domingo, 1 de maio de 2022

Solidão, depressão, empobrecimento e burnout: a “recompensa” dos millenials

Por Marlucio Luna

A chamada Geração dos Millenials, aqueles hoje com idade entre 30 e 40 anos, vive em um mundo para o qual não se preparou. Filhos diretos da cultura digital e das redes sociais, imaginavam na juventude que usufruiriam de uma sociedade metamorfoseada pela tecnologia, com amplas perspectivas e repleta de oportunidades. A realidade, no entanto, se mostra muito mais dura do que eles poderiam prever. A instabilidade econômica e as transformações no mundo do trabalho tornaram a vida adulta quase que insuportável. Isolamento social, empobrecimento, burnout e depressão compõem o cotidiano de grande parcela dos millenials. O lamento expresso por Dante na Divina Comédia se encaixa perfeitamente nessa situação: “Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança”.

Vistos como “fracassados” pelos mais velhos e cringes (bregas, fora de moda) pelos jovens, os millenials são a geração mais afetada pelo empobrecimento e pela depressão em todos os tempos. Isso se deu por conta de uma série de armadilhas criadas por eles mesmos. O futuro glorioso, que viria com a tão sonhada revolução gestada pela tecnologia, simplesmente não chegou. Em seu lugar, surgiu uma sociedade ainda mais competitiva e concentradora de renda. O estilo de vida hedonista baseado em “experiências” ¹ de consumo se revelou caro demais e insustentável diante das exigências da vida adulta. As postagens sobre viagens a lugares exóticos, jantares em restaurantes caros e roupas de grife desapareceram gradativamente dos perfis nas redes sociais, algo que desperta o sentimento de frustração.


Enquanto os baby boomers — a geração nascida nos pós-guerra — privilegiaram a renda e a estabilidade financeira, os millenials apostaram suas fichas no consumo desenfreado. Ignoraram duas crises econômicas globais, a gradativa perda de direitos trabalhistas, as mudanças no mercado de trabalho, o encolhimento em escala planetária do poder de compra da classe média e as incertezas de uma economia que deixou de crescer em ritmo acelerado. Criaram um universo paralelo, no qual o clima de euforia hedonista das redes sociais se transportaria automaticamente para o mundo real. Faltou apenas combinar isso com a realidade.


Burnout, mas com sorriso nos lábios — As questões de ordem prática da vida foram afetadas pela visão distorcida dos millenials. A partir de uma premissa válida — trabalhar com o que se ama —, estabeleceu-se o discurso falacioso de que passar 10 ou 12 horas no trabalho seria algo prazeroso. O “faço o que gosto” serviu para pavimentar a estrada rumo à dedicação profissional excessiva, mesmo que mal remunerada. As atividades profissionais tornaram-se cada vez mais estressantes; a competitividade deu o tom das relações nos ambientes de trabalho. Nenhum esforço era absurdo, já que “faço o que gosto”.

O resultado de tal distorção foi uma epidemia de burnout, distúrbio de ordem psíquica causado pela exaustão extrema, invariavelmente relacionado ao trabalho do indivíduo. Um estudo publicado em 2019 pelo Yellowbrick Data indicava que 95% dos millenials relataram surtos de burnout e que 75% se sentiam mentalmente exaustos. A pesquisa foi suspensa no ano seguinte por conta da pandemia de Covid. No entanto os especialistas acreditam que o cenário tenha se mantido inalterado. 

Não é à toa que os millenials passaram a ser conhecidos como a Geração Burnout ². A escritora norte-americana Anne Helen Petersen descreve os efeitos do distúrbio: “(...)você sente o burnout quando esgota todos os seus recursos internos, mas não consegue se libertar da compulsão de continuar”. A doença se manifesta em ocupantes de empregos que exigem desempenhos irreais. Ela se torna mais aguda diante da pressão em ostentar uma performance irretocável na vida on-line. Perfis em redes sociais precisam transmitir a mensagem de sucesso profissional, de felicidade na vida pessoal e de realização. Mesmo doente, o millenial deve apresentar-se com um sorriso nos lábios, como se vivesse em um conto de fadas.


O desequilíbrio psíquico não se restringe apenas aos casos de burnout. Estudo publicado pelo Journal of Community Health aponta que, desde 2013, os millenials tiveram um aumento de 47% nos diagnósticos de depressão. A situação é ainda mais grave quando se analisa os dados referentes à população negra. Entre 2001 e 2017, as taxas de mortalidade por suicídio de jovens negros do sexo masculino, na faixa etária entre 13 e 19 anos, cresceu 60%. No sexo feminino, a elevação chega a espantosos 182%.


Solidão — Empresas especializadas em pesquisa de mercado já identificaram um traço característico dos millenials: a solidão. Cerca de 30% da geração do milênio se sente solitária com muita frequência ou sempre, índice duas vezes maior que o registrado entre os boomers. Já deu para perceber que interação social não é o forte dessas pessoas. Criada na dinâmica do jurássico Orkut, do Facebook, do Instagram, do Twitter, da TV a cabo e das plataformas de streaming, essa é a geração mais solitária do planeta. Em vez do contato pessoal, prefere passeios virtuais pelos perfis de amigos igualmente virtuais, maratonas de séries na TV a cabo ou em algum Netflix da vida.

Por conta da falta de interação social e da ausência de perspectiva de estabilidade financeira, até mesmo as relações afetivas são afetadas. O crescimento dos sites de relacionamento como o Tinder apenas confirma a dificuldade por parte dos millenials de manutenção de vida social fora do espaço digital. E, mesmo quando ocorre, ela enfrenta todo tipo de limitações (tempo escasso, dinheiro curto, entre outros), o que representa um desestímulo adicional.

Para enfrentar a solidão, muitos investem na companhia de pets. Três em cada quatro norte-americanos têm um animal de estimação ³. A principal justificativa é a necessidade de companhia. Já que o futuro é incerto e a instabilidade financeira aflige, a saída encontrada é a adoção de filhos de quatro patas, pois estes não necessitam de vultosos investimentos em educação, requerem gastos menores com alimentação e não exigem gastos adicionais com moradia. Desta forma, a conexão humana é mais uma vez colocada em segundo plano.


E o futuro? — A maturidade coloca um desafio para os millenials. Os avanços na área da medicina indicam que haverá aumento da longevidade. Como será a velhice sem bons empregos, direitos trabalhistas, políticas sociais amplas, estabilidade financeira e emocional? Restará a eles apenas as lembranças de uma juventude repleta de “experiências”, solitária e depressiva? Cães e gatos serão seus únicos companheiros?

Porém as dúvidas acerca do futuro vão além dos millenials. A Geração Z, aqueles que hoje têm entre 18 e 25 anos, cairá nas mesmas armadilhas, se contentará em viver com menos ou adotará o consumismo insustentável como estilo de vida? E os filhos dos millenials, a Geração Alfa, terão como enfrentar o mercado de trabalho cada vez mais exigente e menos recompensador? A dúvida se coloca devido ao fato de seus pais não disporem de recursos para investir pesadamente em educação. 

O futuro não é nada auspicioso, a não ser que uma grande transformação ocorra em escala planetária. A concentração de renda se intensifica nas nações do chamado Primeiro Mundo. Já nos países periféricos, ela sempre existiu, porém assumiu nos últimos anos patamares insustentáveis. A lógica millenial de um mundo no qual a fruição viria em primeiro lugar se mostrou equivocada. Depressão, empobrecimento, burnout e solidão foram o preço a ser pago. E a fatura chegou...


1 — https://valorinveste.globo.com/objetivo/gastar-bem/noticia/2019/11/10/52percent-dos-millennials-brasileiros-preferem-gastar-em-experiencias-do-que-em-bens-materiais.ghtml

2 — PETERSEN, Anne Helen. Não aguento não aguentar mais: como os millenials se tornaram a geração burnout. São Paulo: HarperCollins, 2021.

3 — https://www.newyorker.com/magazine/2021/06/28/what-will-become-of-the-pandemic-pets

Violência no campo: relatório da CPT expõe insegurança de populações na Amazônia

Por Julio Araujo Jr. 

O relatório de conflitos no campo, lançado na em 18 de abril pela Comissão Pastoral da Terra, traz dados alarmantes sobre o estado da violência no campo nos últimos tempos. A fotografia dos conflitos ocorridos em 2021 indica uma predominância de conflitos na Amazônia Legal, com forte impacto sobre os povos indígenas.

A metodologia do relatório explica que conflito consiste na relação existente entre grupos na disputa nos territórios e por água. Isso inclui permanência no espaço e ações de resistência. Já as violências dizem respeito a algo mais restrito, relacionado à ação direta contra famílias e pessoas.

Segundo os dados do relatório, houve 1768 conflitos no país em 2021, com o envolvimento de 897.335 pessoas. Houve 4,84 conflitos no campo por dia em 2021. Embora tenha havido uma redução (13,92%) no número de conflitos em relação a 2020, o número de pessoas envolvidas praticamente não se alterou (914 mil em 2020).

Chama a atenção o fato de a Amazônia Legal responder por grande parte dos dados, com grandes impactos nas famílias que vivem na região: i) 77,9% das famílias impactadas por desmatamento ilegal; ii) 87,2% das famílias afetadas por expulsão; iii) 81,3% das famílias atingidas por grilagem; iv) 82,2% das famílias que sofreram com invasões. Dos assassinatos, 80% ocorreram na Amazônia Legal (28 de 35).

