terça-feira, 3 de agosto de 2021

O poder fardado

Ilustração Cristovão Villela


Por Marlucio Luna



No fim de julho, o ministro da Defesa, general Braga Netto, mandou um recado em forma de ameaça ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL): sem voto impresso, não haverá eleições em 2022. Logo surgiram temores de um golpe militar, algo inconcebível há cinco anos. O Brasil, no melhor estilo república bananeira, vive preocupado com a possibilidade de um ataque à democracia liderado pela Forças Armadas. Os fardados se atribuem – sem jamais consultar a sociedade – o papel de “senhores da ordem”. Vivemos novamente o medo de uma ditadura.


Mas por que os militares brasileiros se sentem hoje com força para fazer ameaças veladas ou explícitas à ordem democrática? A resposta é a Lei de Anistia, aprovada em 1979 e que “perdoou” os crimes cometidos pela esquerda armada durante a ditadura militar. Entretanto, ela também isentou aqueles fardados que sequestraram, torturaram, mataram, ocultaram cadáveres, fizeram atentados terroristas e perseguiram todo e qualquer cidadão que discordasse dos ditadores. Na verdade, a legislação deveria chamar-se “Lei da Autoanistia”. 


Com a Lei da Anistia, os criminosos fardados ganharam a impunidade. O sentimento de estar acima da lei contaminou as gerações posteriores do oficialato brasileiro. Isso fez com que a ideia de poder político das Forças Armadas se mantivesse latente na mentalidade dos militares tupiniquins. Após a redemocratização, ao longo das décadas, cultivou-se uma atitude quase que de subserviência aos fardados. Qualquer menção a uma possível revisão da Lei de Anistia recebia o rótulo de “revanchismo” e logo surgiam os defensores da necessidade de “manter a estabilidade da democracia”. Havia ainda quem afirmasse ingenuamente que as Forças Armadas tinham assumido um papel “profissional e de respeito à Constituição”.


Em 2008, ocorreu um grande movimento de revisão da Lei de Anistia. Pela primeira vez, houve a oportunidade política de abrir caminho para punir os responsáveis por crimes contra a humanidade – que são imprescritíveis. As condições políticas eram propícias, pois vivíamos o segundo mandato de Lula, a economia crescia e o Brasil assumia um papel de liderança no cenário internacional. Mas o que aconteceu? Lula determinou que o então ministro da Justiça, Tarso Genro, avisasse aos comandantes militares que o Executivo era contra a revisão. Foi montada uma operação para esvaziar a proposta de mudanças na lei. Medo, covardia, acordo político? O leitor escolhe a opção que mais agradar.


Hoje, os militares brasileiros ocupam seis mil cargos no (des)Governo Federal. O pessoal fardado voltou a sentir o gosto do poder político – e de todas a$ vantagen$ derivadas dele. Não importa se o (des)governo prime pela mediocridade, falta de projetos e corrupção. O importante para o alto oficialato das Forças Armadas é garantir “boquinhas” e engordar os já robustos contracheques. Também não incomoda o fato de haver militares acusados de participação em esquemas de corrupção em diversas esferas da administração federal.


Conheço alguns militares que discordam dos movimentos antidemocráticos do ministro da Defesa e até questionam o papel das Forças Armadas. Mas esses preferem calar, até para manter cargos e oportunidades profissionais. Para eles, vou usar uma expressão gaúcha que aprendi com o amigo colorado César Oliveira. Esses tais militares com senso crítico “acadelaram-se” (viraram cadelas dos poderosos). Na hora decisiva, preferem pensar apenas em seus próprios intere$$e$.


Histórico desabonador – Excetuando-se a já consagrada competência em pintar meio-fio e a tradicional concessão de medalhas e condecorações aos seus integrantes, as Forças Armadas têm pouco a mostrar de útil. Patente (com trocadilho) mesmo, há apenas a série de episódios vergonhosos – de golpes de estado a assassinato de opositores, passando pelo desprezo à democracia.


No entanto, há episódios que se destacam na longa lista de aberrações. A Guerra do Paraguai, cujas vitórias brasileiras em batalhas são cantadas em prosa e verso pela historiografia oficial, foi palco de um dos mais vergonhosos episódios envolvendo militares brasileiros: a Batalha de Acosta Ñu, em agosto de 1869. Os 20 mil militares brasileiros dizimaram a tropa de 3,5 mil paraguaios. Um detalhe explica o porquê da vergonha: o contingente inimigo era formado por crianças e adolescentes com idades de 9 a 15 anos. O massacre se estendeu a mulheres, idosos e crianças com menos de 9 anos que acompanhavam o Exército paraguaio.


Ao longo da História do Brasil, os ataques à democracia e os atos de repressão às camadas populares contaram sempre com a participação efetiva das Forças Armadas. Os fardados jamais se sentiram culpados por fazer o serviço sujo para as elites, fossem elas nacionais ou estrangeiras. O pior: em raríssimos casos foram condenados pelos crimes cometidos no “desempenho de suas funções”. Basta ver a falta de punição para os militares que assassinaram com mais de 80 tiros o músico Evaldo Santos em 2019, quando realizavam uma operação irregular no Rio de Janeiro. O caso se arrasta na Justiça Militar e não há sinal de que haverá punição para os envolvidos no crime.


Vizinhos dão exemplo – Os nossos vizinhos da América do Sul também viveram ditaduras militares sangrentas. A transição democrática seguiu o roteiro pautado pela distensão política, com aprovação de leis de anistia, porém com denúncias de crimes cometidos por fardados. A diferença é que torturadores, assassinos e sequestradores que agiam sob o manto do autoritarismo receberam castigo. 


A Argentina é um exemplo nessa área: quatro ex-presidentes (Rafael Videla, Roberto Viola, Leopoldo Galtieri e Reynaldo Bignone) e um membro da Junta Provisória que assumiu o poder após o golpe em 1976 (o almirante Emilio Massera) foram processados, julgados e condenados. Terminaram seus dias cumprindo pena. 


A série de julgamentos iniciada na primeira década do século, que resultou em 43 condenações de militares e agentes da repressão, mostrou a robustez da democracia no país, servindo de exemplo para toda a América Latina. Hoje, a sociedade argentina não teme os militares – que, por sua vez, continuam longe da política.


O Uruguai também processou, julgou e prendeu antigos hierarcas do período ditatorial. Sete militares cumprem hoje pena por assassinato, tortura, sequestro, ocultação de cadáver – crimes cometidos contra opositores da ditadura. A redemocratização do país não passou por acordos políticos que garantissem a impunidade dos fardados.


