sábado, 10 de abril de 2021

Informação em saúde salva vidas, desinformação mata



Na pandemia causada pelo novo coronavírus, um grave problema do SUS veio à tona, a (des)informação em saúde. A Informação em Saúde é um direito do usuário, quando diz respeito à sua própria saúde e também quando trata da coletividade. Assim, informação em saúde não é um privilégio, mas um direito conquistado. Ela configura em última instância a relação Estado/sociedade enquanto espaço de decisão e de negociação de interesses coletivos.

Durante o curso de 2020 essa relação Estado/sociedade mostrou-se deteriorada. O mais simbólico exemplo foi dado pelo governo bolsonaro com o boicote aos dados apresentados pelo Ministério da Saúde no início da pandemia em março, depois com a alteração do horário que as informações estariam disponíveis para que não fosse apresentado nos telejornais noturno e, por fim, com a decisão covarde de não mais divulgar dados sobre o número de mortes e de casos diários, como fazem as nações civilizadas do mundo. Como sabemos, os números que possuímos da pandemia no Brasil são apresentados por um consórcio de empresas de comunicação privadas que consolidam os números enviados pelas secretarias municipais de Saúde.

Esse comportamento obedece a uma orientação: se há uma pandemia sem controle, a melhor forma de tranquilizar a população é esconder os números ao invés de enfrentar a evolução da doença sobre a população. Essa decisão política de esconder números da doença não é só vergonhosa, é criminosa, uma vez que colocam pessoas expostas sem que se saiba a verdadeira situação sanitária do território, seja município, estado ou país. Sem um norte dado pelo governo bolsonaro, os mais de 5570 municípios ficaram à deriva e expondo números sem qualquer padronização ou orientação mais balizada.

Cenário da pandemia em Resende

Isto posto, diversas prefeituras tem apresentado números que são difíceis de entender. No caso da prefeitura de Resende, o Conselho Municipal de Saúde apresentou às autoridades locais uma sugestão de enfrentamento à pandemia com a criação de um gabinete de crise composto por diversos atores e a criação de um painel de indicadores que fosse traduzido da melhor forma para a população. Até o momento não foi feito e os números da PMR/SMS são contraditórios. Vamos a eles:

  1. Dados apresentados devem ter a possibilidade de exportação em planilhas de Excel/CSV para que possam ser trabalhados, tanto para análise quanto para publicações de artigos para sociedade acadêmica. Não há essas possibilidade;

  2. Mais grave e inquietante: segundo o gráfico abaixo, ao contrário de todo o país, a linha de tendência de contaminação, em vermelho, cai em Resende. Por exemplo, dia 13/03 a cidade só teve 1 caso confirmado e que de janeiro até hoje o número de casos cai vertiginosamente, ao contrário de todo Brasil;


Sendo verdade qual ação efetiva a PMR/SMS realizou para que esse milagre acontecesse em Resende enquanto o resto país derrete em função da Covid19? Seria importante estudar isso!

  1. No gráfico abaixo mostra o bairro da Cidade da Alegria inteira, mais de 25.000 pessoas, mas só 14 casos ativos com covid atualmente?


  1. Como os dados não podem ser exportados para análise, farei a análise no “olhometro”: o número de óbitos/dia tem aumentado na faixa entre novembro de 2020 até março de 2021 se comparado com março de 2020 até outubro de 2020. Reparem que há mais linhas condensadas no período citado acima. Repare: se o número de casos despencou como mostrado no item 2, como pode o número de mortes ter aumentado? No mundo o número de mortes só aumenta se o número de casos aumenta também, em uma relação direta, mas como em Resende isso se dá de forma inversa?


Deparamos-nos com um dilema: ou a informação em saúde, direito da população sobre a padrão de vida da comunidade no território está sendo levado de forma desleixada e deixando a população e atores sociais as escuras ou temos um Resende uma cepa nova do vírus, uma variante do Vale do Café, que não foi pesquisada ainda. A resposta eu deixo com vocês!


Vamos acender o pavio do multiculturalismo nas expressões artísticas?


Oiê… então, se te pergunto sobre um escritor negro, quanto tempo demoraria pra lembrar de Machado de Assis? E se te pergunto se conhece algum artista plástico negro na sua cidade, você saberia dizer? Somos um povo de misturas, quem nunca ouviu que o Brasil é feito de misturas e contrastes? É sim, mas será que sabemos mesmo identificar e valorizar quem somos?

Esse é um convite, para pensarmos na arte e na cultura e toda a sua diversidade, bem como nas suas formas de comunicação.

Cultura é fenômeno humano, todo grupo humano produz cultura e não existe melhor ou pior, é um produto da diversidade dos povos.

E aí entra nosso foco: o multiculturalismo! Uma ferramenta para o entendimento dessas culturas, valorização e proteção de suas identidades culturais


Proteção? Como assim?

Bom, é aqui que o pavio começa a queimar...

A troca de saberes é fundamental para construção de um povo. Mas sem uma proteção à identidade cultural de um grupo, o capitalismo e as ideologias dominantes, pasteurizam as culturas, passando como um trator homogeneizando tudo e todos.

Somos invadidos por vários elementos dos quais não fazemos parte, passamos a acreditar que aquela música, dança, história do povo, cinema e até o corte de cabelo são mais interessantes que os nossos e assim perdemos nossas referências. Por isso a necessidade de proteção.

Nos inspirando e bebendo em Paulo Freire - para valorizar o senso comum é necessário promover encontros e somente chego a ser eu mesmo quando os demais chegam a ser eles mesmos. E somente com diálogos e trocas isso é possível. É a relação de empatia para combater o que é desamoroso, autossuficiente e arrogante.

Fazemos sim essa mistura de contrastes, mastigando tudo como no Manifesto Antropofágico da Semana da Arte de 1922, mas antes devemos ter consciência das nossas cores, cheiros, gostos e talentos. Quando se pensa na arte e na cultura, é necessário pensar nas diferenças, mas principalmente nas defesas delas. Caso contrário,  nessa miscelânea, vozes são silenciadas, culturas são desmerecidas e trabalhos são esquecidos.  Não por críticas de qualidade, mas na verdade por serem produzidos por culturas oprimidas como por exemplo negros, mulheres, indígenas, em que até o próprio indivíduo não reconhece seu valor cultural.