Povos indígenas 

Os povos indígenas são o grupo que mais sofre. Em 25% dos casos, os indígenas foram os impactados. Na sequência vêm posseiros (17,2%), quilombolas (17,1%), sem terra (13,8%), assentados (8,2%), camponeses de fecho de pasto (5%) e ribeirinhos (2,6%).

Os dados expressam aquilo que se intuía em relação à atuação/omissão do Estado em relação à concretização de direitos fundamentais e políticas públicas destinadas a essas populações. Enquanto há uma luta constante no Congresso Nacional contra projetos gravíssimos, como o da mineração (PL 191/2020), marco temporal (PL 490/2007), regularização fundiária (PL 2633/2020 e 510/2021), entre outros, e no Supremo Tribunal Federal contra o marco temporal, persiste abaixo do radar atos, portarias, práticas e assédios que deterioram a vida dos povos do campo e afetam a integridade de seus territórios.



É necessário enfrentar o tema do direito à segurança nos territórios, mas em uma perspectiva que vá além da mera atuação repressiva do Estado. Uma noção constitucional e cidadã de segurança deve ser mais ampla e deve ser apropriada por aqueles que defendem a necessidade de paz social e estabilidade para as comunidades. Nesse sentido, é fundamental colocar esse tema na ordem do dia, e não apenas quando os massacres ocorrem. Monitoramento territorial, sistemas de alerta, controle efetivo das polícias também no campo e, sobretudo, a implementação das políticas constitucionais de reforma agrária e demarcação de territórios são caminhos urgentes.

Reforma agrária e programa habitacional urbano

Por Mario Lucio Melo

Muitos me perguntam e outros afirmam categoricamente: “no meio desses sem-terra não tem gente só interessada em GANHAR TERRA para vender e depois ficar com o dinheiro?”

Sim! Certamente tem gente mal intencionada, burra, gananciosa, mau-caráter ou que nunca vai ser punida quando transgride a Lei em todos os lugares, instituições e qualificações profissionais. Não seria razoável acreditar que alguém imbuído dessa intenção não se infiltrasse nesse tipo de temática e tentasse aplicar a Lei de Gerson: “Quero levar vantagem em tudo”. Porém quem tentar tem que passar por diversos filtros. O primeiro deles é o do convívio com os colegas interessados, pois a reforma agrária é um processo coletivo. Nele, os próprios futuros beneficiários filtram os candidatos e se organizam por grupos de interesse. O segundo é que durante a fase de inscrição, em uma era informatizada, os dados pessoais são checados com os bancos de dados de controle oficial e um bom número de pessoas é identificada como proprietária de negócios, imóveis e rendas financeiras incompatíveis para este Programa, entre outros impeditivos. Não raro foram descobertas pessoas com mandados judicias de detenção ou mesmo foragidos de penitenciárias. Claro, foram encaminhadas à justiça para as devidas providências.

As terras desapropriadas pelo Governo Federal são pagas aos antigos proprietários que não as utilizavam cumprindo o previsto na Lei. Depois, o novo assentamento é dividido em lotes, segundo a capacidade do uso da terra e são abertas ruas e estradas para permitir o acesso dos assentados. Tem o custo da eletrificação, da construção das moradias e outras benfeitorias. Tudo isso é contabilizado para o cálculo das prestações que o beneficiário do Programa Nacional de Reforma Agrária irá pagar ao Governo Federal até a emancipação final do assentamento, quando então são emitidos os títulos definitivos, muitos anos depois.

Você pode dizer: “E o caso de venda de lotes? Eu soube de um caso...”. Essa situação é igual á compra de imóvel urbano pelo Plano Nacional de Habitação/ Caixa Econômica Federal.  Existem regras para a aquisição de imóveis urbanos, seu pagamento e quitação. Em tese, quem compra está amarrado ao imóvel até sua quitação final, 30 ou até mais de 40 anos depois. Não importa se as prestações subirem além do salário do mutuário ou se ele precisar mudar de cidade para acompanhar a saúde de familiares idosos ou ainda se o casamento não der certo etc e tal. Existem mil e um motivos para a vida nos fazer mudar de rumo no meio de um caminho. 

Pois bem, na reforma agrária acontece a mesma coisa. O beneficiário do Programa NÃO recebe o lote de graça; ele assume um compromisso com regras e normas bem claras. Quem, por um motivo humano justificável, precisar sair do assentamento tem que procurar o órgão responsável e devolver o lote, podendo receber pelas benfeitorias e investimentos feitos no lote, pelo novo ocupante. Existem outras formas de legalizar quem precisa sair do Programa ou mesmo trocar de assentamento, dependendo da sensibilidade do gestor do órgão responsável e dos assessores jurídicos. Para as coisas corretas sempre é possível encontrar soluções com sustentação administrativa e jurídica. 

Infelizmente existem pessoas que tentam burlar essas regras — e não são poucas. Já vi alguns que não têm perfil de agricultor, e muito menos de sem-terra, tentar comprar lotes para terem “um sítio de fim de semana”. Nesses casos, perde quem vendeu, pois fica automaticamente excluído, em todo o território nacional, de entrar em outro grupo de selecionados para o Programa Nacional de Reforma Agrária, já que seu nome fica como já beneficiado e irregular no cadastro único. Por sua vez, quem comprou perde duas vezes. Perde primeiro o dinheiro que pagou, irregularmente, ao antigo beneficiário e perde depois, quando é despejado do lote por mandado judicial de reintegração de posse. O lote, judicialmente retomado, é destinado a outro beneficiário que está regularmente aguardando na lista dos interessados.

Você pode dizer que conhece alguma exceção ou caso irregular. Eu também conheço, mas sei que foram cometidos por dirigentes e/ou funcionários corruptos, sem nenhum compromisso com a verdadeira reforma agrária. Isso não invalida a proposta, mas sim que devemos criar sistemas de vigilância, controle e corregedoria das instituições e programas públicos, seus dirigentes e funcionários.

Em um governo popular e democrático, voltado para realizar as políticas públicas validadas pelas instituições representativas da sociedade e cientificamente comprovada pelas instituições de ensino e pesquisa, tal projeto pode e deve ser implementado como prioridade, pois a reforma agrária é uma usina geradora da agricultura familiar, fundamentada no respeito á agroecologia. Somente dessa forma teremos justiça social e alimentação saudável.

O que cada um de nós pode ou deve fazer pela natureza?

*Angelo José Rodrigues Lima

Em algumas vezes nos deparamos com este questionamento: O que cada um de nós pode ou deve fazer pela natureza? Em defesa das florestas? Das Águas? Contra às mudanças climáticas?

É certo que o que podemos ou devemos fazer individualmente é pouca coisa. Porém, mesmo assim, é muito importante pois desta forma aprendemos a ser mais solidários, pois, por exemplo, se abusamos do uso da água em uma região que tem pouca água, pode faltar para outra pessoa que também precisa da água.

A atitude individual e dentro de uma família é importante para refletirmos sobre o consumo e desperdício de alimento quando este acontece, porém, no caso dos alimentos, e relacionando com a desigualdade social e econômica, temos um conjunto de brasileiros e brasileiras que infelizmente desperdiçam alimentos e consomem mais do que o necessário, enquanto muitos outros brasileiros e brasileiras, sequer tem o de comer.

Na questão da água, é preciso lembrar que ainda temos oficialmente 35 milhões de brasileiros sem acesso à água potável.

Portanto, com a desigualdade existente, as atitudes individuais e pelas famílias são diferenciadas. É muito difícil pedir à uma pessoa que ela economize água, se ela sequer tem água, mas é possível pedir a quem tem água em casa todos os dias para economizar o uso.

Mas então o que devemos e podemos fazer?

A saída não pode ser somente individual. É com a atitude coletiva que podemos obter mais resultados.

Portanto, a primeira saída coletiva é a sociedade brasileira ser cada vez mais organizada, valorizar os espaços de discussão coletiva dos desafios e problemas de um bairro, de uma região, da cidade, do Estado e, em seguida, do país.

A partir desta discussão e construção coletiva de propostas para enfrentar os desafios para garantir qualidade de vida para todos e todas, ganha amplitude e a possibilidade de resolução dos problemas.

Alguns podem não se lembrar da explosão de criação de Associação de Moradores de Bairros que conseguiam reunir moradores e moradoras para discutir os problemas de um determinado bairro e em vários casos, conseguindo sucesso nas soluções dos problemas e o determinante disso, era que a Associação falava em nome da coletividade.

Outro exemplo que demonstra que a atitude é principalmente coletiva.

Quando acima falamos da questão da água, é claro que cada um de nós, quando temos acesso à ela podemos e devemos, por exemplo, tomar banho em um tempo menor, não usar a água tratada para lavar o carro, etc.

Mas como falarmos somente das atitudes individuais e por família, sem deixar de tratar de termos uma atitude coletiva com relação ao maior uso da água no Brasil, que é para a agricultura e pecuária.

70% da água existente no Brasil é utilizada na agricultura e na pecuária, portanto devemos coletivamente discutir e construir políticas para uma maior eficiência do uso da água nesses setores, inclusive porque, além do grande uso, eles têm uma média de 30% de desperdício no uso da água.