Houve ainda punições de caráter político. Em 2019, o então presidente Tabaré Vásquez, exonerou o ministro da Defesa, Jorge Menéndez; o comandante do Exército, José González; o subsecretário de Defesa, Daniel Montiel e dois integrantes do Tribunal de Honra do Exército. O crime cometido por eles: omissão no julgamento de um militar envolvido na morte do guerrilheiro tupamaro Roberto Gomensoro, em 1973. A decisão de Vázquez ocorreu em plena campanha eleitoral. Não passou pela cabeça de nenhum uruguaio que a medida poderia colocar em risco a democracia.


Integrantes da Operação Condor – uma parceria das ditaduras sul-americanas para eliminação de opositores – tentaram se esconder na Itália. Mas fracassaram em seu objetivo. Os 24 militares presos, julgados e condenados pela Justiça italiana tinham participado de execuções de presos políticos na Bolívia, no Chile, no Uruguai e no Peru. De nada adiantou atravessar o Atlântico. A impunidade não é garantida – exceto no Brasil, é claro.


Na realidade brasileira, o poder das armas ainda assusta. Há quem se sinta às portas de um golpe militar. Há ainda aqueles que minimizam a capacidade de articulação dos fardados para uma virada de mesa no jogo democrático, mas não a descartam. Não ter aproveitado a chance de, em 2018, rever a Lei de Anistia e deixar de colocar os Ustras da vida na cadeia: eis o grande erro. Agora passamos o dia vendo generais, brigadeiros e almirantes querendo ditar as regras sobre as eleições de 2022. Eles têm, desde sempre, certeza da impunidade. 


sábado, 3 de julho de 2021

A contribuição do negacionismo ao colapso do sistema de saúde brasileiro

 Por Samara Balieiro e Fábio Ventura

Atualmente, o Brasil vive o pior momento da pandemia da COVID-19. Os primeiros registros do colapso do sistema de saúde se deram já no começo de 2021. Em janeiro, o Estado do Amazonas se tornou destaque em todo o país pela falta de leitos, de oxigênio e de aparelhos para ventilação mecânica. A consequência disso foi a morte por asfixia de mais de 30 amazonenses que não conseguiram o tratamento pela doença devido à falta dos insumos. 

Em março, diversos estados registraram pacientes que morreram à espera de um leito de UTI. Os hospitais alertaram para a falta de insumos e até mesmo as funerárias relataram a possibilidade de cancelar as férias de funcionários. São Paulo, estado que tem a maior estrutura hospitalar do país, até o fim de março registrou pelo menos 135 pessoas que morreram à espera de uma vaga na UTI. 

Apesar da falta de estrutura registrada em diversos hospitais o descaso e a negligência por parte do Governo, há também uma relação clara entre os picos de contágio no início do ano e suas datas. Exatos 15 dias após as comemorações de fim de ano, as taxas de novos casos e mortes pelo novo coronavírus aumentaram expressivamente. Apesar do feriado de Carnaval ter sido oficialmente cancelado, muitos brasileiros participaram de festas clandestinas e outras aglomerações no período. Em seguida, houve um pico de contágio em diversos estados.  

Esse crescimento descontrolado de novos casos por todo o país, devido às aglomerações, fez com que a capacidade de leitos de UTI e enfermaria chegasse quase ao limite máximo. Em São Paulo, ao menos 496 pessoas com COVID-19, ou suspeita da doença, não resistiram à espera por um leito e morreram no mês de março.

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“É preciso entender a ligação que existe entre os hábitos de parte da população brasileira e a maior crise sanitária e hospitalar da história”  Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) 

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Além do desrespeito, das aglomerações e a falta de práticas sanitárias recomendadas, esses hábitos foram realizados e instigados por uma parte dos cidadãos, que engajados a uma política extremista e a uma rede de informações falsas, contribuíram com o colapso do sistema de saúde. Esses cidadãos fazem parte do movimento negacionista. 

No Brasil, o negacionismo tomou proporções gigantescas e fomentou a disseminação das Fake News, em relação, principalmente, à seriedade do novo coronavírus, à confiança na ciência e à qualidade das vacinas. 

Segundo André Borges, mestre em Filosofia em Volta Redonda (RJ), há um motivo claro que envolve o negacionismo científico: “Existe também uma intenção política por trás, que utiliza desse movimento que está acontecendo e da ferramenta que é a Fake News para fazer valer seu pensamento a sua convicção, então se aproveita disso para, por exemplo, lançar uma ideia que não é a verdade, que se sabe que não será verdade, mas que tem um impacto a tempo de ser desmentido.”. 

No começo da pandemia, os negacionistas desacreditavam na gravidade da doença, com o intuito de invalidar a necessidade pelo lockdown, pelo uso das máscaras e pelo fechamento do comércio. Esse grupo influenciou a não adesão da população aos protocolos de prevenção, ao questionamento incessante aos veículos de comunicação e aos dados referentes à disseminação e à letalidade do vírus. Todo esse movimento contribuiu diretamente com o ápice das mortes registradas no país.

O médico Francis Bullos de Barra Mansa (RJ), analisou a relação entre o contágio da doença e a falta dos hábitos sanitários: “A maioria dos pacientes atingidos por Covid-19 não seguiam as regras sanitárias, primeiro, porque eles desconheciam, e segundo, porque havia e há a arrogância da falsa imagem que o brasileiro criou. Se o brasileiro não fosse arrogante, ele usaria máscara, pelo senso de coletividade. Eu atendi até então, 526 pessoas com Covid, desde o dia 20 de março do ano passado, parte dessas pessoas até tiveram cuidado para não contrair, mas o cuidado está nos detalhes, que na maioria das vezes, passa despercebido entre as pessoas.”.

O surgimento dos medicamentos sem eficácia 

Em um primeiro momento, o discurso dos negacionistas em relação à pandemia girava em torno da descrença sobre a seriedade da doença. Intitulada de “gripezinha” por políticos, celebridades e outras figuras públicas, a população brasileira acompanhou esse discurso se recusando a usar máscaras e evitar as aglomerações, o que consequentemente, contribuiu com o avanço do vírus. Quando os números não podiam ser mais ignorados e as mortes se acumulavam, o discurso repentinamente mudou. 