Para aumentar ainda mais esse fogo no pavio, o tal do país das misturas é reconhecido também pela evidente falta de representatividade nas artes das minorias. Em uma pesquisa feita pelo projeto Negrestudo, em 2020, em SP, dos 619 nomes de artistas em exposição, apenas 46 não eram brancos; desses, 27 eram negros, apenas 4 mulheres. Apenas uma artista era indígena e não era brasileira.

Outro pavio que tem muito o que queimar se refere aos povos nativos e escancara essa falta de visibilidade cultural. Povos que tradicionalmente se comunicam pela arte através de pinturas, cerâmica, adornos, cestarias… não são valorizados devidamente. São mão de obra explorada de artesanato para gringos e servem para fantasia de carnaval. 

Na tentativa de melhorar esse cenário, surgem os institutos, movimentos e coletivos para resgatar e fornecer visibilidade para a arte de povos originários, mulheres, negros, trans e tudo mais que saibam se respeitar e valorizar as diferentes misturas de beleza que somos.

Essa é a ideia desse espaço. Acender esse pavio de divulgação, fomentar essas discussões pela valorização das artes feitas aqui, na região e no mundo, com foco no multiculturalismo.

Eu, como um exemplo dessa mistura toda, fruto da união de guarani mbá com italiano, negro, espanhol e árabe, mulher, artista visual, ceramista, feminista, viajante, militante de algumas bandeiras polêmicas, acendedora de pavio e muito apaixonada por arte, faço esse convite para descobrirmos juntos, por aqui, todas as manifestações do multiculturalismo.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Acendedoras e acendedores de pavio uni-vos!


De BBB ao programa da Ana Maria Braga; de lives com conteúdos acadêmicos aos feeds do Instagram, Facebook e Twitter, as insistentes, e equivocadamente chamadas, “pautas identitárias” estão em todo lugar causando muito reboliço.

Mas o que vem a ser isso que sacode tanto as redes sociais e anti-sociais? Pois bem, este é o pavio que desejo acender por aqui.

Falar sobre gênero, raça e classe é falar sobre aquilo que estrutura a sociedade em que vivemos - uma sociedade patriarcal, ou seja, que se organiza sob o domínio masculino cisheteronormativo1 e que é informada por raça e classe. Portanto, não se trata de discutir quem é machista, misógino, racista ou classista e quem não é para apontar o dedo, pois a verdade é que somos todas e todos, homens e mulheres, cis e trans, brancos e negros, pobres, ricos e classe média, constituídos, enquanto sujeitos, a partir destas opressões. Sem escapar ninguém! A diferença reside em ter consciência ou não disso e de adotar postura antirracista, anticlassista e antisexista. Mas não só isso.


Homem universal”

O professor Silvio de Almeida (2018), em “O que é racismo estrutural?”, explica sobre o surgimento do “homem universal”, esta suposta representação da humanidade materializada em um homem cis, hétero, branco e europeu, resultado das relações de poder do período da expansão mercantilista e da descoberta do novo mundo, em meados do século XVI. É neste contexto que emerge a ideia de um “homem” moderno, se opondo à ideia de pertencimento a uma comunidade específica, até então vigente. É o período onde surgem reflexões sobre a unidade e a multiplicidade humana.

O colonialismo é o nome da experiência que visava levar as “maravilhas” do Estado liberal e do mercado, portanto, “da civilização”, aos povos “primitivos”. Levar os valores civilizatórios ao novo mundo era a “missão” dos iluminados europeus. Mas a experiência da colonização se mostrou absolutamente antiliberal; um processo de espoliação violento.

Ficou evidente que liberdade, igualdade e fraternidade, lemas da Revolução Francesa, que fundaram a ideia de Estado Moderno, não passavam de um discurso vazio que só servia a poucos privilegiados. Com a colonização nasceu também um processo de desumanização dos povos não europeus, retratados como bestiais, primitivos, degenerados, sem história. Destes processos nasceram as práticas discriminatórias e o genocídio que marcaram a história do nosso país.

Escravidão

Portanto, não há como falar em raça sem discutir gênero e classe, sobretudo no Brasil, vez que são opressões que nasceram do paradigma colonizador do sujeito universal: homem hétero, branco e europeu. Da mesma forma como não podemos discutir o país em que vivemos, e avançar em análises mais profundas, desconsiderando a escravidão como violência fundadora - escravidão que é parte do processo de expansão do capitalismo.

Simone de Beauvoir (1970), em “O segundo sexo”, vai questionar o que é “ser mulher” e, ao fazê-lo, questiona também o que é “ser homem”. A autora abriu um campo imenso para inúmeras teorias e ideias que vão surgir a partir daí. Antes dela, Soujorner Truth, em seu célebre discurso2, questionou: “não sou eu uma mulher?”, referindo-se à sua condição de mulher negra. Ao fazê-lo, denunciou que tudo aquilo pelo que protestavam as mulheres brancas de classe média não passava de privilégios de raça e classe e que, portanto, não poderiam falar e nome de todas as mulheres, vez que as mulheres negras não estavam incluídas em suas pautas.

Como se vê, não dá pra discutir gênero, raça e classe isoladamente, né? Nem tampouco descolados da realidade concreta em que vivemos – sob a ordem do capital. Pois é sobre isso que iremos dialogar aqui, neste espaço. Temos um longo caminho pela frente se quisermos compreender o Brasil e este estado de coisas bolsonarista que nos assola. E sem compreender a realidade em que vivemos não conseguiremos transformá-la.

Bora acender este pavio juntos e juntas?


Referência bibliográfica:

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. Coleção Feminismos Plurais. Coord. Djamila Ribeiro.

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, Col. Feminismos Plurais, 2018, p. 20.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro. 4. ed. 1970.

1 O termo cisheteronormativo ou cisheteropatriarcado remete ao “sistema político modelador da cultura e dominação masculina, especialmente contra as mulheres. É reforçado pela religião e família nuclear que impõem papéis de gênero desde a infância baseados em identidades binárias, informadas pelas noções de homem e mulher biológicos, sendo as pessoas cisgêneras aquelas não cabíveis, necessariamente, nas masculinidades e feminilidades duas hegemônicas. Consultar ‘Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos’, um guia técnico sobre pessoas transexuais, travestis e demais transgêneros formulado pela pesquisadora Jaqueline Gomes de Jesus”. (AKOTIRENE, 2019, p.118, item 3).