Em relação á alimentação, para além da saída individual, ela também precisa ser coletiva, pois, de um lado, coletivamente temos que resolver o problema da desigualdade para que toda a população brasileira tenha garantido o acesso à no mínimo três refeições por dia e com qualidade; de outro, é fundamental discutir o desperdício por parte daqueles que fazem isso.

Portanto, seja pelos desafios sociais, econômicos, ambientais e das mudanças climáticas, possivelmente só os resolveremos se coletivamente a sociedade se organizar, conhecer, debater e construir políticas para enfrentar estes desafios.

Com as mudanças climáticas, isto fica cada vez mais claro, cada país deve fazer o seu dever de casa para que as ações de cada país, somadas com as ações dos outros países, se torne uma ação coletiva para de fato termos resultados.

De qualquer forma, para que cada país faça o seu dever de casa, isto provavelmente só irá acontecer com resultados significativos, se coletivamente a sociedade se organizar, pressionar e cobrar para que os gestores tomem as atitudes necessárias.

* Biólogo, pesquisador e socioambientalista. 

A lista de pacientes e o acesso avançado na atenção básica

Por Sylvio da Costa Júnior

O Sistema Único de Saúde (SUS) tem a ambição de ofertar saúde a todos dentro de um princípio fundamental, a equidade. Ofertar a todos, porém com mais brevidade a quem mais precisa. É uma pedagogia, uma lógica de oferta de acesso organizando a porta de entrada e dando racionalidade ao sistema de saúde. A oferta sem organização do acesso não oferece saúde na lógica da equidade, mas sim de seu oposto, a iniquidade.

O SUS tem suas bases montadas em um tripé baseado na universalidade de acesso, na integralidade do cuidado e na equidade da oferta assistencial. Ou seja, o SUS assegura saúde a todos, em toda a sua complexidade de cuidados e, primeiramente, a quem mais necessita. Esse tripé, a tríade do SUS, pode ser também comparado à representação que os católicos fazem da Santíssima Trindade, na qual o Pai, o Filho e o Espírito não podem ser entendidos separadamente, mas somente como uma entidade única, a Trindade. Não se entende o Filho sem entender o Pai e o Espírito, e assim sucessivamente. Como dito por católicos, um Deus Uno e Trino ao mesmo tempo.

Assim, no planejamento do SUS, a vigilância do território é uma questão fundamental, pois somente com o mapeamento do território é possível se pensar em planejar a oferta de cuidados na perspectiva da equidade. A vigilância abarca outras ações e demandas fundamentais que vão desde a detecção precoce de casos suspeitos de doenças infectocontagiosas importantes, como dengue, leishmaniose ou covid19, até o planejamento propriamente dito para oferta regular de vagas para consultas eletivas. É a vigilância do território que permite que seja feita busca ativa da gestante para consultas de pré-natal. Nessa perspectiva o Brasil organizou sua atenção básica no modelo do Programa de Saúde da Família, com equipes compostas por médicos, enfermeiros, odontólogos, técnicos de enfermagem e de saúde bucal e agentes comunitários de saúde. Nesse modelo, cada equipe tem a responsabilidade sanitária por um território que abriga de 2.000 a 4.500 pessoas Brasil a fora. Esse modelo foi se consolidando e se expandindo de forma importante e com resultados alvissareiros, em um trabalho de formiguinha, no dia a dia, que ao longo dos anos produziu resultados relevantes — como, por exemplo, a robusta diminuição da mortalidade infantil ou o aumento da cobertura vacinal de todo um calendário complexo de imunizantes. 


Esse modelo capilarizado de cuidados a saúde é financiado majoritariamente pelos municípios e co-financiado pela União, leia-se Ministério da Saúde. Importante ressaltar que, quando se olha o percentual de “gastos em saúde” das três esferas, cada dia mais os municípios se encontram aumentando seu gasto com recursos próprios em saúde, a União cada vez menos financiando a saúde, e os Estados... olhando pela janela o financiamento do SUS. Nesse cenário um conjunto de gestores municipais estão encampando modelos de acesso como a ‘lista de pacientes’ ou o chamado ‘acesso avançado’. O que seria isso? Não há mais território, os agentes comunitários de saúde podem ir para a recepção ou trabalhar como auxiliares administrativos, em claro desvio de função, e abandonamos o território. As equipes de saúde da família se organizam na lógica de lista de pacientes na seguinte perspectiva: como dito anteriormente, o território vai para as calendas gregas, e a equipe passa a ser médico referenciada em uma lista de 2 mil a 4 mil pacientes que podem morar onde for, com olhar focado na realização de procedimentos clínicos. Já no chamado acesso avançado, não há agendamento prévio das consultas, salvo gestantes ou o que a rotina permitir. O acesso é livre, sem planejamento, na lógica de uma UPA ou de um pronto-socorro. Importante observar que o acesso avançado poderia ser efetivamente um avanço, caso o dimensionamento das áreas ou pessoas atendidas fosse compatível com a força de trabalho disponível pelas equipes de saúde, coisa que raramente é. A virtude do acesso avançado, que é o atendimento do paciente em no máximo 48 horas após a busca por serviços de saúde, se transformou em uma busca por atendimento sem planejamento do acesso, levando a iniqüidade.

Na lista de pacientes não se trabalha com a ideia de universalização de acesso, mas de universalização de cobertura. Trocando em miúdos: exclui-se da conta do SUS os usuários que não usam o SUS para consultas na atenção básica. Verdade que eles podem não usar o SUS por diversos motivos, como por exemplo dificuldade de acessibilidade (desde unidades sem rampa até  unidades de difícil localização) ou por milhares de outros motivos. Mas de qualquer forma esse usuário é excluído de um conjunto de cuidados e diminui-se o público a se alcançar pelas equipes, claro, pois nesse modelo caso não excluísse muita gente do SUS você teria que ter 100% de cobertura de saúde da família. No acesso avançado, não há planejamento da oferta de serviços, com os usuários tratando a necessidade do dia, sem agendamento. O usuário é avisado que deve voltar para nova consulta, visando à continuidade do cuidado, mas não há agendamento, ele volta para nova consulta quando quiser ou puder e é atendido de imediato a qualquer hora do dia, muitas vezes não pelo seu médico de referência, mas pelo médico disponível, perdendo assim gradativamente o vínculo com as equipes. Mas, para quem já perdeu território, perder o vinculo é como se fosse, usando um dito popular, mais uma flechada em São Sebastião. 

Tanto na lista de pacientes como no acesso avançado, o truque por trás é que as prefeituras estão com a corda no pescoço, gastando em orçamento próprio algo em torno de 25% a 30% de recursos próprios em saúde e não conseguindo mais fazer expansão da atenção básica; o Ministério tem diminuído sua participação transferências aos municípios. Esse jeitinho brasileiro dado pelos municípios foi a forma encontrada de fazer a saúde na atenção básica. Diante da necessidade de expandir saúde para população, em particular o acesso, já que desde o golpe de 2016 a vida tem piorado bastante para o conjunto da população, somado ao aumento populacional, diversos gestores têm encontrado nessas formulas mágicas uma maneira de expandir acesso sem que acha aumento de gastos, a priori. Uma das variáveis mais sensíveis para avaliar a saúde é o acesso; ou seja, o “não acesso” é uma variável que impacta diretamente na avaliação dos serviços de saúde. Com o teto de gastos aprovado, congelando gastos em saúde por 20 anos, com os municípios enforcados financeiramente, foi-se modificando o modelo de saúde para ou atender só quem já usa o posto de saúde mesmo ou atender todo mundo a qualquer hora, sem planejamento, uma vez que aumento de recurso na saúde está fora de cogitação. Já citei em diversos artigos anteriores as intenções perversas por de trás do Previne Brasil, que se somam a esse cenário de escassez de financiamento.

Como escrito no artigo anterior, o sanitarismo do pior dos mundos defende a lista de pacientes e cita o NHS, o SUS da Inglaterra, afirmando que na Inglaterra é assim. Não! Na Inglaterra todo médico é um PJ (pessoa jurídica, o médico abre um CNPJ, como se fosse uma empresa) e é contratualizada uma lista de pacientes com um determinado quantitativo de pacientes por meio do qual o pagamento ao profissional se dá por produção. No Brasil, transferências intergovernamentais não se dão dessa forma, por pagamento via produção na atenção básica. Isso faz toda diferença tanto no financiamento do sistema quanto no processo de trabalho. Recomendo para quem tiver interesse o artigo do professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Adriano Massuda, intitulado “Mudanças no financiamento da Atenção Primária à Saúde no Sistema de Saúde Brasileiro: avanço ou retrocesso?”, publicado pela revista Ciência & Saúde Coletiva, ou o artigo “Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos?”, da professora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) Ligia Giovanella, publicado também pela revista Ciência & Saúde Coletiva.