Como traço fixo de qualquer movimento negacionista, surgiu a incoerência. Ao reconhecerem a gravidade da doença, medicamentos milagrosos surgiram com a promessa de curar ou tratar preventivamente a população. Segundo a Associação Médica Brasileira (AMB) a hidroxicloroquina/cloroquina, ivermectina, azitromicina entre outras drogas, não possuem eficácia científica comprovada no tratamento ou prevenção da COVID-19. O uso desses medicamentos, por muitas vezes, incentivou parte da população a quebrar os protocolos de segurança sanitária pela crença de que estariam protegidos do vírus. Conhecido como Kit Covid, esses medicamentos não só não possuem eficácia contra o coronavírus, como ainda causaram a morte de três pessoas por hepatite e colocaram cinco pessoas na fila para transplante de fígado em São Paulo.

O processo de desinformação não é algo novo, o que difere é a motivação por trás desse movimento e o seu contexto. Apesar de não se igualar à tragédia atual que vivemos, com as mais de 450 mil mortes, em outros momentos da história o país já enfrentou perdas. O médico Francis Bullos relatou: “Durante o período do regime militar de 1964 houve uma epidemia de meningite na cidade do Rio de Janeiro principalmente, e naquela época o Presidente era o General Geisel e aquilo foi omitido durante muito tempo da população e muita gente, principalmente crianças, foram acometidas de meningite meningocócica devido ao fato de que esconderam [a doença]. Toda vez que o governo esconde fatos e não usa a mídia para divulgar que existe uma situação patológica, ou seja, omitem situações que são danosas à população e que não a permitem reagir, eles acabam sendo negacionistas.”. 

O início da vacinação no Brasil 

Com a chegada da vacina, a principal solução para a pandemia, a incoerência retornou ao discurso dos negacionistas, que não satisfeitos em invalidar a eficácia dos imunizantes, propagaram diversas notícias falsas sobre o conteúdo e o propósito das vacinas. Algumas das Fake News propagavam a possibilidade da alteração do DNA humano e a inserção de um microship no corpo após a aplicação do imunizante. A consequência foi a formação de um amplo e forte movimento antivacina que defendia uma suposta liberdade que estaria sendo ferida. Agora, mesmo com o avanço do cronograma de vacinação e com mais de 20 milhões de brasileiros totalmente vacinados, esse discurso infelizmente ainda existe e persiste. Em março, uma pesquisa do Data Senado revelou que 14% dos brasileiros preferem não se vacinar. 

Segundo André Borges, o momento atual dificulta lutar contra esse movimento: “O que vivemos hoje é a quarta revolução industrial, onde não basta estar conectado em rede, mas é uma interação virtual que se alimenta a si mesmo, um momento onde a informação vem antes do conhecimento e como ela vem de várias vias fica difícil filtrar essas informações, para transformar em conhecimento.”.

Por fim, em maio, manifestantes se reuniram em apoio ao presidente Bolsonaro e protestaram contra as ações da CPI da Covid. A Comissão Parlamentar de Inquérito tem como objetivo apurar se houve falhas, negligência e descaso por parte do Governo Federal no enfrentamento da pandemia. Mesmo com indícios de que o Brasil caminha até a marca de meio milhão de mortes, o negacionismo crescente no país continua ajudando o Governo a se isentar de futuras responsabilidades, contribuindo com a precária situação sanitária que ceifou milhares de vidas, que, com o início tardio da vacinação e com a persistente invalidação dos protocolos de segurança, continuam sendo perdidas. 


A Invisibilidade da População em Situação de Rua e a Saúde

 Sylvio Costa Jr. 




Desde 2015 foi iniciado no Brasil um golpe de estado com intenção clara: destituir a presidente eleita em 2014 para iniciar uma profunda mudança na orientação política do país. Houve desde então um aprofundamento de políticas neoliberais e de desregulamentação do mercado de trabalho que tem não só aumentado a pobreza e a miséria como tem feito a renda média de várias classes sociais despencar. Nada disso por sadismo somente, mas principalmente para garantir em meio à crise econômica mundial as altas taxas de lucro do rentismo bancário, expresso no pagamento de juros de uma dívida nunca auditada. A lei do teto de gastos, conhecida como PEC da Morte (Emenda Constitucional nº 95), que congela gastos sociais por 20 anos, mas deixa livre os gastos para rolagem da dívida, é a sua maior expressão. Nesse contexto, sem investimento público, sem investimento social, com os golpistas sentados sobre o cofre da União para gastos com a população, a economia brasileira cresceu apenas 1,1% em 2019, menos que o observado no primeiro governo do golpe de 2016, Temer, quando a economia brasileira cresceu meros 1,32% e 1,31%, em 2017 e 2018 respectivamente. O desgoverno Bolsonaro/Guedes conseguiu piorar a economia em relação ao governo Temer, sem contarmos o ano de 2020, onde a economia apresentou “crescimento” (sic) de -4,2%. O empobrecimento do país tem raízes em sua orientação política e econômica. A taxa de desemprego gira em torno de 14% da população economicamente ativa, a maior da série histórica, com mais de 14 milhões de desempregados. Se levarmos em consideração os subocupados e desalentados, o total da força de trabalho sem renda ou com sua renda diminuída chega a algo em torno de 35 milhões de brasileiros, segundo o IBGE (Pnad-Contínua). Quando olhamos os brasileiros e brasileiras na informalidade vemos uma taxa de informais de 39% da população economicamente ativa, com 33,5 milhões de trabalhadores informais no país. Logo, um número cada vez maior de pessoas e famílias são empurradas às ruas, ora pela crise econômica promovida pelo neoliberalismo, que levou embora os empregos de muitos, ou por despejos e reintegrações de posse em um ambiente político deteriorado pela burguesia nacional que catapultou o governo de extrema-direita.

 

É de se imaginar que nesse cenário econômico e social catastrófico o aumento da pobreza tenha repercussão na saúde da população e no sistema de saúde brasileiro. Em nota técnica produzida pelo IPEA sobre a “Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil (setembro de 2012 a março de 2020)” a população de rua foi estimada em 2015 em 120 mil pessoas, saltando para mais de 221 mil pessoas em 2020, quase dobrando em números absolutos e concentrada principalmente nos grandes centros urbanos e indústrias (83% em cidades com mais de 100 mil habitantes).