2 Sojourner Truth (1797-1883) foi uma ativista norte americana dos direitos das mulheres. Uma escrava alforriada, que ficou registrada na história com um discurso que proferiu na Convenção de Mulheres, em 1851, Ohio, nos EUA. No seu célere discurso disse: “Aquele homem ali diz que as mulheres precisam ser ajudadas a entrar em carruagens, e erguidas para passar sobre valas e ter os melhores lugares em todas as partes. Ninguém nunca me ajudou a entrar em carruagens, a passar por cima de poças de lama ou me deu qualquer bom lugar! Eu não sou mulher? Olhem pra mim! Olhem pro meu braço! Tenho arado e plantado, e juntado em celeiros, e nenhum homem poderia me liderar! Eu não sou mulher? Posso trabalhar tanto quanto e comer tanto quanto um homem - quando consigo o que comer - e agüentar o chicote também! Eu não sou mulher? Dei à luz treze filhos, e vi a grande maioria ser vendida para a escravidão, e quando eu chorei com minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus me ouviu! Eu não sou mulher? (...)”. Depois que conquistou sua liberdade, em 1827, Sojourner tornou-se uma conhecida oradora abolicionista. O discurso completo se encontra disponível na internet em diversos sites, entre eles no https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth onde pesquisei. Acesso em: 08 de março de 2021.


O Balanço de um Desastre

 


A pandemia causada pelo novo coronavirus no Brasil, iniciada há 12 meses atrás, em março de 2020, já matou mais de 280 mil pessoas. Podemos fazer um rápido balanço da caminhada trágica que fizemos até aqui nesse último ano.

No início da pandemia, em um cenário distante das vacinas atualmente disponíveis, poderíamos ter olhado experiências exitosas mundo afora, que salvaram milhares de vidas, tais como:

1-        Criação de uma coordenação nacional para enfrentamento da pandemia;

2-        Apoio governamental às camadas mais frágeis do tecido social e determinados setores da economia como pequenos comerciantes;

3-        Testagem em massa para rastreio da doença;

4-        Monitoramento dos casos confirmados e suspeitos;

5-        Ampliação da rede hospitalar para tratamento de Covid19;

6-        Incentivo a população para o uso de mascaras e álcool gel;

7-        Em casos extremos ferramentas como a restrição drástica da circulação de pessoas.

O Brasil historicamente tem expertise em planos nacionais de imunização e conta com uma rede capilarizada para efetivação de estratégias atomizadas de vacinação em larga escala. O SUS conta com 44 mil equipes de saúde em mais de 5570 municípios Brasil afora, assim caberia ao Ministério da Saúde a compra das vacinas, definição de um cronograma, haja vista que a rede de saúde para executar a vacinação já está dada, pronta para tal ação. Vale lembrar que recentemente o SUS vacinou 100 milhões de brasileiros em 3 meses apenas contra a H1N1. Em casos de pandemia deve ser feito um esforço de guerra para enfrentamento desse inimigo invisível. Mas o que foi feito desde março de 2020 no Brasil?

Em nome de uma ideologia nada racional e apoiada uma visão deformada da realidade política e social o governo federal não fez compra de testes suficientes (o Brasil foi um dos países que menos testou no mundo), faz jogo de empurra no combate a Covid dizendo que a responsabilidades era de prefeitos e governadores, sabotou medidas de uso de máscaras, de restrição da circulação de pessoas, fez o papel de um verdadeiro mercador da morte vendendo a ilusão sobre um milagroso spray e até o incentivo ao uso de remédio sem qualquer eficácia para combate ao novo coronavírus, como Cloroquina e Ivermectina.

Temos hoje 280 mil mortos, chegaremos a 300 mil mortes em questão de dias e com isso o Brasil se tornou um cemitério a céu aberto, uma enorme cova, com os sobreviventes da desastrada condução da pandemia vendo seus empregos e rendas virarem pó. Jair Bolsonaro não é só um péssimo presidente, é um também um bárbaro genocida. Esperamos assim que além da contagem de nossos mortos, muitos deles familiares e amigos, não apenas a história julgue o Governo Bolsonaro, mas também tribunais nacionais e internacionais.

sábado, 3 de abril de 2021

É tempo de acender os pavios da memória no sul fluminense

 


Nos últimos anos, vimos assistindo ao avanço de uma onda revisionista e negacionista no Brasil. Ela teve início com a negação, por parte dos setores militares e conservadores, da existência do terrorismo de Estado (torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados) e de práticas antidemocráticas durante o regime (fechamento do Congresso, suspensão do direito de habeas corpus etc). Trata-se da negação da verdade, do testemunho concreto das vítimas do regime que historicamente não encontraram um espaço público de escuta.

Entre os setores conservadores, há ainda aqueles que, mesmo admitindo a existência da ditadura, buscam abrandar suas consequências, graves, nefastas, falando em termos de “ditabranda” – 434 mortos e desaparecidos políticos não seriam um número significativo se comparado com as ditaduras dos países vizinhos, Argentina e Chile, que chegaram a 20 e 30 mil mortos – ou reduzindo a virulência do regime militar aos anos de chumbo (1968-1974).

De outra parte, temos os setores progressistas que compõem uma polifonia de vozes que falam desde lugares e ações distintos e se encontram no grande campo dos defensores dos direitos humanos. O Grupo Tortura Nunca Mais e os movimentos que integram o campo memória, verdade e justiça vêm pleiteando há pelo menos 40 anos uma justiça de transição capaz de garantir a efetivação da justiça, através da garantia do direito à memória e à verdade, bem como do direito à reparação, não apenas material, mas que passe também pela instituição de práticas pedagógicas, participativas e, se for o caso, reconciliadoras.

Comissão da Verdade

A criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e das comissões da verdade em nível estadual e municipal foram, sem dúvida, um marco importante deste processo transicional, uma iniciativa de passar o passado a limpo. As CV se dedicaram às investigações dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro, sua estrutura de funcionamento e as estratégias de luta e resistência da oposição política, bem como as violações aos direitos humanos dirigidas de forma difusa contra o conjunto da sociedade, através da implementação de uma política de arrocho salarial, cujo resultado foi o aumento da desigualdade social.

Além das revelações contidas nos relatórios produzidos pelas comissões da verdade, foram feitas diversas recomendações de políticas públicas a serem implementadas pelo Estado. As recomendações abarcam um conjunto amplo de mudanças: medidas institucionais, como a revisão da Lei de Anistia e a proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964; reformas constitucionais e legais, como a revogação da Lei de Segurança Nacional e a desmilitarização das polícias militares estaduais; e medidas de seguimento das ações e recomendações da CNV, como continuidade das investigações para identificação do paradeiro dos desaparecidos políticos e preservação da memória das graves violações de direitos humanos.