De concessões em concessões, do modelo de saúde que apresenta resultados positivos claros vamos caminhando a modelos duvidosos, tropicalizando uma ideia aqui, fazendo um aggiornamento acolá, vamos fazendo pequenas concessões que desvirtuam a origem do Programa Saúde da Família. O Saúde da Família nasce a partir da lógica do cuidado com pacientes crônicos, do diabético, do hipertenso, por isso a importância do território e da vigilância do cuidado, da busca ativa da gestante. Um Centro de Saúde não é um botequim, aonde, quando aberto, vai quem quer ou “não foi porque não quis, já que ele está aberto o dia inteiro”. Um Centro de Saúde, se a equidade ainda é importante, deve trabalhar com território e fazer buscas ativas de pacientes que por diversos motivos não o acessam.


De concessões em concessões do modelo de saúde, vamos transformando um padrão de organização de serviço em uma outra coisa que pode ser tudo, mas não uma equipe de Saúde da Família. Uma modelo que não sabemos ao certo o que é e quais resultados práticos ele apresenta. Dessas duas novas formas de organização do processo de trabalho na atenção básica, lista de pacientes e acesso avançado, não falo como doutor em Saúde Coletiva, mas como um profissional de saúde que tem mais de 20 anos de trabalho dentro de um posto de saúde e que vê essas alterações começarem a acontecer no próprio município em que trabalho diariamente. O tal lugar de fala, tão na moda hoje em dia, é o de quem vê, de quem sente e de quem percebe sobre o chão do posto de saúde uma outra atenção básica se organizar. As dificuldades de acesso aos pacientes classificados como “não crônicos” (quem não é diabético, quem não é hipertenso etc) não serão superadas indo ao outro extremo, principalmente sem planejamento e dimensionamento, tão fundamentais no campo a saúde. 

Rememoro aqui o conceito do filósofo e cientista político italiano Antônio Gramci. Em Gramsci, para um momento especifico da Itália da década de 1920, de profunda crise política do sistema burguês da época, caracterizou a conflito vivido quando dois projetos antagônicos, no caso do Partido Socialista e o Partido Liberal, duas perspectivas políticas, duas forças sociais claras e distintas, com pretensões de poder, não conseguem se sobrepor diante da paralisia do estado, não conseguem ter hegemonia sobre o outro, há uma situação que o autor intitulou de empate catastrófico ou equilíbrio catastrófico. Uma situação de impasse político que pode levar a um desempate ou ao bizarro. 

Voltando para o campo da saúde, e fazendo uma analogia com o parágrafo anterior, quando nem se substituiu o modelo com as concepções originarias do Programa de Saúde da Família nem se aboliu por completo o PSF minguando seu financiamento, mas ficamos no meio do caminho com a lista de pacientes e o acesso avançado.

Saúde pública não se faz na base do voluntarismo ou do improviso, mas com planejamento, evidências, investimentos e objetivos claros, pelo menos se equidade ainda é importante no SUS.


Conclat, uma grande oportunidade desperdiçada

Por Claudia de Abreu*

A 1ª Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat) foi em 1981. Foi o maior encontro de militantes sindicais realizado no país, a primeira tentativa de articulação nacional dos trabalhadores após a ditadura. Foram mais de 5 mil pessoas, representando mais de mil entidades sindicais brasileiras. Foi o berço da eleição da Comissão Nacional Pró-CUT, que trabalhou para a fundação da central em 1983.

A Conclat de 2022 foi anunciada em fevereiro como um momento de união de todas as centrais brasileiras: Central Única dos Trabalhadores (CUT), Força Sindical, União Geral dos Trabalhadores (UGT), Central de Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST), Central de Sindicatos do Brasil (CSB), Intersindical Central da Classe Trabalhadora, CSP CONLUTAS, Pública, Central do Servidor e Intersindical Instrumento de Luta. Um espaço para elaboração de uma pauta nacional de resistência dos trabalhadores em um momento de fortes ataques. E que deveria fomentar ações de debate e mobilização.

Ela foi anunciada amplamente nas mídias das centrais sindicais quando a proposta foi lançada, em fevereiro de 2022, mas depois sumiu do noticiário sindical da maioria das centrais. 

Divulgada como um momento de união e resistência da classe trabalhadora em toda sua diversidade ideológica, teria no dia 7 de abril seu ápice, com o lançamento de uma proposta construída coletivamente em defesa da geração de empregos com direitos, de proteções sociais e previdenciárias, em defesa da democracia, da soberania e da vida. 

Apesar da importância política da iniciativa, nem todas as centrais valorizaram o assunto em suas mídias. Chama a atenção que o site da Força Sindical tenha mais publicações sobre a Conclat do que a CUT, que falou sobre a importância da Conclat em fevereiro e só retomou o assunto em abril. A Publica, central que assinou a convocação e participou do evento, publicou a convocação de fevereiro, mas depois o assunto não foi mais lembrado nem pela ocasião do lançamento do documento.

A Conclat não reuniu sequer a totalidade das centrais que a convocaram. Realizada de forma híbrida, presencial e virtual, teve a presença de 500 pessoas em um auditório no bairro Liberdade, em São Paulo. Todas as centrais presentes — CSB, UGT, Intersindicais, Pública, Nova Central, Força Sindical, CUT e CTB — afirmaram que “a prioridade da classe trabalhadora é derrotar Bolsonaro”. A Conlutas divulgou nota três dias antes do evento, dizendo que não participaria mais. “Será um encontro da cúpula sindical, de duas horas, limitado na representação e que não apresentará nenhum plano de lutas, apenas uma plataforma de governo aos candidatos(as), visando colocar todo o movimento sindical a reboque do calendário eleitoral.”

De fato, o evento se limitou às falas dos presidentes das centrais e a apresentação do documento. A oportunidade de organizar uma agenda de lutas foi desprezada.

O documento foi entregue pelos representantes das centrais sindicais ao candidato a presidente Lula no dia 14 de abril, que compareceu ao evento junto com Geraldo Alkmin. Nos discursos, o ex-presidente se comprometeu em abrir uma mesa de negociação permanente com os trabalhadores se eleito. E o ex-governador de São Paulo disse que o evento era “histórico” e que “A luta sindical deu ao Brasil o maior líder popular deste país”.

Porém, três dias antes, Lula teve uma reunião com a CUT nacional, divulgada pela própria central, na qual recebeu uma pauta com propostas para a classe trabalhadora. A divulgação do evento, às vésperas do Conclat, criou um mal-estar no meio sindical e críticas vieram depois até de Lula, que declarou ser importante receber uma pauta unificada e não uma por central. A presidente do PT, Gleisi Hofmann, também se posicionou no mesmo dia sobre a importância da unidade das centrais.

O documento aprovado pelas centrais orienta a realização de encontros estaduais e regionais, após a Conclat, para definir ações e propostas locais e a construção de pautas unitárias locais, complementares à nacional, para serem entregues aos candidatos aos executivos e legislativos nos estados.

Não há muito o que esperar de um processo político tão verticalizado. Seria importante a regionalização deste debate, mas visando à organização dos trabalhadores para as lutas que se avizinham, independente do resultado eleitoral. Ainda que o candidato que está à frente das pesquisas ganhe de fato, as alianças que estão sendo feitas mostram que o governo vai precisar de pressão para cumprir compromissos com a classe trabalhadora.

É importante que os sindicatos assumam o protagonismo da resistência à precarização. Mais do que impedir novos retrocessos, é importante avançar na revogação da reforma trabalhista e de outros direitos confiscados.


A pauta divulgada:

https://admin.cut.org.br/system/uploads/ck/WEB_Pauta%20da%20Classe%20Trabalhadora%20CONCLAT%202022-3.pdf 

* Jornalista, militante dos ComuniCativistas e do Coletivo Jornalistas em Luta. Membro da Comissão Nacional de Ética dos Jornalistas.

sábado, 19 de março de 2022

Eleições, Meio Ambiente e Qualidade de Vida

 *Angelo José Rodrigues Lima


Este ano teremos eleições para presidente, senador, deputado federal, governador e deputado estadual no momento que alguns países de mundo estão em guerra.

No momento não é só a guerra entre a Rússia e a Ucrânia que está acontecendo; Israel, EUA e Arábia Saudita também estão atacando a Síria, Somália e Iêmen.

Segundo o Projeto de Dados de Localização de Conflitos Armados (Acled – sigla em inglês- https://acleddata.com/#/dashboard), pelo menos 28 países passam por conflitos ou registraram combates armados neste início de 2022.

Não entraremos aqui no debate sobre estas guerras, mas uma coisa precisamos refletir, haverá paz se ela for seletiva?? Existe justiça se ela é seletiva? Existirá qualidade de vida para todos e todas, se as políticas públicas forem seletivas?

É a mesma coisa que devemos pensar para brasileiros e brasileiras: Haverá qualidade de vida se tivermos um governo federal e estadual, senadores(as), deputados(as) estaduais e federais, favorecendo apenas aos setores econômicos que já têm renda para garantir uma qualidade de vida?? Me parece que não.

Mas é isso que está acontecendo agora no Brasil. Temos um Governo Federal e governos estaduais e uma grande maioria de deputados federais e, em alguns Estados, deputados estaduais, legislando em favorecimento de poucos.

Estão desmantelando a gestão ambiental para favorecer o agronegócio; estão aprovando leis para beneficiar indústrias da mineração e dos agrotóxicos; liberaram venenos para serem aplicados nos alimentos; estão autorizando que áreas de proteção de rios sejam ocupadas pela especulação imobiliária; fizeram mudanças na legislação trabalhista e previdenciária que beneficiaram poucos, enfim, estão diminuindo cada vez mais a possiblidade de termos qualidade de vida.