 

Assim, a população em situação de rua (PSR) é formada por um contingente complexo de pessoas, com características heterogêneas, mas majoritariamente tendo em comum uma situação de pobreza e de vínculos familiares enfraquecidos ou esgarçados onde o abandono de moradia em caráter permanente ou temporário são suas características mais marcantes. Nesse complexo agrupamento do tecido social brasileiro há desde aposentados com renda fixa, guardadores de carro, vendedores ambulantes até meninos e meninas órfãos já nascidos nas ruas. O ambiente das ruas oferta a esse enorme contingente humano a violência física, muitas vezes promovida pelo Estado através das polícias militares e guardas municipais, a invisibilidade social, a insegurança alimentar, a carência de afeto além, obviamente, de múltiplas possibilidades de adoecimentos físicos no contexto do processo de saúde-doença. A questão chave da população de rua é vista por uma parcela da classe média branca dos centros urbanos como uma questão com forte componente moral relacionada a caridade ou a ordem (esta última com baseada na repressão pelas forças de segurança) estigmatizando assim a PSR, ora como dependentes químicos, ora como doentes mentais ou meramente delinqüentes. Esse pensamento de senso comum é fruto de uma análise rasa como um pires e sem qualquer relação com a produção de desigualdades advindas de um sistema econômico e social capitalista excludente por sua natureza.

 

Nesse cenário é de se imaginar a dificuldade dessa população para acessar serviços de saúde, porém em 2011 foi implantada pelo Ministério da Saúde, no governo Dilma, um serviço inovador chamado “Consultório na Rua” para oferta de serviços assistenciais em saúde para esse grupo. Essas equipes (eCR) uma vez cadastradas e habilitadas pelos municípios dentro do programa são compostas por diversos profissionais de saúde e suas rotinas de trabalho são baseadas em atendimentos de forma itinerante e em parceria com equipes de atenção básica do território na perspectiva de oferta integral à saúde. Importante destacar que em paralelo a isso algumas prefeituras oferecem abrigamento e alimentação, entre outras ações tais como: Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) e abrigo institucional e/ou casas de passagem, para população em situação de rua tentando assim minorar o sofrimento do desamparo social.

 

Com a pandemia do causada pelo Covid-19 (Sars-Cov 2) e o total despreparo do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, sustentado pelo partido armado, em particular o Exército brasileiro, a degradação econômica que já era profunda a partir de 2016 conseguiu ficar bem pior, como dito pelo saber popular, onde “nada é tão ruim que não possa piorar”. O despreparo do governo para gerir o Estado Nacional já era claro e óbvio antes da pandemia, com repercussão negativa em indicadores de saúde, mas com a pandemia o despreparo se materializou em uma tragédia gerenciada por incompetentes. A mera divulgação dos números oficiais de casos e de óbitos não é realizada pelo Ministério da Saúde e sim por um consórcio de imprensa independente do governo, sendo que informação em saúde não é privilégio, e sim um direito, porém para ocultar a própria incompetência os números oficiais e sua análise não são divulgado há mais de 1 ano. Assim, não temos um recorte, por exemplo, sobre a PSR deixando-a novamente inviabilizada. O resultado de não haver nem números, nem dados e nem informações é não haver por conseguinte políticas, logo a PSR não conta na precária régua que mede a pandemia. O número disponível sobre o acometimento de Covid-19 recai somente em quem está abrigado em acolhimentos e centros temporários, deixando de fora um enorme contingente de quem vive debaixo de pontes, marquises e sobre as calçadas e bancos de praças.

 

Além do auxílio emergencial, medida tomada frente a enorme pressão para algum tipo de apoio às famílias mais afetadas pela pandemia, o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro não lançou nenhum outro programa para auxílio ou apoio para populações vulneráveis específicas assim como o poder judiciário, ágil para encarcerar pobres e ligeiro na promoção de ações higienistas com as guardas municipais contra as populações em situação de rua em nada cobram de gestores um olhar mais acurado sobre esse público.  Como gestores pedem isolamento social a quem não tem casa? Como pedir higienização das mãos a quem não tem acesso fácil à água potável para beber?

 

 

Discursos vazios e sem paralelo na realidade, como a brasileira, sobre o estado mínimo e austeridade fiscal não resolvem problemas estruturais de nossa sociedade, como a desigualdade social e econômica, que a cada dia se agrava. O país precisa de um governo que coloque os pobres no orçamento público, que invista em programas sociais, que tenha na educação, na saúde e na assistência social bússolas de suas ações, olhando diferentes grupos sociais e suas diferentes necessidades. A pergunta que fica é: o atual governo, incompetente na gestão da economia, vazio de políticas no combate a Covid, sem proteção social aos mais pobres, é capaz de alguma ação dessa natureza? Quando, dia 17 de junho de 2021, o Ministro da Economia, Paulo Guedes, em uma live com a Ministra da Agricultura, Tereza Cristina (DEM), sugere oferecer resto de comida dos pratos da classe média a população em situação de rua, afirmando que “aquilo dá para alimentar mendigos” e sua colega Ministra, concordando, diz “podemos rever à validade dos nossos alimentos” a resposta fica bem mais clara.

Ainda é cedo para sonhar com impeachment

Por Marlucio Luna 

Desde que os irmãos Miranda incendiaram a CPI da Covid com a implícita acusação de prevaricação de Jair Bolsonaro no processo de compra da vacina Bharat e a suspeita de corrupção na aquisição de imunizantes – o famoso US$ 1 por dose –, a chance de impeachment do genocida ocupante da cadeira presidencial tornou-se algo real. Para o cidadão minimamente consciente, isso representou um alento. Dourando o quadro de esperança, o presidente da Câmara, Arthur Lira, recebeu o super pedido de impeachment, endossado por 46 entidades da sociedade civil e unificando os argumentos apresentados em 123 outras solicitações de afastamento do presidente.


Ainda que a esperança mova e alimente o sonho de mudança rápida, pero no mucho, do cenário político, a realidade aponta um horizonte não tão auspicioso. Em Brasília, há setores da oposição a Bolsonaro que jogam para a plateia e trabalham para que a proposta de impeachment não se torne realidade. Para tais atores políticos, um afastamento do presidente votado pelo Congresso este ano daria margem para – usando um termo da moda – favorecer a “construção de uma narrativa”, na qual o Kid Cloroquina se colocaria no papel de vítima de um sistema político que ele buscou combater.


Tal discurso faria muito sentido para aquela parcela do eleitorado que segue fielmente o presidente, o típico bolsonarista raiz. Pior ainda, o transformaria em uma espécie de mártir. Para completar, seria o elemento deflagrador de um (pouco) provável movimento de resistência por parte de grupos com um pé no fascismo, notadamente policiais militares e membros de baixa patente das Forças Armadas. 


Logo no início desta semana, duas manifestações públicas de importantes atores políticos deram a entender, por diferentes motivos, que o impeachment não está no radar. O primeiro foi o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, destacando que o instrumento “impeachment” não pode ser usado em qualquer situação, pois “o remédio pode matar o doente”. De certa forma, foi um alerta de que solicitar o afastamento do presidente da República neste momento significa colocar em risco a estabilidade da democracia – ainda que todas as instituições estejam funcionando normalmente. Mas isto é apenas Gilmar Mendes sendo Gilmar Mendes. 