No que se refere às iniciativas na área da memória e patrimônio, as recomendações vão desde a mudança do nome de ruas e escolas que homenageiem torturadores até a construção de roteiros pedagógicos e museus dedicados à história e memória da ditadura. O contato da sociedade com os espaços físicos, o conhecimento e a consciência sobre os usos dos espaços no passado, abrem janelas de consciência, contribuindo para a constituição de sujeitos críticos e pleno exercício da cidadania.

Na região sul fluminense, a Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda (CMV-VR) (2013-2015) proporcionou pela primeira vez aos habitantes locais um conhecimento pormenorizado sobre o passado ditatorial na região, atravessado pelo sofrimento e pelo esquecimento. Em seu relatório final, podemos conhecer 14 casos de violações aos direitos humanos ocorridos em Volta Redonda e Barra Mansa, cujos impactos foram devastadores para a classe trabalhadora e suas famílias, grupos progressistas da Igreja católica, grupos da esquerda revolucionária, jornalistas e coletivos culturais, entre outros.

Tempo de conhecer

O espaço hoje chamado de Parque da Cidade, administrado pela Prefeitura de Barra Mansa, já foi sede do antigo 1° Batalhão de Infantaria Blindada do Exército, entre 1950 e 1972. No local, funcionam atualmente algumas unidades administrativas da municipalidade, o Tiro de Guerra, a Secretaria de Ordem Pública de Barra Mansa, além de alguns projetos culturais, como a Orquestra Sinfônica de Barra Mansa e o grupo teatral Sala Preta. Desde sua criação, nos anos 1990, o espaço já foi palco de shows, feiras agropecuárias, feiras de negócios e outras atividades de entretenimento e lazer. Os eventos e atividades lá realizados atraem antigas e novas gerações que pouco conhecimento têm sobre os usos do espaço no passado recente, contribuindo para o esquecimento induzido.

O 1° BIB foi criado em 1950 com a função de “assegurar a ordem pública” na região. Localizado estrategicamente, o batalhão ficava a cerca de 10km da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), inaugurada pouco antes, em 1946, como parte do projeto nacional desenvolvimentista do governo Vargas. Desde cedo, a empresa siderúrgica e o batalhão caminhariam juntas no controle e repressão à classe trabalhadora.

No dia 1° de abril de 1964, o 1° BIB teve como alvo principal os trabalhadores da CSN, sobretudo os líderes sindicais que organizaram uma resistência grevista na usina, no sindicato e na rádio siderúrgica, em Volta Redonda. Naquele mesmo dia, as lideranças sindicais foram presas, no 1° BIB ou na Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende, e nos dois meses subsequentes mais de 200 trabalhadores foram demitidos ou aposentados compulsoriamente, pelo Ato Institucional n° 1, e 185 funcionários foram punidos pela empresa. Desses, 77 permaneceram presos no BIB ou na AMAN, até 6 meses depois. O caráter de classe do Golpe de 1964 ficou claro desde o primeiro dia.

Além das prisões arbitrárias, as forças repressivas invadiram a sede do Sindicato dos Metalúrgicos, em Volta Redonda, confiscaram documentos históricos, destruíram mobiliário, cassaram os mandatos da diretoria democraticamente eleita e determinaram um interventor em seu lugar, impactando assim a capacidade de reivindicação de seus direitos por parte dos trabalhadores. Ao lado da perseguição aos sindicalistas, foram instaurados Inquérito Policiais Militares (IPM) contra o chamado “Grupo dos Onze” e contra o Partido Comunista que atuava nas cidades de Volta Redonda, Barra Mansa, Barra do Piraí e Piraí.

A partir de 1966, com a chegada do bispo Dom Waldyr Calheiros à região, os católicos progressistas se tornaram o novo alvo das perseguições políticas. A Igreja de Dom Waldyr assumiu um trabalho pastoral junto às comunidades mais pobres e foi uma força de oposição política ao regime de extrema importância. Padres e militantes católicos foram, tal qual os sindicalistas, intimados, obrigados a prestarem depoimentos, presos e torturados. Após o AI-5, a tortura foi institucionalizada no batalhão, atingindo trabalhadores, militantes católicos, militantes de organizações revolucionárias e, até mesmo, militares de baixa patente.

O 1° BIB foi um centro militar de perseguição e tortura para opositores do regime na região sul fluminense. O encerramento de suas atividades repressivas, em 1972, foi um acontecimento inédito na história da ditadura. Após a comprovação de que militares haviam torturado 15 soldados do próprio batalhão, o que resultou na morte de quatro deles, entre 1971 e 1972, os militares envolvidos com as torturas foram condenados à prisão, por determinação da própria Justiça Militar.

Em 1973, no auge da repressão política durante o governo Médici, a Justiça Militar condenou os militares envolvidos e encerrou as atividades do 1° BIB. Trata-se do único caso no Brasil em que militares foram responsabilizados e punidos por suas práticas violadoras durante (e após) o regime militar. Após 1979, com a Lei de Anistia, nenhum outro torturador poderia mais ser condenado por seus atos criminosos. Resta, ainda, como entulho autoritário, um entrave para a efetivação da justiça.

Recentemente, nova fagulha de esperança se acendeu entre os militantes de direitos humanos com a decisão inédita da justiça contra o sargento reformado do Exército Antonio Waneir Pinheiro de Lima, acusado pelo crime de sequestro, cárcere privado e estupro da jovem militante Inês Etienne, em 1971, na Casa da Morte, centro clandestino de prisão e tortura localizada em Petrópolis (RJ). Este ano, por ocasião das efemérides da semana do golpe de 1964, os movimentos por memória, verdade e justiça lançaram a campanha #ReinterpretaJáSTF, como forma de pressão política e midiativismo.

São muitas as idas e vindas. No sul fluminense, após a condenação dos militares envolvidos no assassinato dos quatro soldados, o 1° BIB foi desativado, com a intenção deliberada de apagamento das memórias traumáticas, e no mesmo espaço foi instalado o 22° Batalhão de Infantaria Motorizada do Exército, que passou a comandar a repressão política na região. A prática de torturas físicas não foi mais registrada, porém deu continuidade ao papel repressivo do antigo 1° BIB, especialmente contra a classe trabalhadora.

