater com as mesmas armas a produção de alienação de massas pela propaganda ideológica do neofascismo. A liberdade e fraternidade de uma humanidade emancipada é nossa pulsão!


Transparência seletiva: entre a mensagem e a prática

 

Ilustração Clovis Lima


Júlio Araújo Jr. 


Na semana passada, reportagem de O Estado de São Paulo noticiou uma possível ameaça do ministro da defesa ao presidente da Câmara dos Deputados. Ele teria dito que, caso não haja a aprovação da legislação sobre voto impresso, as eleições de 2022 não ocorrerão.


Ambos negaram a ameaça, mas em nota o ministro defendeu a discussão sobre o voto impresso. Disse que todo eleitor deseja mais transparência e legitimidade no processo eleitoral e que o debate acerca do voto eletrônico auditável por meio de comprovante impresso é legítimo.


Por reforçar a desconfiança nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral, as declarações causaram forte preocupação quanto aos rumos da nossa democracia. Para piorar, a utilização do termo “transparência” para justificar o chamado voto auditável não trouxe qualquer justificativa. O argumento parece soar interessante e afinado com o espírito democrático, pois indica uma suposta defesa da publicidade acima de tudo e de todos. O curioso, no entanto, é que o mesmo emissor da mensagem conduziu a intervenção federal no Rio de Janeiro em 2018, marcada justamente por críticas pela falta de transparência.


Pude analisar essa questão em ação civil pública contra a União e o Estado do Rio de Janeiro que tramita na Justiça Federal do Rio de Janeiro. Houve três pontos centrais que indicam a falta de transparência na intervenção federal. Em primeiro lugar, faltou transparência nas respostas aos questionamentos dos órgãos públicos: as respostas do gabinete da intervenção eram genéricas e não possuíam detalhamento sobre as ações adotadas.


Em segundo lugar, os relatórios oficiais não responderam a diversos questionamentos da sociedade civil, sobretudo em relação à Baixada Fluminense, tendo havido um descompasso entre os relatórios apresentados pelo Gabinete de Intervenção e aqueles elaborados por outros entes e pela sociedade civil. Além disso, no âmbito do Conselho de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (Consperj), as preocupações trazidas pela sociedade civil foram muitas vezes ignoradas.


Em terceiro lugar, segundo a ação, os gestores da intervenção não detalharam certos recursos empregados ou previstos durante a intervenção federal, tanto no que se refere ao chamado “legado” da intervenção quanto à aplicação de recursos orçamentários e avaliação quanto à eventual necessidade de nova intervenção no futuro.


O Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) constatou o mesmo problema. No relatório “A intervenção federal no Rio de Janeiro e as organizações da sociedade civil”, o Ipea apontou a falta de transparência das ações no âmbito da segurança pública e, em relação às medidas de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) - operações policiais que contavam com apoio das forças armadas - , constatou a ausência de detalhamento nos objetivos e nos procedimentos de intervenção.


Tudo isso mostra que o termo “transparência” pode atender bem à tentativa de mostrar sintonia com o Estado Democrático de Direito, mas quando utilizado sem fundamento ou sem provas, pode tornar visíveis as contradições entre a mensagem e a prática. Afinal, a transparência demanda consciência e postura atenta ao permanente escrutínio público e à necessidade de que a publicidade nos atos do Estado e de seus agentes é a regra.


Usar seletivamente a expressão não contribui para o funcionamento das instituições democráticas e aumenta o descompasso entre o real e o virtual. Quando a transparência não é lembrada na hora certa, o argumento pode parecer casuístico e desprovido de sinceridade, reforçando os temores quanto à veracidade das declarações sobre a (não) ocorrência de eleições.


Governador Gay ou BolsoGay?

Ilustração Clovis Lima


Por Sylvio da Costa Jr.