Pior foi a água fria jogada pelo segundo personagem político a dar declarações pouco animadoras aos defensores do impeachment: o ex-presidente e favorito em dez entre dez pesquisas para as próximas eleições, Luís Inácio Lula da Silva. Nesta quarta-feira, 30 de junho, Lula disse que apoia o superpedido de afastamento de Bolsonaro, mas acredita que não vai dar em nada. O líder petista poderia até ter tal análise, mas jamais deveria expressá-la de forma tão explícita. Depois dessa manifestação pública, eu não aposto uma camisa do Bonsucesso no sucesso da iniciativa de tentar afastar o pai de Carluxo do Palácio do Planalto.


O que há por trás desta inapetência pelo impeachment demonstrada por parte expressiva da oposição? Em primeiro lugar, a ideia de que seria melhor sangrar Bolsonaro até outubro de 2022 e vê-lo chegar politicamente anêmico no pleito. Tal perspectiva conta com a simpatia de setores da esquerda, que sonham com uma vitória acachapante no primeiro turno. O problema é o outro lado. Um grupo expressivo da direita dita civilizada (aquela que sabe usar os talheres à mesa) e da centro-direita tenta ganhar tempo para buscar o tal nome da terceira via, jogando com a alta taxa de rejeição do governo e o discurso da polarização entre Bolsonaro e Lula. Assim, o calendário dará chance para manter a busca ativa por um (cada vez menos provável) nome de centro.


A não ser que surjam provas irrefutáveis dos crimes de corrupção que já são de conhecimento de todos, a tendência é deixar que Bolsonaro se transforme em um cadáver insepulto a vagar pelo Palácio do Planalto. Ele perdeu a confiança da entidade mitológica chamada “mercado”; criou atritos com o alto comando das Forças Armadas; associou-se ao Centrão, aquele agrupamento político disforme para o qual lealdade e respeito a acordos sempre foram peças de ficção (Dilma que o diga); e enfrenta o ataque sistemático da imprensa burguesa, a mesma que colaborou de forma decisiva para elegê-lo. Todos querem vê-lo como um zumbi político se arrastando em outubro de 2022.


A pergunta que fica no ar: o Brasil aguentará até outubro de 2022? Qual o preço a ser pago pela população em meio à maior crise sanitária da história e à pior crise econômica já vivida pelo país? Cálculos políticos à parte, não é possível fechar os olhos para o número de mortes causadas pela Covid, nem para os alarmantes índices de desemprego e miséria. Esperar as próximas eleições pode representar o agravamento incontrolável da situação.


Povos e comunidades tradicionais conquistam resolução no Ministério Público

 Julio José Araujo Junior


Os povos e comunidades tradicionais conquistaram um importante instrumento de luta por seus direitos nesta semana. Foi publicada a Resolução nº 230, de 8 de junho de 2021, do Conselho Nacional do Ministério Público, que disciplina a atuação do Ministério Público brasileiro junto a essas populações.


A resolução foi construída com a participação de representantes de povos indígenas, quilombolas, pantaneiros e outras populações tradicionais, os quais puderam apresentar, durante os seis meses do processo de discussão, as principais dificuldades na interlocução com esse órgão e sugerir formas de aproximação e diálogo na efetivação de direitos previstos na Constituição.


Um aspecto fundamental na norma está no reconhecimento de um sistema de proteção constitucional dos povos e comunidades tradicionais, que compreende os conjuntos de artigos 215, 216, 231 e 232, da Constituição, além do art. 68 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias. Isso significa que as previsões constitucionais sobre povos indígenas e quilombolas devem ser compreendidas como normas que abordam a realidade de todos os povos e comunidades tradicionais, produzindo efeitos em todo o ordenamento jurídico.


Como consequência, os direitos dos povos e comunidades tradicionais devem ser lidos à luz da perspectiva normativa superior da Constituição, associada à Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Não se deve, portanto, falar em hierarquia nos regimes jurídicos de povos indígenas e de outros povos e comunidades tradicionais, pois todos os grupos gozam dessa proteção jurídica.


Além disso, a resolução fixa o diálogo intercultural como uma diretriz fundamental na relação do Ministério Público com esses povos. Isso pressupõe o respeito e o reconhecimento jurídico de cosmovisões, práticas e identidades, sem qualquer conotação essencialista ou tentativa, pelo Estado, de definir previamente o projeto de vida a ser seguido por indivíduos ou grupos. Não é possível estabelecer prioridade entre saberes, formas de organização ou mesmo sistemas jurídicos, cabendo ao Ministério Público estar aberto a essa realidade, por força do art. 129, V, da Constituição, que lhe incumbiu o dever de defender os direitos indígenas e, por conseguinte, o próprio sistema de proteção às populações tradicionais.


O texto da resolução contém 11 artigos. A norma aborda a relação com as comunidades desde o ingresso no prédio da instituição (art. 2º): em primeiro lugar, é necessário saber recepcionar os grupos, com respeito à autoidentificação; em segundo lugar, a instituição deve cuidar para não estabelecer qualquer restrição indevida em relação a trajes e vestimentas, como pinturas no corpo adereços e símbolos. 


Em terceiro lugar, o atendimento presencial deve ser priorizado, salvo em circunstâncias excepcionais, tendo em vista a necessidade de estabelecimento de vínculos e diálogo efetivo com o grupo; por fim, há necessidade de respeito à língua materna, com o estabelecimento de mecanismos para tradução ou interpretação das demandas.


O diálogo intercultural, de caráter interseccional, permeia toda a resolução e tem previsão específica nos artigos 3º e 4º. No art. 3º, a resolução prevê o caráter imprescindível do respeito à autonomia dos grupos e o respeito à autoatribuição da identidade. Nesse caso, o Ministério Público deve atuar e zelar para que o Poder Público não exerça qualquer discriminação e não deixe de atuar na efetivação de políticas públicas sob a alegação de que “fulano não possui determinada identidade” ou “beltrano não é indígena”. O Estado não pode se arvorar na condição de definidor dessa identidade.


No art. 4º, a resolução aponta os princípios do diálogo intercultural: a informalidade, a presença física e a tradução intercultural. Devemos olhar para a relação com esses grupos de forma atenta às suas especificidades socioculturais. Nesse ponto, a presença física e a interação social para a concretização do diálogo intercultural são tarefas fundamentais. A informalidade, por sua vez, impõe um diálogo sem as amarras do “juridiquês” e com vistas a informar e receber informações de forma clara sobre os rumos da atuação do Ministério Público e das estratégias de mobilização dos grupos.