Mesmo com o fim formal da ditadura em 1985 e a promulgação da nova Constituição em 1988, os militares do 22° BIMtz responderam com forte violência ao movimento grevista dos anos 1980, em especial na histórica greve de novembro de 1988, o que culminou, uma vez mais, no assassinato de três operários no interior da usina siderúrgica, William, Valmir e Barroso e, posteriormente, no atentado terrorista ao monumento 9 de novembro, na Praça Juarez Antunes, em Volta Redonda, em homenagem aos operários assassinados.

Tempo de planejar

Como fruto deste processo e de maneira a garantir a continuidade das investigações da CMV-VR e implementação de suas recomendações, o Centro de Memória do Sul Fluminense Genival Luiz da Silva, ligado à Universidade Federal Fluminense (CEMESF/UFF) estabeleceu como missão a preservação das memórias e histórias das lutas políticas na região. A partir de 2015, teve início o processo de transformação do antigo 1° BIB em centro de memória e defesa dos direitos humanos. Tais iniciativas se inscrevem no rol das políticas de memória e reparação, no quadro da justiça de transição e sua efetivação na região sul fluminense.

Este processo tem como amparo legal o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) n° 3/2016, firmado entre o Ministério Público Federal e a Prefeitura Municipal de Barra Mansa. O TAC prevê “assegurar reparações simbólicas em favor da preservação da memória e do patrimônio histórico nacional na área correspondente ao quartel onde funcionou o 1° Batalhão de Infantaria Blindada (1° BIB) e o parque ao redor”.

Para que as determinações do TAC pudessem ser cumpridas, foi formado um grupo de trabalho, coordenado pelo CEMESF/UFF, que identificou as áreas de interesse histórico, especialmente relacionadas aos eventos ocorridos durante a ditadura civil-militar, e dividiu o espaço em três grandes conjuntos de edificações: Tulhas, Intendência e Praça da Memória.

Como forma de sensibilizar e informar a população local sobre as graves violações praticadas na região, são desenvolvidos no espaço dois projetos de extensão, coordenados pelo CEMESF/UFF: Cine Arquivo e Visitas compartilhadas ao antigo BIB. Os projetos são voltados para atender a rede básica de ensino dos municípios de Volta Redonda e Barra Mansa e estão comprometidos em garantir o direito à verdade e à memória na região sul fluminense.

Em 2020, finalmente nasceu o projeto para o futuro Museu do Trabalho e dos Direitos Humanos, situado na Praça da Memória, no atual Parque da Cidade de Barra Mansa. Através da colaboração de duas consultorias, encarregadas de elaborar o pré-projeto arquitetônico e o Plano Museológico para o espaço do antigo batalhão, abriu-se um canal de escuta e de estruturação das propostas com a comunidade local.

De maneira a garantir uma construção mais participativa, o CEMESF/UFF promoveu encontros com grupos focais – ex-presos políticos, educadores, profissionais da cultura e ocupantes do Parque da Cidade, secretarias municipais de Barra Mansa e Volta Redonda – contribuindo para a ativação da rede de atingidos pela ditadura e de “empreendedores da memória” e provocando a imaginação comprometida com os direitos humanos, a cidadania e a democracia em torno das potencialidades para a transformação desse antigo centro de terror, hoje esvaziado de sentido, em lugar de memória e de re(existências).

Tempo de imaginar...

Agora, é tempo de imaginar. Imaginar o inimaginável, cuja voz nos sussurra histórias passadas, de um tempo que esperamos nunca mais.

Lascas de tempo, de memória, essa coisa não escrita que ganha matéria, vida, forma, até escapulir em imaginação. Aqui. Agora. Imaginar um tempo de medo, do não dito, ainda inaudito porque faltam ouvidos. As vozes estão por aí, por toda parte, abaixo e acima das paredes, da terra, do rio. Se dissipam em som, essa força etérea que atravessa o tempo, vagam passageiras no ritmo cadenciado do trem de minério e sangue, nas asas dos quero-quero (que lembram liberdade), no leve soluço do Paraíba (que embala a dor).

Mas, essas vozes, o que contam? O que podem contar? O que queremos ouvir? O que podemos ouvir? É preciso coração para aprender. Também coragem.

A Ditadura contra os militares

 

Em tempos de polarização ideológica e diante de um (des)governo que insiste em comemorações saudosistas dos anos de chumbo, a repressão e as violações dos direitos humanos perpetradas pelo Regime Militar são temas frequentes de debates acalorados nas redes sociais, na imprensa, em reuniões de família e até nos botequins de esquina. Apesar disso, um dos fatos mais ignorados pelos brasileiros – de todos os matizes ideológicos - é a perseguição que os militares realizaram contra seus próprios quadros.