A integralidade da assistência no SUS deve ser entendida como a promessa do sistema de saúde de tratar a todos brasileiros em toda sua complexidade de saúde, uma promessa ambiciosa e corajosa dada às possibilidades do processo saúde-doença, com questões que fogem muitas das vezes do campo específico da saúde. Como escrito em nossa Constituição Federal, no Artigo nº196, a saúde deve ser garantida “mediante políticas sociais e econômicas”, haja vista as repercussões no campo da saúde de escolhas e decisões de ordem política e econômica. Assim, o SUS assegura o atendimento integral aos usuários em um cenário de constantes mudanças de perfis epidemiológicos e de adoecimento da nossa população. 


Como testemunho do enorme esforço do SUS de assegurar cuidados em saúde dos mais variados ao conjunto de nossa sociedade, no ano de 2010, eu, o autor deste texto, fui contratado pela Organização Panamericana de Saúde/Organização Mundial da Saúde (Opas/OMS) e cedido ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) para acompanhar três Comissões Intersetoriais de Saúde existentes na rotina e na dinâmica no CNS. As Comissões Intersetoriais que eu acompanhava eram: Saúde do Trabalhador (CIST), Comunicação em Saúde (CICS) e Comissão Intersetorial de Saúde da População de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CISPLGBTT). 


Cada comissão apresentava suas demandas, suas propostas, suas dinâmicas e seus desafios, mas sem duvida a CISPLGBTT foi a Comissão mais desafiadora, devido aos enormes obstáculos existentes no sistema de saúde inserido em uma sociedade machista, homofóbica e muito violenta, mas por outro lado com conselheiros de Saúde corajosos e dispostos a modificar esse cenário a partir da garantia de direitos pelo SUS. 


Em diversas oportunidades acompanhei como consultor da Opas no CNS, por exemplo, as dificuldades de acesso ao serviço de transsexualização no SUS, no qual a política existe, mas na prática há um conjunto de dificuldades de acesso aos serviços, pois muitas vezes o ordenamento jurídico não dialoga com os problemas existentes. A transsexualidade traz à tona a discussão sobre aceitação ao outro e a dificuldade de reconhecimento dos direitos de todos brasileiros. 


Presenciei diversos relatos sobre as dificuldades na aquisição de hormônios masculinos, que geralmente são hormônios anabolizantes. Dada a dificuldade de acesso a esses insumos, a venda ocorre de maneira rotineira em mercados legais com falsificações de receitas para aquisição de hormônios e até em mercados ilegais, como bocas de fumos, expondo assim homens trans a diversas possibilidades de riscos. Ou ainda a fila de espera de mais de sete anos para cirurgia de readequação sexual, ou mais ainda as dificuldades de acessar o sistema de saúde para consultas de rotina para trans e travestis. Logo, o debate não era para criação de redes paralelas de cuidados em saúde, pois as políticas devem estar incluídas no bojo do sistema, respeitando suas especificidades.


Por conseguinte, a discussão sobre a saúde população LGBTQIA+ e a integralidade do SUS aflora imediatamente a discussão ética e civilizatória sobre a garantia de direitos, em que a discriminação gera sofrimento e uma condição social desfavorável, além da falta de empatia, irmã siamesa da violência.


Isto posto, em 1º de julho de 2021 o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, do PSDB, afirma no “Programa do Bial”, da Rede Globo, que é gay e que é “um governador gay, e não um gay governador”. Na estrutura social brasileira, encharcada de preconceitos, é importante ver um governador de Estado assumindo sua homossexualidade, todavia a orientação sexual deve trazer consigo suas lutas e bandeiras. Eduardo Leite é governador de Estado, a pergunta que faço é: ele ser gay fez com que a população LGBTQIA+ ampliasse direitos durante sua gestão? Não! Ou ainda, ele foi um ator de destaque nas muitas pautas, inclusive no campo da saúde, da população LGBTQIA+? Também não!