A tradução intercultural, prevista no art. 4º, atende a uma lógica de garantir o trânsito entre mundos diferentes. É necessário que as perspectivas, os modos de vida e as compreensões de mundo das populações tradicionais possam ser trazidas ao conhecimento do órgão por meio do auxílio de profissionais, como intérpretes, antropólogos e representantes de outras áreas do conhecimento. O Ministério Público deve estar preparado para garantir essa tradução.


No art. 5º da resolução, temos a consagração do direito à participação, que tem como diretriz fundamental o respeito à consulta prévia, livre e informada, prevista no art. 6º da Convenção nº 169/OIT. A resolução dispõe que a ausência de consulta prévia enseja a nulidade de processos e procedimentos, cabendo ao Ministério Público zelar pelo respeito à norma e aos protocolos de consulta estabelecidos pelos grupos.


Outro fator primordial que emerge da resolução é o território (art. 6º). Em tempos tão sombrios, marcados pelas tentativas de restrição de terras indígenas e outros territórios por meio de leis, interpretações judiciais ou administrativas, a resolução dá uma resposta importante. Ela fixa que o respeito aos territórios independe da sua regularização formal pelo Estado, devendo o Ministério Público adotar as medidas necessárias para viabilizar o seu reconhecimento e garantir que a análise de suas características não esteja limitada aos regimes civis de posse e propriedade. Deve, neste caso, prevalecer uma compreensão intercultural dos direitos fundamentais envolvidos.


O art. 7º trata das políticas públicas, tema caro a todos os ramos do Ministério Público. O artigo estipula que o Ministério Público deve acompanhar e exigir políticas de todos os entes da federação (Municípios, Estados, União), zelando pelo respeito à territorialidade, à autonomia dos grupos e às suas especificidades socioculturais. Mais uma vez, a resolução destaca que esse papel deve ser realizado independentemente da finalização do processo de regularização formal dos territórios.


A intervenção obrigatória do Ministério Público em processos judiciais está destacada no art. 8º. Ela ressalta que isso não afasta a representação judicial dos grupos por eles mesmos, cuja manifestação é imprescindível, sob pena de nulidade.


Por fim, os artigos 9º e 10º orientam o funcionamento da resolução no âmbito do Ministério Público, com a esperança de que a resolução possa significar uma via de mão dupla. Por um lado, é necessário internalizar e disseminar os seus conceitos entre os membros do Ministério Público, de forma a garantir a atuação baseada no diálogo intercultural. Por outro, a mobilização dos povos e comunidades e a utilização da resolução como instrumento para a efetivação dos seus direitos junto aos órgãos do Ministério Público é uma caminhada que está sendo impulsionada e estimulada.


Para concluir, o CNMP deu um passo tão importante que não se limita à orientação dos membros sobre o seu papel constitucional. A resolução oferece também coesão e contrapontos jurídicos e aos ataques normativos e interpretativos que essa matéria vem sofrendo. Ao mostrar o compromisso constitucional do Ministério Público com essa pauta e consolidar entendimentos jurídicos e jurisprudenciais sobre a matéria, o CNMP está dando um recado claro acerca da efetividade dos direitos fundamentais dessas comunidades.


quinta-feira, 17 de junho de 2021

Existe um mito no Brasil e ele não é o presidente da República

Ilustração Clóvis Lima

Por Leandro Marins Sarmento

A filósofa brasileira Marilena Chauí nos ajuda a entender que um mito, mais do que um herói com feitos alegóricos, fantásticos e inimagináveis, pode ser compreendido no seu sentido antropológico, em que a “narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade.” Um mito é uma narrativa que tem um vínculo com o passado e se mantém de forma tênue no presente. Vai além do que um único evento histórico pode explicar. A psicanálise também justifica como “um impulso à repetição de algo imaginário, que cria um bloqueio à percepção da realidade e impede lidar com ela.

Cabe aqui, ainda, um breve parênteses. O diálogo é a arte dos contrários, do grego dia, por intermédio de, e logos, que significa palavra. Mais do que por meio das palavras, o significado da palavra diálogo pode ser concebido pela mediação entre pessoas, grupos sociais, instituições. Esse conceito nos ajuda a entender o que significa a Dialética. Nos estudos das Ciências Sociais, de forma bem resumida, podemos admitir a evolução do pensamento teórico e metodológico partindo do positivismo, passando pelo historicismo e chegando até ao marxismo, ou materialismo dialético. Todo referencial teórico evolui a partir desses três paradigmas e possui também “fertilizações recíprocas” de modo de ver o mundo.

O historicismo partia da crítica ao positivismo clássico de causa e efeito, de ação-reação, do modo de observar a sociedade a partir das mesmas regras que podemos observar as Ciências Naturais.  O progresso moral e científico e a hierarquização do conhecimento eram nortes para Auguste Comte (1798-1857), que o movimento historicista criticava. Para os historicistas, todas as experiências sociais poderiam ser respondidas pela sua história. Repare, há aqui uma oposição entre a razão científica e a razão histórica. Tanto uma quanto a outra, não conseguem responder às multiplicidades de fatores que uma experiência humana possibilita para o decorrer do processo histórico. O pensamento positivista, por tentar ordenar e hierarquizar o conhecimento e o historicismo por não compreender que, nas Ciências Sociais, o gênero humano é o observador e o objeto em si. 

A dialética supera essa dicotomia por conceber a contradição como o real observável. Para a dialética materialista, por exemplo, as contradições não são antagônicas e, dependendo do modo de ver - princípio do mirante, Michael Löwy, se complementam. O materialismo dialético propõe observar a paisagem, percebê-la na simplicidade, de forma imediata, à primeira vista. Em um segundo momento, a dialética convida o observador a percorrer o trabalho para além da intuição. Estamos agora experimentando diferentes pontos de vista. O que há por detrás daquela casa de janelas azul e chaminé da tela? Se o pintor não se der ao trabalho de percorrer outros horizontes, outros mirantes, jamais vai descobrir.

A razão de perceber o que há para além do ponto de partida é a centralidade do pensamento dialético materialista. Ou seja, o marxismo admite ponto de vista, ainda que os órfãos de Stalin não admitam. Fecha parênteses.