Os dados obtidos a partir da Comissão Nacional da Verdade (CNV) demonstram que pouco mais de 6 mil militares foram perseguidos, o que os torna a categoria social mais perseguida pelo regime. Bruno Fonseca, em levantamento realizado pela Agência Pública demonstra como isso reflete nos dados sobre a anistia: são 10.523 civis e 3.614 militares anistiados, uma proporção de três civis para cada militar.1
Paulo Ribeiro da Cunha, professor da UNESP e consultor da CNV, afirmou em artigo que em relação aos militares perseguidos, “esses oficiais e praças foram atores importantes na história do Brasil, cujo arco político e ideológico envolvia nacionalistas, progressistas ou de esquerda, incluindo membros das Polícias Militares e bombeiros”.2
Contradições
Um ponto importante nesse apagão da memória sobre a perseguição aos militares, é que o senso comum, acriticamente, faz parecer que os militares das forças armadas são um grupo muito homogêneo, consenso que cai por terra quando examinamos trabalhos acadêmicos que apontam as fissuras e contradições que existiram - e existem - entre os militares.
Depois do Golpe de 1964, as perseguições e violações de direitos humanos de militares ocorreram em números expressivos, pelos mais variados motivos. Os relatórios finais das Comissões da Verdade, municipais, estaduais e nacional, são fontes privilegiadas para acessar as informações sobre essas violações de direitos.
Nesse texto informativo apresentamos alguns desses casos, observando a diversidade de motivações da Ditadura para perseguir e violar direitos humanos de militares. Nem sempre a causa da perseguição era decorrente de atuação política, como no extinto 1º Batalhão de Infantaria Blindada - BIB, sediado em Barra Mansa – RJ.
Tortura e mortes
Com base no Relatório Final da Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda – RJ.3 No fim de dezembro de 1971 e início de janeiro de 1972, ocorreu um Inquérito Policial Militar para apurar venda e uso de maconha por soldados do BIB. Durante aproximadamente vinte dias, foram presos e submetidos a interrogatórios sob tortura, 15 soldados da unidade. Todos foram submetidos à espancamento, choques elétricos, tiveram partes do corpo esmagadas em prensas ou tornos, seções de afogamento. Os soldados Vanderlei, Monção, Geomar e Vicente faleceram em consequência de brutal tortura.
Depois do assassinato perpetrado por companheiros de farda, seus algozes, os torturadores, capitão Niebus, tenente Miranda, sargento Etel, sargento Rubens, e cabo Cruz, ocultaram os cadáveres. Vanderlei teve a cabeça decapitada e as mãos cortadas para dificultar a identificação e foi colocado num buraco coberto de mato às margens da represa de São João Marcos.
Monção foi atirado numa vala às margens da rodovia que liga Angra dos Reis à Barra Mansa, depois teve o corpo resgatado e transferido para um bambuzal na estrada que liga Rio Claro à Bananal, encharcado com gasolina e queimado. Geomar teve o corpo enviado à necrópsia na Santa Casa, onde a família encontrou-o com muitos sinais de tortura, espancamento, esmagamento. Vicente morreu após ser internado no HCE-RJ.
Ocorreram também, minoritariamente, casos em que militares aderiram à luta armada contra a Ditadura. É o caso de Carlos Lamarca, que desertou e se tornou um dos líderes da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, grupo de orientação ideológica marxista. Lamarca foi morto pela Ditadura em 1971. Destino semelhante teve o sargento reformado e veterano da FEB – Força Expedicionária Brasileira, José Mendes de Sá Roriz. Era comunista, na clandestinidade, e se entregou depois que teve a família ameaçada pelos agentes repressores. Em 1973 foi preso no DOI CODI, torturado e assassinado.4
Democrata
Outros veteranos da Segunda Guerra Mundial também foram alvo de perseguição, mas o caso do Brigadeiro Rui Moreira Lima (fotos) é icônico. Herói de guerra, fez 94 missões de combate contra os nazifascistas na Itália. Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade5, em 2012, o militar explicou de onde vem sua posição de militar legalista. Uma carta recebida do pai, que era Juiz, e lhe escreveu quando soube da decisão do filho de se tornar militar:




“Rui, és cadete, amanhã, depois, mais tarde… general. Agora deves dobrar os teus esforços, estudar muito… Obediência aos teus superiores, lealdade aos teus companheiros, dignidade no desempenho do que te for confiado, atitudes justas e nunca arbitrárias. Sê um patriota verdadeiro e não te esqueças de que a força somente deve ser empregada ao serviço do Direito. O povo desarmado merece o respeito das Forças Armadas. Estas não devem esquecer que é este povo que deve inspirá-las nos momentos graves e decisivos. Nos momentos de loucura coletiva deves ser prudente, não atentando contra a vida dos teus concidadãos. O soldado não pode ser covarde e nem fanfarrão. A honra é para ele um imperativo e deve ser bem compreendida. O soldado não conspira contra as instituições pelas quais jurou fidelidade. O soldado não pode ser um delator a não ser que isso implique em salvação da pátria. Espionar os companheiros visando interesse próprio é infâmia, e o soldado deve ser digno. Aí estão meus pontos de vista, Deus te abençoe (…)”
Seguiu toda a carreira guiado pelos conselhos do pai, tornou-se um militar digno de ser chamado de democrata, que compreende o respeito às instituições como um mandamento militar. Durante o Golpe, era coronel e comandava a base aérea de Santa Cruz, que foi cercada por tropas do Exército. Passou o comando da base para um militar golpista e, no dia da troca de comando escreveu esses conselhos do pai na Ordem do Dia, divulgada para toda a tropa que comandava.
Condenou o Golpe, foi preso duas vezes, em uma foi sequestrado por sargentos do DOI-CODI. Sua família também foi perseguida, teve um dos filhos preso, e foi obrigado a ir para a reserva. Descreveu o torturador, Coronel Ustra, como “um torturador confesso(...) um sujeito muito mal, um covarde. Eu considero a pessoa que tortura os outros depois de preso, um desprezível, eu nem quero olhar pra cara de um desses.”
Como sociedade, precisamos desenvolver um olhar menos estereotipado sobre os militares e as forças armadas. Enxergar nas suas tradições, memórias, ações, reflexos de diversidade e disputas internas.


1 https://apublica.org/2019/03/os-militares-que-a-ditadura-brasileira-tentou-apagar/
2 ACERVO, RIO DE JANEIRO, V. 27, Nº 1, P. 137-155, JAN./JUN. 2014 – P. 138
3 Disponível em http://cemesf.vr.uff.br/textos/relatorio-final-da-comissao-municipal-da-verdade-dom-waldyr-calheiros-cmv-vr/
4 http://memoriasdaditadura.org.br/memorial/jose-mendes-de-sa-roriz/
5 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FuY1K7_hIZA&t=795s

Ditadura Militar, não “civil-militar”

 

Ditadura Militar, não “civil-militar”

Na década de 2010, passou a disseminar-se o uso da denominação “civil-militar” para qualificar a ditadura iniciada em março-abril de 1964. Os defensores desse revisionismo histórico acreditam que a expressão “Ditadura Militar” já não serve para expressar o teor daquele regime político ditatorial, pois, na opinião deles, o poder foi compartilhado com os “civis”, isto é: com a burguesia. Além disso, como a burguesia comprovadamente participou da conspiração que viria a derrubar o governo de João Goulart, entendem que a responsabilidade pela ditadura deve ser compartilhada por ambos os polos, militar e “civil”.

Acontece que rapidamente se verificou a inconsistência do qualificativo “civil”, que é vago demais para os fins a que se propunha. Afinal de contas, basta não ser militar para ser “civil”, portanto cabe de tudo nessa palavra. Isso levou a que uma parte dos revisionistas que se opunham ao termo clássico “Ditadura Militar” buscasse uma alternativa mais nítida. Assim, essa ala optou pelo termo “ditadura empresarial-militar”, mais próximo do que pretendem expressar.