Exatamente no momento que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC – sigla em inglês) no lançamento do seu último relatório** diz: “As mudanças climáticas ameaçam o bem-estar da humanidade e a saúde do planeta. Somente medidas imediatas podem garantir nosso futuro”.

Mas será que as mudanças climáticas afetarão todos igualmente??

O relatório já responde essa pergunta, quando apresenta que, “cerca de 3,3 bilhões de pessoas vivem em países com alta vulnerabilidade à crise climática, com impactos maiores sobre aqueles que sofrem com questões relacionadas à desigualdade, saúde, educação, crises financeiras, falta de capacidade de governança e infraestrutura”.


E que “vidas e lares foram perdidos em todo o mundo, mas em países com maior situação de vulnerabilidade, a mortalidade por inundações, secas e tempestades foi 15 vezes maior na última década, em comparação com países com vulnerabilidade baixa”


O relatório ainda aponta que as cidades, pelo modelo de ocupação e a falta de política habitacional para as populações mais vulneráveis representam um grande risco para a perda de mais vidas, vide o que podemos lembrar das tragédias nas cidades da Bahia, Minas Gerais e mais recentemente em Petrópolis (RJ).


No dia 15/02/22, Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, enfrentou a maior chuva desde 1932, segundo informações do Cemaden e do Inmet. As fortes chuvas causaram deslizamentos e tiraram a vida de mais de 200 pessoas, desabrigando milhares. Petrópolis é mais uma vítima do descaso com a Crise Climática, que agrava e intensifica eventos extremos. © Thomas Mendel / Greenpeace. https://www.youtube.com/watch?v=E_w3fyse_Lo 

A seletividade na busca pela paz, a seletividade na Justiça e a seletividade para benefício de poucos, nos leva à seletividade na qualidade de vida. Somente poucos terão acesso à água, saúde, saneamento, habitação, enfim, somente poucos terão direito à uma vida digna.

Portanto, nestas eleições, não se deixe levar pelo imediato. Só garantiremos qualidade de vida para todos e todas, se escolhermos candidatos e candidatas em todos os cargos das eleições de 2022, que tenham história na construção de políticas coletivas, de políticas que beneficiem a maioria e que garantam a defesa da democracia.

Além disso, quanto mais a sociedade brasileira for organizada e discuta política, poderemos conquistar direitos para todos e todas, pois em uma democracia, além de votar, precisamos nos organizar para pressionarmos os governos federal e estaduais, senadores(as), deputados(as) federais e estaduais.

E no momento de emergência climática que estamos vivendo, é fundamental que os candidatos se comprometam com políticas públicas construídas de forma participativa e integradoras. Não basta somente trabalhar com política habitacional dissociada de onde implantar as casas populares; é preciso que as casas populares sejam instaladas em uma área que não coloque as pessoas em risco.

As tragédias nas cidades da Bahia, Minas Gerais e em Petrópolis, têm relação direta com a falta de implementação de políticas públicas integradas, articuladas e construídas junto com a sociedade.

Imaginemos como se sente o ministro da pequena Tuvalu por termos um mundo seletivo. Quem além dos seus habitantes e governantes deste pequeno país se preocupam com ele?

Tanto é assim, que o ministro de Tuvalu, para chamar a atenção sobre a ilha, fez um discurso dentro do mar, pois as Ilhas de Tuvalu estão completamente ameaçadas pelas mudanças climáticas.

Percebam como ninguém e nenhum país do mundo deve e pode ser tratado de forma seletiva.

Nestas eleições, não deixemos ninguém para trás. 

Votemos pela democracia, pela Justiça para todos, pelo fim da desigualdade social e econômica, pela integração das políticas públicas e pela construção de um modelo de desenvolvimento que coloque a questão social e ambiental como princípio para discutir a questão da economia; as vulnerabilidades sociais, econômicas e ambientais, pedem esse caráter de urgência.

 


"O ministro de Tuvalu, uma das ilhas que correm o risco de desaparecer devido as alterações climáticas, fez discurso dentro do mar para alertar os líderes da última conferência do clima, em Glasgow. Tuvalu é um país da Oceania. Tuvalu é um Estado da Polinésia formado por um grupo de nove ilhas e atóis, antigamente chamado Ilhas Ellice. Foto: divulgação.

*Pesquisador Sócio ambientalista.


** https://www.ipcc.ch/assessment-report/ar6/ - Relatório do IPCC em inglês

https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/2022/02/PR_WGII_AR6_spanish.pdf  - Um resumo do relatório em espanhol.


sexta-feira, 18 de março de 2022

O Sanitarismo ‘Bem Pensante’

Sylvio da Costa Júnior*


O Sistema Único de Saúde, descentralizado na assistência à saúde, com redes municipais e intermunicipais de cuidado, e centralizado em sua forma organizativa, permite múltiplas possibilidades de arranjos nas linhas gerais de seu arcabouço jurídico e também de co-financiamento. Cabe o mundo e mais um pouco no interior do SUS.



Diversos artigos científicos e vários autores já defenderam distintos modelos de SUS, sempre com uma retórica rebuscada e no idioma “sanitarês”, muitas vezes para causar uma confusão proposital no leitor, com textos que abordam a transversalidade do cuidado, a longitudinalidade, a universalidade do acesso, gestão da clínica e etc. Há também os sanitaristas de outro mundo, que usam exemplos absolutamente descontextualizados de outros modelos de saúde, como “na Inglaterra é assim”, “no Canadá isso é comum”, “na Cochinchina o sistema funciona assado”, mas o que eu realmente questiono é se algo foi lido e refletido a respeito. Me recordo de uma conversa com um gestor que me disse: “o melhor sistema de saúde do mundo é o de Israel”.  Confesso que na hora pensei comigo: durante meus quase 5 anos de doutorado, na linha de pesquisa de Saúde Coletiva, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), nunca achei um texto que explicasse a dinâmica do sistema de saúde israelense e duvido que o autor da afirmação tenha lido um artigo cientifico em aramaico, então me perguntei: que diabos de argumento é esse? De onde ele tirou isso? Ou seja, muitas vezes para defender um modelo pré-concebido de saúde os argumentos não são claros de forma intencional, porque as intenções são capciosas.

Para citar um exemplo objetivo dessa tese que defendo vejamos o Open Health. Pra começar, porque o termo em inglês, se não para dar a ideia de moderno, de novo ou de avançado? Vamos aos fatos: no último ano de um desastroso governo, com quatro ministros da saúde diferentes em quatro anos, um pior que o outro, provando que nada é tão ruim que não possa piorar, o Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga afirmou em entrevista ao jornal Valor Econômico que planeja criar, via Medida Provisória, uma plataforma com acesso aberto às operadoras de planos de saúde contendo todas as informações de cada usuário do SUS para “ampliar a concorrência no mercado de planos de saúde”. Assim, com a publicização dessas informações, os planos de saúde poderiam oferecer planos privados mais baratos aos usuários do SUS, a partir de um diagnóstico de utilização do sistema público – oferecer planos mais baratos para usuários que potencialmente utilizam pouco o sistema público. Ao longo da entrevista,, o Ministro quase afirma em tom piedoso que com poucos recursos devemos deixar o SUS para os que mais precisam, para os mais pobres. Bom, atrás da intenção perversa de estimular, através de políticas de governo, a transferência de usuários do SUS para as grandes corporações de seguro saúde, enfraquecendo assim o modelo de saúde que deveria ser universal, ou seja, para todos, para um modelo de saúde residual, para os mais pobres que não podem comprar planos privados. O Ministro malandro faz um contrabando da verdadeira motivação e tenta mudar a lógica do SUS atrás de uma conversa franciscana, utilizando a defesa de quem não pode comprar planos privados.

Outro bom exemplo de presentes muito bem embrulhados, em vistosos papéis celofanes e com cintilantes fitas vermelhas é o cavalo de Troia do Programa Previne Brasil (PPB). Lembrando a história grega, citada por Homero, em sua obra intitulada Ilíada, foi construído um imenso e lindo cavalo de madeira para presentear a inexpugnável cidade fortificada de Troia, mas dentro desse enorme cavalo de madeira havia diversos guerreiros inimigos que à noite tomaram de assalto a cidade fortificada. Dentro daquele presente, de grego, havia as piores das finalidades. Ao longo da implementação do PPB e em debates que participei em diversos espaços com gestores quer do Ministério, quer do Estado, ou municipais, eram comuns argumentos relacionados ao programa abordarem experiências de outros países como Inglaterra, Canadá, Portugal etc. Um artigo que aponta as bases do PPB, seu caráter privatizador e que sugiro leitura está contido no texto publicado em 2015, intitulado “Bases para um Novo Sanitarismo”. Colocando o guizo no pescoço do gato vale destacar também que a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), em nota específica sobre o PPB, emitida em 28 de novembro de 2019, faz um conjunto de considerações sobre o programa e termina afirmando: “a SBMFC, (...) manifesta seu apoio à nova política de financiamento da APS por entender que o potencial de ganhos e avanços com a medida, suplantam os riscos e dificuldades organizacionais que possam eventualmente ocorrer”.