Perceber as forças armadas brasileiras ou as instituições militares como instituições de Estado, com respeito e obediência plena à Constituição cidadã de 1988 é um equívoco (do ponto de vista positivista, historicista e dialético) que acomete grande parcela da sociedade brasileira e até da esquerda. É uma narrativa sem qualquer relação com a realidade. Ou seja, um mito. A nossa República, coisa pública, governada para todos, foi fundada a partir da queda da monarquia em um arranjo entre a oligarquia (aristocracia agrária), pequenos comerciantes provincianos e, para surpresa da mitologia em questão, dos militares. O primeiro presidente da nossa democracia foi, para espanto das mesas, um militar. Marechal Manuel Deodoro da Fonseca, entusiasta do positivismo de Comte e que perpetuou o pensamento por gerações na escola militar brasileira.

Florestan Fernandes, no brilhante “Revolução Burguesa” (1976), aponta que, diferente das experiências revolucionárias na América e na Europa, a queda da monarquia não se deu por uma ruptura com a oligarquia. Ou seja, a classe burguesa no Brasil - para reforçar, pequenos comerciantes provincianos e o movimento tenentista, não “assume o papel de paladina da civilização ou de instrumento de modernidade”. Ela não rompe com o passado, com a aristocracia agrária escravista, com a oligarquia das províncias e, deste modo, não rompe com o Estado, se apropria dele deixando a maioria da sociedade brasileira às margens de todo o processo de desenvolvimento da novidade da democracia.

Para o professor Lincoln de Araújo Santos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, fazendo uso político do monopólio da força coercitiva, a instituição militar assumiu durante a história da nossa República, “a função importante na condução do país e, mais uma vez, acentuando o projeto autoritário de nação”.

A partir da nossa Revolução Burguesa às avessas, sejamos diretos: por uma ideia de nação, onde a maioria da população está excluída, condenada a trabalhar e gerar riqueza para uma minoria dirigente, a instituição militar golpeia a república cercando o palácio Guanabara em outubro de 1930, prendendo o então presidente Washington Luís. Com Vargas, em novembro de 1937, fecham as casas legislativas e decretam a ditadura do Estado Novo. Depois do protagonismo de 37, Vargas vira alvo dos militares e renuncia em 1945, quando os tanques apontaram seus canhões para a residência presidencial. Não podemos perder a conta: Fundação da República, Golpe de 1930, interferência direta em 1945 e não paramos de contar e ordenar as ações das instituições brasileiras contra a própria república. Do ponto de vista positivista, mito.

A última grande contribuição dos militares para o desenvolvimento da nossa democracia foi o golpe de 1964 e a gestão desastrosa dos 21 anos de ditadura que perseguiu, prendeu, torturou, estuprou, matou e sumiu com significativa parcela do seu próprio povo. É nesse momento que os militares forjaram a narrativa absurda de “revolução democrática”, “democracia relativa”, “golpe preventivo”, que sustenta toda a narrativa de instituição em defesa do povo brasileiro, instituição de Estado, “braço forte, mão amiga”. Até hoje a data é comemorada como data oficial nos quartéis militares. Todos os anos, a ordem do dia 31 de março é comemorar os incontáveis crimes contra a humanidade. Do ponto de vista historicista, mito. Covarde, mas ainda um mito.

Vejam, não estamos contando as inúmeras tentativas de golpes malsucedidas, interferências militares no Executivo, legislativo e até no Judiciário como a ameaça ao STF admitida pelo General Villas Boas às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula pela corte “suprema”. Nem mesmo fizemos qualquer referência às invasões e mortes nas comunidades populares Brasil adentro pelas operações das polícias militares. Só estamos falando dos comportamentos oficiais, institucionais das forças armadas enquanto “instituições de Estado”.

Agora, aqui um alerta, precisamos olhar para a história e perceber onde estamos neste momento. Perceber como essa narrativa fora da realidade nos aprisiona ao passado e nos impossibilita de falar por nós. De sermos sujeitos de nossas próprias vidas. No último dia 6 de junho, o Exército brasileiro impôs 100 anos de sigilo ao processo em que a justiça militar absolveu o ex-ministro Eduardo Pazuello das acusações de crime militar. O que de tão grave pode ter ocorrido nesse julgamento? Porque uma instituição que se coloca a serviço de seu povo se esconde de forma medíocre? O que foi dito e que o povo não pode saber?

Em 1954, os militares realizaram o Inquérito policial Militar para apurar o assassinato do major Rubens Florentino Vaz no atrapalhado atentado ao Carlos Lacerda e opositor de Vargas.  A investigação caberia à Polícia Civil, mas os militares tomaram as investigações para o seu comando e, de forma autônoma, desenharam o golpe nos salões do Clube da Aeronáutica, informando o resultado do inquérito primeiro às Forças. No mesmo local, assinaram um manifesto exigindo a renúncia do Presidente da República. Como sabemos, Vargas adiou a escalada autoritária com um tiro no peito. Os militares recuaram diante da revolta popular que tomou as ruas. 

Hoje, a instituição militar se vê refém de suas próprias narrativas, o anacronismo das forças armadas brasileiras é flagrante e vai de encontro aos anseios de um governo completamente descolado da trágica realidade do povo brasileiro. Em 1954, uma morte causou uma revolta popular e puseram fim ao projeto autoritário de uma instituição derrotada por suas próprias limitações. Em 2021 não temos um suicídio. Temos, até o dia 9 de junho, 477 mil mortes.

 Não há, na história do nosso processo de democratização, uma única fonte que sustente a tese de que a instituição militar se qualifique como uma instituição a serviço da democracia. As Forças Armadas não estão acovardadas, não estão se apequenando, não estão sendo usadas por um projeto autoritário de um aventureiro idiotizado subletrado. Os militares se confundem com o projeto bolsonarista. Não é risível, como alguns companheiros escolheram adjetivar, a condição de avalista que as Forças Armadas se apresentam ao bolsonarismo, não é surpresa a participação dos militares em todas as desventuras da nossa democracia. Não é patético o Eduardo Pazuello ser considerado um especialista em logística, é uma tragédia institucional o Exército Brasileiro formar quadros a partir de um marco filosófico do século XIX. O Exército Brasileiro é um mito. Do ponto de vista dialético, não mais que um mito.

O pensamento social das Forças Armadas precisa ser modernizado, precisamos de uma profunda reforma das nossas forças armadas, que estejam em dia com seu papel constitucional e com as reais necessidades da sociedade brasileira. Não cabe mais, no mundo moderno, negar uma pandemia, negar o conhecimento científico, negar a maior crise climática do planeta, negar o direito à vida e à liberdade. A democracia é um processo, não um fim. O cientista político Luís Felipe Miguel, da UnB, gosta de usar Gilberto Gil para dizer que “estamos vivendo as ruínas de uma democracia em construção!”. Do meu ponto de vista, até o dia em que eu puder dizer, a democracia nunca recua, não encontra barreiras, não teme por suas contradições, não vai ser uma instituição estagnada nas suas limitações, e que não entende o próprio papel constitucional, que poderá interromper o processo histórico. Não conseguiram ontem, com as armas. Não conseguirão amanhã, sem Educação.