Poder político

Tais tentativas de reinterpretação do período prendem-se à dificuldade que esses grupos encontram de explicar as singularidades da Ditadura Militar. Não conseguem compreender que a quase totalidade das ditaduras desse tipo surge exatamente em nome do capital, em favor do capital e portanto disposta a beneficiar o capital e os grandes interesses privados. Esses grupos não conseguem compreender que, a despeito de seus objetivos, quem detém o poder político nesse tipo de regime em última instância são os próprios militares, e pontualmente podem até mesmo ocorrer conflitos e contradições entre os militares e setores da burguesia (e ocorreram).

Não pode existir a menor dúvida de que entre 1964 e 1985 o Brasil viveu uma Ditadura Militar, ainda que “civis”, ou seja empresários e outros representantes do capital, tenham participado da conspiração que preparou o golpe; ainda que civis tenham participado do regime como ministros e governadores; e ainda que civis (policiais, empresários, juízes) tenham participado direta ou indiretamente da máquina de repressão política que envolveu sequestros, torturas, execuções e desaparecimento de opositores políticos.

Os militares precisaram recrutar civis para aqueles ministérios que exigiam grande conhecimento técnico, como o da Fazenda por exemplo. Também precisavam da máquina do Itamaraty para a política externa. Mas conduziram toda a política de Estado com mão de ferro, o que incluiu cassar os direitos políticos das principais lideranças civis que apoiaram o golpe, como o governador carioca Carlos Lacerda (que tomou parte pessoalmente do assalto ao poder), o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o governador paulista Adhemar de Barros.
Transição

Mesmo depois que a Ditadura Militar entrou em sua fase de declínio, após os protestos contra o assassinato de Vladimir Herzog (1975), o ressurgir do movimento estudantil (1976-77), as grandes greves operárias do ABC (a partir de 1978), a enorme crise gerada pelo atentado ao Riocentro (1981) e o movimento das “Diretas-Já” (1984), o general João Baptista Figueiredo conseguiu concluir seu mandato. A transição conservadora se deu de modo a atender as restrições impostas pelos militares.

Os militares brasileiros sempre se julgaram superiores aos civis, com aspas ou sem. A República foi declarada em um golpe militar, e os primeiros presidentes foram militares (Deodoro, Floriano). Décadas depois Getúlio Vargas construiu com os militares o Estado Novo, que foi uma ditadura sem disfarces (1939-1945). Quando Vargas se enfraqueceu e aproximou-se de bandeiras populares, foi derrubado por seus dois mais importantes generais: Gaspar Dutra e Góes Monteiro. Dutra elegeu-se presidente em dezembro de 1945 e implantou um regime semiditatorial, proibindo greves, cassando mandatos, prendendo e matando manifestantes. O Partido Comunista foi colocado na ilegalidade.

Nas duas décadas seguintes os militares continuariam aliando-se a setores da direita civil antinacionalista e reacionária para interferir no poder político. Antes de 1964 os episódios mais graves foram a pressão sobre Vargas em 1954 (que resultou no suicídio do então presidente) e a tentativa de barrar a posse de João Goulart em 1961.

Segundo plano

A Ditadura Militar iniciada em 1964 decidiu colocar os civis em segundo plano, desde muito cedo. Os vice-presidentes civis eram decorativos, como ficou provado após a morte do ditador Costa e Silva uma vez que Pedro Aleixo, seu vice, foi impedido de assumir. Em seu lugar, tomou posse uma Junta Militar. Somente no mandato de Figueiredo, na fase final da Ditadura Militar, é que um vice civil, Aureliano Chaves, substituiu um ditador (por motivos médicos: o general foi aos EUA para operar-se).

Certamente o grande empresariado tinha influência sobre o governo. O golpe militar de 1964 expressava interesses desses setores, inclusive do capital externo. Mas isso não deve ser confundido com o exercício do poder político, que coube ao Alto Comando das Forças Armadas e ao militares no aparato de Estado.

Por tudo isso, “Ditadura Militar” ainda é a expressão que melhor traduz o regime de terrorismo de Estado que dominou e ensanguentou o país naquele período e que representou um enorme retrocesso em matéria de democracia e de direitos sociais, que até hoje custa caro ao nosso país — basta ver o governo neofascista de Jair Bolsonaro, que tem nos militares a sua espinha dorsal.

Responsabilização

A população em geral, os grupos de esquerda e movimentos sociais que a ela resistiram e lhe fizeram oposição, e até mesmo os meios acadêmicos por muito tempo utilizaram essa expressão, corretamente. Abrir mão dela em nome do quimérico termo “ditadura civil-militar”, algo que a rigor jamais existiu, é um grave equívoco. Aliás, falar em Ditadura Militar não exime os participantes civis — capitalistas, policiais, magistrados, religiosos, altos funcionários públicos e outros — de responder pelos crimes que tenham cometido.

O uso da nomenclatura “ditadura civil-militar” (e de suas variantes) é incorreto não apenas por difundir uma versão fantasiosa daquele período histórico, mas igualmente por diluir a responsabilidade institucional das Forças Armadas, e a pessoal de milhares de seus integrantes, inclusive generais e outros altos oficiais, nos crimes de Estado então perpetrados.

Quem tiver dúvida sobre quem tinha a palavra final na execução de militantes da esquerda e outros opositores do regime deve consultar este documento da CIA divulgado pelo professor Matias Spektor, da FGV (1), que revela a participação pessoal direta dos generais Ernesto Geisel (então recém empossado no cargo de presidente) e Figueiredo (então chefe do SNI) nas decisões relativas a assassinatos de inimigos da Ditadura Militar. Também é altamente recomendável a leitura do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (2).

(1)

https://ri.fgv.br/noticias/2018-05-16/prof-matias-spektor-circula-documento-da-cia-sobre-o-governo-geisel

(2) http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=571

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*O autor é jornalista, doutor em ciências da comunicação e autor dos livros Massacre na Lapa (FPA, 2006) e A Democracia Intolerante (Arquivo do Estado, 2002).


Uma noite que nunca termina: os sofrimentos dos povos indígenas durante a ditadura civil-militar (1964-1985)


 


Quando falamos no período histórico do golpe cívico-militar de 1964/1985 costumamos contabilizar as cassações dos direitos políticos dos parlamentares, as inumeráveis prisões arbitrárias, os fechamentos dos sindicatos, as perseguições aos trabalhadores e estudantes, as demissões de milhares de servidores civis e militares, graves violações de direitos humanos, a censura da imprensa, a vigilância interna dentro das repartições públicas e estatais através das Assessorias de Segurança Interna(ASI), os centros de tortura, os mortos e os desaparecidos políticos. E os povos indígenas? Como passaram por aquele período? Aqui mais uma vez prevalece o silenciamento social das inúmeras tragédias que se abateram sobre eles durante esse período.