Uma vez lançado o programa, o que se viu de prático foi a substituição do PMAQ-AB, programa esse que avaliava a atenção básica a partir de um conjunto de indicadores de saúde, da satisfação do usuário, da infraestrutura da unidade de saúde e, fundamentalmente, fazia um financiamento adicional ao já existente, sendo verdadeiramente um dinheiro novo aos municípios, pelo PPB, que avalia atenção básica a partir de apenas sete indicadores e implode o financiamento existente à atenção básica, fazendo não um financiamento complementar, como o PMAQ, mas um outro financiamento, que no final das contas diminui a transferência de recursos a estados e municípios, implementando assim a emenda constitucional de teto de gastos no SUS.  Como habitual nesses discursos, sempre há um argumento descontextualizado, pinçado, sem aprofundamento, utilizado como exemplo um país estrangeiro rico, invariavelmente na Europa ou na América do Norte. Verdade que, como já afirmei acima, já ouvi até exemplos exóticos de SUS no Oriente Médio, obviamente em Israel, seja lá o que esse exemplo signifique como argumento. Sugiro para debate excelente artigo publicado recentemente na revista “Cadernos de Saúde Publica” dos profs. Drs. Áquilas Mendes, Mariana Alves Melo, Leonardo Carnut, intitulado “Análise Crítica sobre a Implantação do Novo Modelo de Alocação dos Recursos Federais para Atenção Primária à Saúde: operacionalismo e improvisos”. No artigo fica bem claro que o sanitarismo de outro mundo é, na realidade, não um sanitarismo do outro mundo, mas um sanitarismo do pior dos mundos. O sanitarismo do pior dos mundos também traz em seu bojo a lógica de custo-efetividade, que não utiliza muitas das vezes a ‘matemática’, mas a ‘matemágica’ que convém. 

Poderia citar outros tantos exemplos de intenções maravilhosas para melhorar o SUS e a vida da população que na verdade escondem motivação distinta, como privatização do sistema de saúde, sua substituição por Organizações Sociais ou ainda a transferência de usuários do SUS para os planos de saúde privados. Sincericídio, a arte de misturar a sinceridade com o suicídio, dando a ideia de que se você, como se diz popularmente, ‘abrir o jogo’, será trucidado porque as intenções são marotas, não estão no cardápio do sanitarismo ‘bem pensante’.

O sociólogo italiano Antonio Gramsci desenvolve uma teoria política que tem na hegemonia cultural um conceito para descrever um tipo de dominação ideológica que a burguesia usa de expediente sobre a classe trabalhadora, quando na verdade a burguesia traveste seus próprios interesses como se fossem interesses do conjunto de toda sociedade. Em determinado momento ele coloca que cabe à classe trabalhadora a hegemonia moral diante do conjunto da sociedade que se dará diante das melhores práticas, das melhores intenções, motores das melhores ações. A classe trabalhadora deve sempre ser crítica à realidade imposta e dialogar claramente com o povo para que, diante da luz do Sol, não haja nenhuma dúvida ou hesitação das motivações políticas entremeadas em suas finalidades. Nesse sentido, a verdade é (e sempre será) revolucionária.

Valendo-me do sociólogo italiano, não vacilo em afirmar o dito popular que o inferno está cheio de boas intenções, mas no SUS também.


*Doutor pela UFRGS; Conselheiro Nacional de Saúde – Entidade FIO; Conselheiro Municipal de Saúde de Florianópolis – Entidade CUT



 

Porrajmos, o holocausto cigano esquecido

Por Marlucio Luna


Conhecido pela maioria das pessoas, o termo “Holocausto” sintetiza de forma inequívoca os efeitos da política de extermínio dos judeus implementada pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Mas quantos sabem o significado da palavra romani “Porrajmos”? Em tradução literal da língua falada pelos ciganos, ela quer dizer devorar, mas também passou a designar o processo de eliminação física da etnia pelas tropas de Hitler e de seus aliados — um holocausto pouco divulgado que assassinou meio milhão de ciganos dos grupos Rom, Sinti, Lalleri, Lovari, Kalderash e Manouches.

Enquanto a perseguição aos judeus virou fonte de inspiração para jornalistas, escritores e cineastas, o Porrajmos praticamente foi apagado da História. Mesmo sendo vítima do mesmo roteiro das atrocidades cometidas pelos nazistas — prisões arbitrárias, deportação para campos de extermínio e de concentração, trabalhos forçados, esterilização compulsória, tortura, fuzilamentos e execuções nas câmaras de gás —, o povo cigano precisou esperar 25 anos até que pudesse começar a contar os horrores sofridos durante a Segunda Guerra Mundial.



Histórico de perseguições — Cristalizou-se no imaginário popular a figura do cigano como alguém sempre envolvido em trapaças, roubos, violência e práticas de magia negra. Tal visão serviu de combustível para fomentar o preconceito na Europa desde a Idade Média. No século XII, o imperador alemão Karl IV decretou o extermínio de todos os homens ciganos em idade adulta. Já as mulheres e as crianças deveriam ter as orelhas cortadas, como forma de punição e de identificação de sua origem.

Na Espanha, durante o período da Inquisição, as ciganas eram alvos constantes de acusações de prática de bruxaria. A tradição milenar da quiromancia, a leitura das mãos, serviu como base para a abertura de diversos processos no Tribunal do Santo Ofício. Na visão dos seguidores de Torquemada, essa era uma prova inequívoca de “pacto com o demônio”. Também houve casos em que homens e mulheres ciganos receberam penas duríssimas pelo suposto uso da sensualidade para enfeitiçar os católicos.

No fim do século XIX, o governo alemão criou a Nachrinchtendienst in Bezug auf die Zigeuner (Central para Combate à Moléstia Cigana). A agência de informação tinha como objetivo registrar, controlar e manter sob severa vigilância os ciganos que viviam no país. A preocupação das autoridades se baseava no “comportamento altamente perigoso” desse grupo étnico. Uma das principais diretrizes da Central estabelecia a proibição de interação social entre ciganos e o resto da população.

A perseguição aos ciganos se intensificou na Alemanha com a chegada de Hitler ao poder, em janeiro de 1933. Vistos como “seres inferiores”, “antissociais”, “incompatíveis com a vida em sociedade” e “ameaça à pureza ariana”, os roma (plural de rom), os sintis, os kalderash, os lovaris, os lalleris e os manouches começaram a ser caçados pela polícia alemã e pelas SA, as milícias paramilitares do Partido Nazista. 

Em março de 1938, um relatório encaminhado ao comandante das SS nazistas e responsável pela criação e operação dos campos de concentração e de extermínio, Heinrich Himmler, sugeria “o início da solução definitiva do problema cigano a partir de um ponto de vista racial”. Cabe destacar que “solução definitiva” era um eufemismo tecnocrático usado como sinômimo de eliminação física, assassinato. Assim como os judeus, o povo cigano deveria desaparecer.

O início do terror — Em maio de 1940, as SS deportaram cerca de 2.500 ciganos roma e sintis residentes em Hamburgo e Bremen para campos de concentração na Polônia. A ação contou não apenas com o apoio dos membros do partido nazista, mas também de amplos setores da população alemã, reforçando a ideia de que o preconceito contra a etnia encontrava eco na sociedade.

Em meados de 1941, 5.007 roma, sintis e lalleris que viviam na Áustria foram deportados para o gueto em Lodz, na área central da Polônia, ocupando uma seção separada dos judeus. Nos primeiros meses, metade dos ciganos levados morreu de fome, frio e falta de medicamentos. No ano seguinte, os sobreviventes seguiram para o Campo de Extermínio de Chelmno, a 50 quilômetros de Lodz.

Antes da adoção das câmaras de gás como instrumento para extermínio, os ciganos eram assassinados a tiros pelas tropas alemãs e forças paramilitares simpatizantes do nazismo. Na Polônia, onde os ciganos ocupavam há séculos áreas rurais, a perseguição foi intensa nos vilarejos. Historiadores e investigadores soviéticos identificaram 180 locais de fuzilamento de homens, mulheres e crianças de origem cigana. Os corpos estavam em grandes valas comuns.

O fuzilamento de ciganos também se transformou em prática habitual nas regiões invadidas pelo exército alemão, principalmente na antiga Iugoslávia e nos territórios invadidos na União Soviética. A caçada muitas vezes contou com a colaboração da população local, em sua maioria católica — a mesma religião dos ciganos. Apenas os muçulmanos residentes nessas áreas demonstraram solidariedade e protegeram o grupo étnico perseguido, evitando que muitos tivessem como destino o fuzilamento ou os campos de concentração. 

Extermínio com método variável — O Porrajmos assumiu contornos distintos. Nas áreas anexadas ao Reich Alemão, a regra era simples. Homens e mulheres aptos seguiam para os campos de concentração e áreas de trabalhos forçados. Crianças, velhos e doentes tinham como destino as câmaras de gás nos campos de extermínio ou o fuzilamento. 

Já nos países com governos tutelados pelo regime nazista, as medidas adotadas excluíam o fuzilamento, limitando-se às ordens de deportação para os campos de concentração, o que não reduz a parcela a culpa desses governos. A Romênia, por exemplo, enviou sua população cigana para a Transnístria, uma região ocupada pelos nazistas entre a Ucrânia e a Moldávia. A administração alemã local determinou o fuzilamento apenas dos homens adultos, deixando que mulheres, idosos e crianças fossem abandonados e morressem de fome e frio. A justificativa para a tal diferença de tratamento era de ordem prática: não “desperdiçar” munição.