Logo, a pauta identitária não deve sobrepor-se à pauta de projeto de país e de sociedade. Esse governador, em 20 de julho de 2020, afirmou no programa Roda Viva, da TV Cultura: “Não tenho arrependimento (do voto em Bolsonaro em 2018) porque, dadas aquelas circunstâncias, acho que seria muito ruim o retorno do PT ao poder, depois de tudo que tinha acontecido". Assim Eduardo Leite, passados dois anos da eleição de 2018, afirma que votaria novamente em Bolsonaro, um político de extrema-direita, machista, homofóbico e violento, em detrimento do outro candidato, o professor da USP e doutor em Filosofia, Fernando Haddad. Na eleição que o Governador gay não se arrepende do voto, o candidato Bolsonaro lançou como expediente eleitoral informações falsas e caluniosas, via WhatsApp, embrulhadas em preconceitos da pior natureza, como “distribuição nas escolas de kit gay para menores de 6 anos” pelo então ministro da Educação, Haddad; ou ainda que, por ordem do candidato do PT, haviam sido distribuídas nas escolas e creches de São Paulo mamadeiras em formato de pênis. Essas mentiras de baixo nível foram criticadas pelo então candidato a governador do Rio Grande do Sul na época? Não! Vale lembrar que atualmente os deputados tucanos do Rio Grande do Sul, sob forte influência do governador, votam em massa na agenda econômica e política do governo Bolsonaro no Congresso Nacional, dando sustentação ao governo de extrema-direita de Bolsonaro – como no caso da votação da privatização dos Correios e da Eletrobrás. 


Assim tudo indica que a afirmação do governador gaúcho no “Programa do Bial” não foi um ato de coragem coisa nenhuma, mas sim uma entrevista armada, em um ambiente protegido e balizado por um cálculo eleitoral para viabilizar um candidato da chamada 3ª via, ou direita tradicional. Cria-se assim um fato novo, mas desprovido de conteúdo, haja vista que, por exemplo, no campo da economia a agenda do Eduardo Leite e do PSDB é exatamente a mesma do Bolsonaro, e no campo da saúde o estado do Rio Grande do Sul, na gestão Leite, em nada avançou na pauta de gênero. De maneira pensada o governador, e seus apoiadores, fizeram o seqüestro de uma pauta importantíssima para tentar interditar o debate dentro de uma fração do campo progressista e beliscar votos de uma parte da juventude porque o governador, de modo oportunista, se declarou gay.


Além da questão identitária, é necessário levar em consideração a política por trás, caso contrário teremos um identitarismo desprovido de conteúdo que em nada vai promover ampliação de direitos. Exemplificando o oportunismo eleitoral do identitarismo desprovido de conteúdo político, o que podemos falar do golpe misógino contra uma mulher, Dilma Rousseff, orquestrado pelo PSDB de Eduardo Leite, no qual chegou-se ao ponto de apoiadores do golpe de 2016 espalharem adesivos de carro com uma montagem da ex-presidenta de pernas abertas no tanque de combustível? O governador gay foi solidário à presidenta mulher? Não, nada.


As demandas do SUS e as pautas da saúde da população LGBTQIA+ são importantes e devem ser lavadas com a seriedade que merecem e não usadas de maneira oportunista por pescadores de águas turvas como o pré-canditato tucano. Eduardo Leite não é um governador gay, como ele charmosamente coloca em uma entrevista chapa branca, mas sim BolsoGay – um gay apoiador de um governo fascista, que tem em comum com Bolsonaro o mesmo projeto de país, promotor de desigualdades.


O poder fardado

Ilustração Cristovão Villela


Por Marlucio Luna



No fim de julho, o ministro da Defesa, general Braga Netto, mandou um recado em forma de ameaça ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL): sem voto impresso, não haverá eleições em 2022. Logo surgiram temores de um golpe militar, algo inconcebível há cinco anos. O Brasil, no melhor estilo república bananeira, vive preocupado com a possibilidade de um ataque à democracia liderado pela Forças Armadas. Os fardados se atribuem – sem jamais consultar a sociedade – o papel de “senhores da ordem”. Vivemos novamente o medo de uma ditadura.