Nem a Comissão Nacional da Verdade fez uma investigação aprofundada sobre os acontecimentos com os povos indígenas durante a ditadura. A inclusão dos povos indígenas na investigação, que ocorreu de 2012 a 2014, foi feita de forma secundária e até tardia. No último ano de funcionamento daquela Comissão é que ela acelerou e construiu um quadro das violações de direitos de forma muito incompleta.

O resultado mais impactante das pesquisas da CNV, registrado no seu volume III, foi o que detalhou os 434 mortos e desaparecidos políticos na pesquisa compreendida no período investigado - de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, mas ela não incluiu nessa listagem nenhum dos indígenas que foram mortos pela ditadura.

Quase 1 % dos indígenas assassinados; número real pode ser bem maior

Numa avaliação preliminar, a partir dos dados da própria Comissão, o número real de indígenas mortos como consequência das políticas de Estado e da política indigenista conduzida pelo SPI e sua sucessora Funai foi de 8.350 indígenas, em decorrência da ação direta dos agentes governamentais ou da sua omissão no período da investigação. Essa não é uma cifra definitiva, pois o número real foi muito maior, na medida que a apuração se deu sobre uma fração pequena dos povos indígenas do Brasil, a saber: em maior número 3.500 indígenas Cinta-Larga (RO), 2.650 Waimiri-Atroari (AM), 1.180 índios da etnia Tapayuna (MT), 354 Yanomami (AM/RR), 192 Xetá (PR), 176 Panará (MT), 118 Parakanã (PA), 85 Xavante de Marãiwatsédé (MT), 72 Araweté (PA) e mais de 14 Arara (PA).

O último Censo do IBGE, de 2010, apontava a existência de 305 povos indígenas, que somavam a 896.917 pessoas, deste total a apuração da CNV se deu somente com 10 povos, ou menos de 4% das etnias existentes no Brasil. Isso nos aponta uma terrível realidade: as maiores vítimas da ditadura e cujos nomes não foram nem levantados pela Comissão da Verdade foram os indígenas das diversas etnias espalhadas pelo país!! Além disso, proporcionalmente, foram mortos, só nos casos levantados, cerca de 0,9% da população indígena brasileira um número proporcionalmente gigantesco em relação as outras vítimas da ditadura. Deve-se continuar a apuração das atrocidades deste período nos outros povos indígenas, não cobertos pelo trabalho da CNV.

Entre os povos que sofreram genocídios, que quase os levaram à beira da extinção, estão os Waimiri-Atroari, do Amazonas, que foram visitados pela psicanalista Maria Rita Kehl, que esteve na Terra Indígena Waimiri-Atroari, em 2013, e ouviu sobre o massacre de 2650 indígenas daquela etnia. Eles foram afetados pela construção da BR-174 (Manaus-Boa Vista), que fazia parte do primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), que tinha como uma de suas diretrizes a integração da região Norte e Centro Oeste ao resto do país através da construção de diversas rodovias, a maior parte delas atravessando terras indígenas e também incentivando a construção de agrovilas, a colonização e ocupação por pessoas vindas do restante do país dos territórios indígenas.

Rodovias, hidrelétricas e garimpo

Além da rodovia, eles foram também afetados pela construção da hidrelétrica de Balbina e pelas levas de garimpeiros e de mineradoras que invadiram a região para explorar as riquezas minerais.

O Censo da Funai de 1972, revelava que a população Waimiri-Atroaria era de 3 mil indígenas. No ano de 1983 eles eram apenas 350 pessoas, depois desse conjunto de ações e omissões do Estado brasileiro em seu território.

Napalm, arma no terror causado por “homens brancos de uniforme cor de mato”

O Ministério Público Federal entrou em ação civil pública, em 2017, pedindo reparação aos danos provocados ao povo Wairmiri-Atroari, pela ditadura civil-militar. Em audiência judicial relativa a essa ação, os indígenas deixaram registrados os horrores a que foram submetidos: “homens brancos de uniforme ‘cor de mato’ entraram armados em suas terras, destruíram locais sagrados e provocaram a morte de crianças, adolescentes e adultos de aldeias inteiras”1 Aqui eles se referiam aos ataques dos militares as aldeias.

Os relatos apontaram o “derramamento de veneno, explosivos, ataques a tiros, esfaqueamentos e degolações violentas, praticadas por homens brancos fardados contra indígenas sobreviventes dos ataques aéreos”2

O bombardeio da aldeia com um elemento químico, possivelmente napalm, foi registrado judicialmente pela primeira vez por um índio sobrevivente, que era jovem na época, conforme registrado pelo Ministério Público: “Os indígenas ouviram muito barulho vindo de cima e não sabiam do que se tratava. Pouco tempo depois, começaram a sentir muito calor no corpo, não conseguiram mais andar e ficaram todos “muito doentes”, divulgou em nota o MPF, que reproduziu o relato do indígena. O calor provinha do veneno lançado do alto pelos aviões militares. Esse mesmo indígena prosseguiu seu depoimento dizendo aos procuradores que “depois que se ver praticamente sozinho em meio aos corpos de seus pais e irmãos e demais indígenas presentes, testemunhou entrarem homens brancos armados com facas e revólveres”3.

Esse quadro dantesco apresentado aqui, relata apenas um dos povos atingidos durante a ditadura civil-militar. Ele nos dá a dimensão do que foi aquele período sombrio e mostra o quanto se tem que apurar ainda dos crimes ocorridos naquela época contra os povos indígenas! E pior que a noite não tem fim, pois continuam sofrendo novos ataques as suas integridades físicas, culturais e de direitos territoriais na atual conjuntura!!

Bibliografia:

Valente, Rubens. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo, Cia. das Letras, 2017

Sites consultados:

https://midia.mpf.mp.br/6ccr/relatorio-figueiredo/relatorio-figueiredo.pdf

https://pib.socioambiental.org/pt/Quantos_s%C3%A3o%3F

https://amazoniareal.com.br/comissao-da-verdade-ao-menos-83-mil-indios-foram-mortos-na-ditadura-militar/

http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/audi%C3%AAncias-p%C3%BAblicas.html

http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=571

1 https://amazoniareal.com.br/waimiri-atroari-sobreviventes-de-genocidio-relatam-ataques-durante-obra-da-br-

2 Idem

3 Ibidem