O governo colaboracionista de Vichy também teve sua participação no Porrajmos. Depois de uma longa e sistemática caçada, enviou para o campo de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, ciganos que viviam na França, bem como os roma que eram refugiados da Guerra Civil Espanhola.

A exceção ficou por conta da parte da Tchecoslováquia, que manteve sua autonomia tolerada por Hitler. Lá, os ciganos escaparam da aniquilação física, porém continuaram sendo alvo de preconceito e da eliminação sistemática de direitos civis. Contudo a “sorte” cigana se deu por conta de uma opção estratégica da burocracia. O governo tcheco priorizou a perseguição aos judeus, deixando os ciganos como alvo de uma segunda etapa de limpeza étnica.  

A partir de 1942, a maioria dos ciganos presos estava concentrada em Auschwitz-Birkenau, ainda que outros campos de trabalhos forçados e de extermínio mantivesse roma, sintis, kalderash, lovaris, lalleris e manouches presos. Enquanto os judeus traziam em seus uniformes listrados a estrela amarela, os ciganos eram identificados com um triângulo marrom costurado nas roupas. Os administradores dos campos procuraram mantê-los apartados dos judeus. A justificativa: o “espírito rebelde” do cigano podia “contaminar e influenciar” algum tipo de resistência ou rebelião.

O auge do terror ocorreu em 2 de agosto de 1944. Naquele dia, 4.300 ciganos inaptos ao trabalho (crianças, idosos e doentes) foram assassinados nas câmaras de gás de Auschwitz-Birkenau. Dos 23 mil ciganos enviados para Auschwitz-Birkenau, pelo menos 19 mil morreram de fome, exaustão, doenças infecciosas ou assassinados nas câmaras de gás. Não há um número oficial, mas existem registros de envio de ciganos para os campos de Chelmno, Belzec, Sobibor, Treblinka, Bergen-Belsen, Sachsenhausen, Buchenwald, Dachau, Maulthausen e Ravensbrück.

Vozes das vítimas — Mesmo sem estatísticas oficias confiáveis, os pesquisadores estimam que entre 220 mil e meio milhão de ciganos tenham sido assassinados na Europa durante o Porrajmos. Os números têm como base relatos de sobreviventes dos campos de extermínio e de habitantes das regiões onde ocorreram as perseguições, análise de documentos encontrados nos arquivos nazistas e estudos acadêmicos. 

O esforço para manter viva a história do Porrajmos contrasta com o esquecimento a que foi relegado o holocausto cigano logo após o fim da Segunda Guerra. Os argumentos usados para relativizar os crimes cometidos contra esse grupo étnico se baseavam nos já conhecidos estereótipos: a vida à margem da sociedade, o comportamento antissocial, a prática de pequenos delitos e a quiromancia. Dessa forma, a perseguição não teria viés racial, mas social.

A relativização do Porrajmos durou 25 anos. Apenas em abril de 1971, com a realização do Primeiro Congresso Mundial Romani, em Londres, teve início o processo de resgate histórico dos crimes cometidos contra a população cigana na Segunda Guerra Mundial. Na ocasião, foi apresentada a proposta de criação de uma comissão para investigar as atrocidades perpetradas contra os grupos Rom, Sinti, Kalderash, Lovari, Lalleri e Manouches.

O congresso estabeleceu como linhas de ação a luta contra o preconceito, o combate ao anticiganismo e o reconhecimento dos ciganos como nação. O movimento, iniciado em 1971, hoje reúne ONGs, grupos de mobilização e organismos governamentais que atuam na promoção de políticas públicas contra a exclusão social e econômica dos ciganos. 

O nacionalismo cigano é uma construção abstrata, baseada na história de um povo originário da Índia, com cultura e idioma próprios, além do trabalho de divulgação permanente do Porrajmos. A ideia busca estabelecer um sentimento de pertencimento comum entre os distintos grupos ciganos.

Em 1979, o parlamento da antiga Alemanha Ocidental reconheceu o direito dos ciganos à indenização pelos efeitos do Porrajmos. No entanto poucos usufruíram da medida, pois o número de sobreviventes era reduzido. Já o Parlamento Europeu estabeleceu o 2 de agosto, data do massacre em Auschwitz-Birkenau, como o Dia Memorial Europeu do Holocausto para os Sinti e os Roma.

Na tentativa de registrar as atrocidades cometidas pelos nazistas contra os ciganos, foi criado o portal Voices of the Victims (www.romarchives.eu), mantido pelo The Documentation and Cultural Centre of German Sinti and Roma. Ele reúne depoimentos de sobreviventes, cartas enviadas — na maioria das vezes de forma clandestina — por ciganos perseguidos, artigos de pesquisadores e documentos oficiais relativos ao Porrajmos. Além disso, o portal busca colocar em discussão questões da cultura cigana, divulgar a produção artística e estimular a articulação entre os grupos que compõem a etnia.

O trabalho desenvolvido pelos criadores do portal Voices of the Victims ganha maior relevância justamente no momento em que os grupos de extrema direita se expandem na Europa. Os ciganos se tornaram novamente alvo de perseguições e ataques em vários países. A sombra de um novo Porrajmos paira e assusta um dos mais antigos grupos étnicos.

domingo, 13 de março de 2022

Modos, meios e formas de produção agrícola

por: Mario Lucio Machado Melo Junior,

engenheiro agrônomo


A agricultura humana evoluiu muito desde os primórdios do surgimento de nossa espécie, e hoje, contraditoriamente, ainda convivemos com essas práticas ancestrais entrelaçadas com outras supermodernas e tecnificadas. Para exemplificar, vamos fazer uma viagem ao tempo das cavernas. Os grupos humanos, para se alimentarem, praticavam a caça e o extrativismo há pelo menos 195 mil anos. Em pleno Século XXI encontramos diversos grupos humanos ainda neste estágio de modo produtivo, inclusive aqui no Brasil. Esta forma não utiliza nenhum insumo externo para aumentar quantitativamente a produção, sem produzir excedentes expressivos, de forma geral, ecologicamente em equilíbrio, convivendo, muitas vezes de forma não pacífica, com outros meios e formas de produção que surgiram durante o passar dos anos e não se tornaram hegemônicas, tais como: em pequenas propriedades familiares; em grandes propriedades com trabalho escravo (ou análogo); em grandes propriedades com trabalho assalariado; em pequenas e grandes propriedades com uso de mecanização de diversos graus/ formas de tração, dependências tecnológicas de insumos e energia externos às propriedades.

As contradições e conflitos de interesse são evidentes, não ocorrendo um convívio pacífico entre os rurícolas, como podemos constatar pelo enorme número de mortes de trabalhadores, líderes sindicais, dos povos indígenas ou de militantes dos movimentos sem-terra e/ou conservacionistas (como Chico Mendes). Nestes casos, sempre ocorre o predomínio dos grupos política e economicamente dominantes com submissão por coerção dos interesses dos mais frágeis por pura omissão das autoridades públicas, que deveriam cumprir a Constituição e as leis complementares e regulatórias.

A partir da década de 1970, surgiu um forte movimento de resistência contra a guerra do Vietnam, onde o exército americano usava desfolhantes químicos para bombardear as rotas de abastecimento das tropas norte vietnamitas, similares aos herbicidas já usados nas lavouras de seu país. Em ambos os casos foram constatados os efeitos colaterais de doenças neurológicas e cancerígenas nos soldados que retornaram do Vietnam e nos trabalhadores rurais dos cinturões de produção de milho, soja e algodão americanos.

Simultaneamente, no Brasil em 1971, o engenheiro agrônomo José Lutzenberger largava sua carreira como funcionário da indústria agroquímica alemã Basf, tornando-se ecologista no Rio Grande do Sul. Na década de 1980, ele foi ministro do Meio Ambiente no Governo Collor por indicação dos crescentes e populares movimentos ambientalistas. As críticas dele, bem como de outros — por exemplo da professora engenheira agrônoma Anna Maria Primavesi e da pesquisadora engenheira agrônoma Johanna Döbereiner — aos agrotóxicos e ao modelo agroquímico de agricultura dita “moderna” ou “revolução verde” tinham fundamentação científica e comprovação prática real, influenciando uma legião de estudantes de Agronomia, e hoje de uma série de outras profissões, seguidores das ideias agroambientais de diversas correntes filosóficas, por exemplo a agricultura biodinâmica, fundamentada nas teorias antroposóficas do filósofo austro-húngaro Rudolf Steiner. Tudo isso gerou, posteriormente, um arcabouço legal de controle do uso abusivo e indiscriminado de agrotóxicos e todo um trabalho de produção e ecoconsumo dos “orgânicos” no Brasil (paralelamente com experiências semelhantes nos demais países do mundo que não convem aqui citar).