Mas por que os militares brasileiros se sentem hoje com força para fazer ameaças veladas ou explícitas à ordem democrática? A resposta é a Lei de Anistia, aprovada em 1979 e que “perdoou” os crimes cometidos pela esquerda armada durante a ditadura militar. Entretanto, ela também isentou aqueles fardados que sequestraram, torturaram, mataram, ocultaram cadáveres, fizeram atentados terroristas e perseguiram todo e qualquer cidadão que discordasse dos ditadores. Na verdade, a legislação deveria chamar-se “Lei da Autoanistia”. 


Com a Lei da Anistia, os criminosos fardados ganharam a impunidade. O sentimento de estar acima da lei contaminou as gerações posteriores do oficialato brasileiro. Isso fez com que a ideia de poder político das Forças Armadas se mantivesse latente na mentalidade dos militares tupiniquins. Após a redemocratização, ao longo das décadas, cultivou-se uma atitude quase que de subserviência aos fardados. Qualquer menção a uma possível revisão da Lei de Anistia recebia o rótulo de “revanchismo” e logo surgiam os defensores da necessidade de “manter a estabilidade da democracia”. Havia ainda quem afirmasse ingenuamente que as Forças Armadas tinham assumido um papel “profissional e de respeito à Constituição”.


Em 2008, ocorreu um grande movimento de revisão da Lei de Anistia. Pela primeira vez, houve a oportunidade política de abrir caminho para punir os responsáveis por crimes contra a humanidade – que são imprescritíveis. As condições políticas eram propícias, pois vivíamos o segundo mandato de Lula, a economia crescia e o Brasil assumia um papel de liderança no cenário internacional. Mas o que aconteceu? Lula determinou que o então ministro da Justiça, Tarso Genro, avisasse aos comandantes militares que o Executivo era contra a revisão. Foi montada uma operação para esvaziar a proposta de mudanças na lei. Medo, covardia, acordo político? O leitor escolhe a opção que mais agradar.


Hoje, os militares brasileiros ocupam seis mil cargos no (des)Governo Federal. O pessoal fardado voltou a sentir o gosto do poder político – e de todas a$ vantagen$ derivadas dele. Não importa se o (des)governo prime pela mediocridade, falta de projetos e corrupção. O importante para o alto oficialato das Forças Armadas é garantir “boquinhas” e engordar os já robustos contracheques. Também não incomoda o fato de haver militares acusados de participação em esquemas de corrupção em diversas esferas da administração federal.


Conheço alguns militares que discordam dos movimentos antidemocráticos do ministro da Defesa e até questionam o papel das Forças Armadas. Mas esses preferem calar, até para manter cargos e oportunidades profissionais. Para eles, vou usar uma expressão gaúcha que aprendi com o amigo colorado César Oliveira. Esses tais militares com senso crítico “acadelaram-se” (viraram cadelas dos poderosos). Na hora decisiva, preferem pensar apenas em seus próprios intere$$e$.


Histórico desabonador – Excetuando-se a já consagrada competência em pintar meio-fio e a tradicional concessão de medalhas e condecorações aos seus integrantes, as Forças Armadas têm pouco a mostrar de útil. Patente (com trocadilho) mesmo, há apenas a série de episódios vergonhosos – de golpes de estado a assassinato de opositores, passando pelo desprezo à democracia.


No entanto, há episódios que se destacam na longa lista de aberrações. A Guerra do Paraguai, cujas vitórias brasileiras em batalhas são cantadas em prosa e verso pela historiografia oficial, foi palco de um dos mais vergonhosos episódios envolvendo militares brasileiros: a Batalha de Acosta Ñu, em agosto de 1869. Os 20 mil militares brasileiros dizimaram a tropa de 3,5 mil paraguaios. Um detalhe explica o porquê da vergonha: o contingente inimigo era formado por crianças e adolescentes com idades de 9 a 15 anos. O massacre se estendeu a mulheres, idosos e crianças com menos de 9 anos que acompanhavam o Exército paraguaio.