REFERÊNCIAS:

BARROS, José D´Assunção. A Construção da teoria nas Ciências Sociais. Petrópolis, 2018.

CHAUÍ, Marilena. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo. Coleção História do Povo Brasileiro, 2000.

FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. 1976. São Paulo.

LÖWY, Michael. As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen,. São Paulo: Editora Cortez. 1998.

Memorial da Democracia, Instituto Lula, Fundação Perseu Abramo. Acesso em 09/06/2021. Memorial da Democracia


quarta-feira, 16 de junho de 2021

Brasil é mesmo “o país das cantoras”?

 

Ilustração Mani Ceiba


Chris Fuscaldo e Leandro Souto Maior 


Muito se diz que o Brasil é o país das cantoras, mas quase nunca se pergunta se isso de fato é uma verdade, e raramente se analisa o contexto no qual as mulheres se inserem no mercado da música brasileira. As cantoras que se destacaram ao longo da história surgiram com tanta força que acabaram chamando muito a atenção, a começar pelas mulheres que desfilavam suas vozes exuberantes nas rádio, as famosas “cantoras do rádio”, passando por Elis Regina, Maria Bethânia e, tempos depois, Ivete Sangalo e tantas outras intérpretes que fizeram a crítica nos convencer de que vivíamos no “país das cantoras”.  

Fato é que sentimos um imenso carinho pelas vozes femininas que embalaram nossas vidas, mas a verdade nua e crua é que o Brasil não é o país das cantoras. No nosso país, as mulheres são menos de 8% dos arrecadadores de direitos autorais, segundo dados de 2020 do ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição). Esses dados dão conta de todo tipo de profissional da música, mas afunilando para cantoras e compositoras, a porcentagem muda muito pouco e segue abaixo dos 8%. Isso nos mostra que as mulheres se destacam como intérpretes, mas mesmo assim ainda não ocupam os mesmos espaços de protagonismo que os artistas do sexo masculino. 

A maior parte das cantoras foi historicamente tratada como “musa”, mulheres que brilham na frente do palco. Muitas bandas querem ter uma mulher à frente porque mulheres chamam a atenção pela beleza, pela atitude, pelo figurino... É isso que muitos músicos esperam de uma mulher, e não exatamente uma voz ativa. Por que as mulheres têm que usar a própria imagem, mas são tão impedidas de produzir, compor, tocar? As mulheres sofreram para fazer valer suas vontades, isso sem falar que muitas ainda eram apagadas por seus companheiros, ouviam comentários ofensivos de familiares e eram tratadas com preconceito em reportagens tendenciosas. 

Chiquinha Gonzaga

A primeira delas foi Chiquinha Gonzaga, que no início do século XIX precisou abrir mão da família para conseguir impor seu talento, chegando a ser a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. Compositora e pianista popular quando essas áreas eram reservadas aos homens, além de ter participado do movimento pela libertação dos escravos através de sua música, vendendo suas partituras para angariar fundos destinados à causa, Chiquinha foi a responsável pela criação da primeira associação de arrecadação de direitos autorais no Brasil. A pianista não cantava – só tocava – mas até hoje mulheres e homens devem agradecer a ela por terem lucro pela execução de suas composições. Tudo isso, ela fez lutando, claro. 

Marlene, uma das mais famosas cantoras da história da música brasileira, cantava na rádio escondida. Quando a mãe descobriu, levou uma surra: “Você é a vergonha da família. Artista, você. Isso é até pecado”, dizia a mãe, enquanto batia nela. Marlene tinha 19 anos e vivia em uma época na qual se acreditava que mulher que se dedicasse a este tipo de atividade não passava de uma prostituta. Ela acabou fugindo de casa. Na história do samba, também tentaram esconder as mulheres: Dona Ivone Lara, primeira mulher compositora de samba-enredo cantado na avenida, teve suas primeiras composições creditadas como sendo de seu primo, mestre Fuleiro. 

No rock, território predominantemente masculino, Rita Lee foi expulsa dos Mutantes por Arnaldo Baptista, baixista e seu marido na época. “Machismo? Sim, havia muito. E ainda existe, ainda que mais velado”, diz a pioneira guitarrista Lucinha Turnbull, que sabe do que está falando: em um universo repleto de rapazes, ela desbravou e fez história como o grande nome feminino da guitarra brasileira.

Maysa

A cantora Maysa foi outra que teve que escolher entre vida pessoal e profissional quando começou, na década de 1950. A cantora Joyce, em 1967, apresentou a autoral Me disseram em um festival da canção e foi vaiada por sua letra feminista. Era uma época em que as mulheres ainda não tinham voz como compositoras. Como instrumentistas, a coisa piorava: a própria Joyce conta que a vida inteira ouve as pessoas falarem que ela “toca que nem homem”. 

Anastácia, que foi namorada e parceira de Dominguinhos, antes via seu primeiro companheiro, que era também seu produtor, rasgar suas composições e jogá-las no lixo. A forrozeira era tinhosa e remendava os pedaços de papel. Já para Roberta Miranda, muitas vezes foi oferecido o registro de sua composição por alguma dupla famosa em troca de ela incluir o crédito de mais alguém na canção. Ela nunca aceitou e isso tornou sua jornada mais difícil no mundo sertanejo. 

A história dessas mulheres que se destacaram mostra uma série de dificuldades que elas passaram para conseguir viver de música (e terem que aceitar que o lugar canônico não era para elas). A revista Rolling Stone Brasil publicou em 2017 uma lista dos 100 maiores artistas da música brasileira, apenas 16 eram mulheres. O meio musical é machista e nunca foi um espaço livre para as mulheres, reflexo da nossa sociedade patriarcal. E o preconceito se alastra: até as jornalistas mulheres têm seu profissionalismo contestado, eventualmente são tratadas como groupies e assediadas sexualmente ou moralmente por integrantes de bandas, produtores e até seus próprios colegas de trabalho. 

Oito por cento ainda é muito pouco. O que podemos fazer para mudar essa realidade? Primeiro, parar para pensar na relevância das mulheres e, simplesmente, respeitá-las e considerá-las para novas oportunidades de trabalho. O resto, vamos debatendo depois. Esse é um assunto que não acaba aqui.

Ilustração Cristovão Villela