Ao longo da História do Brasil, os ataques à democracia e os atos de repressão às camadas populares contaram sempre com a participação efetiva das Forças Armadas. Os fardados jamais se sentiram culpados por fazer o serviço sujo para as elites, fossem elas nacionais ou estrangeiras. O pior: em raríssimos casos foram condenados pelos crimes cometidos no “desempenho de suas funções”. Basta ver a falta de punição para os militares que assassinaram com mais de 80 tiros o músico Evaldo Santos em 2019, quando realizavam uma operação irregular no Rio de Janeiro. O caso se arrasta na Justiça Militar e não há sinal de que haverá punição para os envolvidos no crime.


Vizinhos dão exemplo – Os nossos vizinhos da América do Sul também viveram ditaduras militares sangrentas. A transição democrática seguiu o roteiro pautado pela distensão política, com aprovação de leis de anistia, porém com denúncias de crimes cometidos por fardados. A diferença é que torturadores, assassinos e sequestradores que agiam sob o manto do autoritarismo receberam castigo. 


A Argentina é um exemplo nessa área: quatro ex-presidentes (Rafael Videla, Roberto Viola, Leopoldo Galtieri e Reynaldo Bignone) e um membro da Junta Provisória que assumiu o poder após o golpe em 1976 (o almirante Emilio Massera) foram processados, julgados e condenados. Terminaram seus dias cumprindo pena. 


A série de julgamentos iniciada na primeira década do século, que resultou em 43 condenações de militares e agentes da repressão, mostrou a robustez da democracia no país, servindo de exemplo para toda a América Latina. Hoje, a sociedade argentina não teme os militares – que, por sua vez, continuam longe da política.


O Uruguai também processou, julgou e prendeu antigos hierarcas do período ditatorial. Sete militares cumprem hoje pena por assassinato, tortura, sequestro, ocultação de cadáver – crimes cometidos contra opositores da ditadura. A redemocratização do país não passou por acordos políticos que garantissem a impunidade dos fardados.


Houve ainda punições de caráter político. Em 2019, o então presidente Tabaré Vásquez, exonerou o ministro da Defesa, Jorge Menéndez; o comandante do Exército, José González; o subsecretário de Defesa, Daniel Montiel e dois integrantes do Tribunal de Honra do Exército. O crime cometido por eles: omissão no julgamento de um militar envolvido na morte do guerrilheiro tupamaro Roberto Gomensoro, em 1973. A decisão de Vázquez ocorreu em plena campanha eleitoral. Não passou pela cabeça de nenhum uruguaio que a medida poderia colocar em risco a democracia.


Integrantes da Operação Condor – uma parceria das ditaduras sul-americanas para eliminação de opositores – tentaram se esconder na Itália. Mas fracassaram em seu objetivo. Os 24 militares presos, julgados e condenados pela Justiça italiana tinham participado de execuções de presos políticos na Bolívia, no Chile, no Uruguai e no Peru. De nada adiantou atravessar o Atlântico. A impunidade não é garantida – exceto no Brasil, é claro.


Na realidade brasileira, o poder das armas ainda assusta. Há quem se sinta às portas de um golpe militar. Há ainda aqueles que minimizam a capacidade de articulação dos fardados para uma virada de mesa no jogo democrático, mas não a descartam. Não ter aproveitado a chance de, em 2018, rever a Lei de Anistia e deixar de colocar os Ustras da vida na cadeia: eis o grande erro. Agora passamos o dia vendo generais, brigadeiros e almirantes querendo ditar as regras sobre as eleições de 2022. Eles têm, desde sempre, certeza da impunidade.