Certamente esse movimento cresceu entre os produtores e consumidores e não ficou sem resposta raivosa e forte reação das classes dominantes. Empresas e indústrias fabricantes dos agroquímicos que funcionam simultaneamente com sementes geneticamente modificadas e patenteadas, formaram um pacote tecnológico só, contendo: maquinário próprio; adubos químicos; sementes modificadas; agrotóxicos; equipamentos de irrigação; maquinário de colheita e, finalmente, silos de secagem e armazenamento primário. Estes setores, em geral, formados por conglomerados multinacionais, em combinação com o comércio, os bancos e empresas transportadoras terrestres, fluviais e ferroviários, saindo das regiões produtoras diretamente para os portos de exportação, não tardaram a reagir no Congresso e no Governo para desqualificar os modelos agroecológicos e destruir as leis, regulamentos e normas que disciplinavam a fabricação, o transporte, o armazenamento e o uso irresponsável, indiscriminado e abusivo desses produtos que tanto prejudicam a saúde dos trabalhadores, consumidores e do ambiente (água, solos e seres vivos que habitam). Hoje, em um governo rendido e estes setores, circulam toneladas de produtos químicos sem rótulo e bula de aplicação — prescritos por pessoas sem a devida qualificação ou ética comercial —, proibidos nos países de origem de sua fabricação e vendidos aqui sem nenhum controle institucional, até pela internet.

Enquanto isso, os produtores que já perceberam essa armadilha e ciranda sem fim e que, quando ocorre qualquer variação climática ou instabilidade “dos mercados internacionais”, pagam sozinhos toda a conta. Mesmo os pequenos produtores e os agricultores familiares que optaram pela produção agroecológica, por motivos de filosofia, ideologia, fé (Fundação Mokiti Okada) ou mesmo por percepção da perversa realidade destrutiva ambiental (modificações climáticas), esses já estão sendo sufocados pelo complexo e caro sistema de certificação, processamento, legalização, transporte e comercialização no qual o lucro líquido é completamente insuficiente para sua manutenção e retorno do capital investido inicialmente. Isso não é apenas um problema aqui no Brasil, mas, sim, mundial. Trataremos dessas questões no próximo artigo. 

TRAÍDOS

Um brinde aos amigos de sempre do mundo da liberdade:

Rogério Weber

Paolo d’Aprile

Marcos da Costa

Edu Alves


O Amor é lindo, mas seus desdobramentos e implicações são jogos dos deuses, são a contingência e o acaso. Imagine uma associação de supremacia branca formada pela classe de trabalhadores rurais dos EUA; em seguida imagine assaltos a banco com armamento pesado e estratégias paramilitares; assassinatos de judeus, negros, gays e latinos no Harlem, San Francisco. Por fim, agentes infiltrados do FBI entre esses grupos e o envolvimento apaixonado dessa agente com um dos pilares dos ataques terroristas em solo estadunidense.

Todos esses ingredientes estão no filme Betrayed, de 1988, dirigido pelo grande mestre Κώστας Γαβράς ... ôpa, desculpem ... Costa-Gravas, com roteiro do não menos fabuloso Joe Eszterhas. Filme impactante e que, dando uma olhada nos dias de hoje, 34 anos depois, parece nos apresentar um retrato do que anda acontecendo no panorama político-econômico nas Américas. Ali estás o ovo da serpente e nas linhas abaixo vamos ver o porquê.

Como não se trata de uma obra unidimensional, há a exposição das ideias que permeiam o supremacismo branco. Um diálogo faz isso com maestria: perguntado sobre os exercícios de caça, ou seja, em uma floresta erma, pôr a correr um negro enquanto tentam abatê-lo como a uma presa, um típico red neck responde:

"O banco levou minha fazenda e o Vietnã, o meu filho. Bancos, policiais negros, judeus [no caso, associam a figura sionista ao capital especulativo – aparte meu] e asiáticos [China dominando o capitalismo ou os ascendentes Tigres Asiáticos, que são o alvo para multinacionais aumentarem suas taxas de lucro sob um regime semi-escravagista – aparte idem] estão roubando o nosso país".

Oras bolas, toda a origem da crítica que leva à xenofobia, ao racismo, à homofobia é uma crítica ao sistema financeiro, o que leva a uma conclusão simples: o que deve ser combatido não é o imigrante, o judeu, o negro, o gay ou qualquer outro segmento social sobre os quais uma classe frustrada se acha superior; o que deve ser combatido é o sistema de acumuladores e gestores da miséria mundial.

O fascismo pega essa realidade (que todos sabem no fundo ser a única causa da acumulação e miséria excessivas) e, com a ajuda do medo de violências aumentado pelas redes de TV com o jornalismo marrom de glamourização da morte e do desespero — do aumento da criminalidade exponencialmente sobre crimes contra o patrimônio — e o fanatismo religioso: que transformam a crítica ao sistema em algo diverso da ação contra ela, transformam a crítica ao essencial  em racismo, homofobia, sempre com o intuito de alienar o verdadeiro problema: todos terem o que comer e onde morar.



O que tem a ver a decadência do segmento mais branco e rural dos Estados Unidos com o neonazismo brasileiro que está no governo federal (e que vem sendo dourada em pílulas com declarações e desmentidos, aguardando haver a aceitação pela opinião pública do nazismo puro mesmo)?

A base popular eleitoral de Trump era e é a dos supremacistas brancos que identificam a decadência de sua classe com a imigração e ao abandono da religião protestante evangélica, sendo que o líder do Partido Nazista estadunidense, Rocky Suhayda, declarou publicamente apoio ao Republicano ainda em campanha.

O pensamento do supremacismo branco está na formulação de uma resposta de frustração pelo ódio. Explico: brancos trabalhadores estadunidenses se consideram vítimas de racismo praticado pelos negros; vítimas dos judeus (Nova “Judiork” e “Sicago”, por aí vai) e dos asiáticos que, ou lhes roubam o trabalho, ou lhes roubam a própria produção em si (montadoras, indústrias que saem dos EUA à procura de fontes de trabalho semi-escravo). 

Essa crítica subvertida ao problema de uma economia que tem bilionários do mundo - 2.153 ao todo - com mais riqueza do que 60% da população – 4,6 bilhões de pessoas (fonte: https://www.oxfam.org.br/noticias/bilionarios-do-mundo-tem-mais-riqueza-do-que-60-da-populacao-mundial/?gclid=CjwKCAiA6seQBhAfEiwAvPqu11j5AXLU1aXiUfY0WLpjrbf9ORvQFQgBbjyGjsSVpMa1bdkgr9Wk1RoCABoQAvD_BwE) – e, por sua vez, joga a culpa desta calamidade nas costas de imigrantes, negros, gays, esquerda etc etc.

Culmina a subversão da crítica com a frustração pessoal de uma classe em plena decadência com a ascensão do neonazismo nos EUA com a eleição de Trump para a presidência do país. Isso por que o projeto do republicano soube captar a frustração da classe média pauperizada e a decadência industrial do país. 

A propaganda ideológica de transformar um magnata em um dínamo da retomada econômica dos pobres é de um cinismo hediondo, mas, como dito acima, existe todo um aparato ideológico inculcado nas mentes desse segmento estadunidense, a começar com o arquétipo WASP, que, de fato, hoje representa apenas 43% da população, mas se apega a um passado de plena predominância (em 1976, por exemplo, 8 em cada 10 estadunidenses se identificavam como brancos protestantes). Hoje, ao que tudo indica, os WASP se tornaram minoria (fonte: https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/571977-estamos-no-fim-dos-eua-cristaos-brancos-o-que-isso-significa).

Nada além de frustração advém dessa mudança, pois a base de Trump e do Partido Republicano tenta catalisar essa margem que, nas próximas eleições já serão inócuas: pelo que tudo indica esse salto xenófobo do cristianismo branco foi um estertor de um segmento que perdeu seu protagonismo. Daí o tom de ódio provocativo e sarcástico em concomitância com o vazio de propostas econômico-políticas. Não há projetos, apenas o oportunismo fascista sobre o desespero de trabalhadores envoltos desde a infância em uma ideologia nacionalista de predestinação protestante que enlouquece frente à decadência das finanças.

Esse é o fundo dos acontecimentos do filme de Costa-Gravas, pois Gary Simmons é o líder de um grupo de supremacistas brancos, que associam a decadência de suas atividades com a ascensão de negros, judeus, latinos e gays. Condecorado na guerra do Vietnã, apresenta-se como um estereótipo do americano trabalhador do campo que resiste ao debacle de economia do país, mas passa a pertencer a uma organização com braços político, eclesiástico e com muito armamento. À época, a opinião pública sempre foi condescendente com esse movimento, entendendo como uma coisa de simplórios, sem entender que promoviam ataques terroristas e roubos a banco (este último para angariar fundos para uma vindoura revolução).

Acontece que os Estados Unidos sofrem mais ataques terroristas de sua extrema direita ("deadly right wing attacks") do que do jihadismo: a plataforma New America analisou todos os casos de terrorismo desde o 11 de setembro e constatou que, dentre os 251 assassinatos que se caracterizam desta maneira, a extrema direita matou 114 e o islamismo extremo, 104.

Uma agente do FBI, Catherine Weaver, a excelente Debra Winger, se infiltra na célula neonazista chefiada por Gary; ambos se apaixonam; ele, em um rompante de honestidade total para formar o relacionamento, mostra a ela a atividade de seu grupo, pondo um negro a correr como presa de um exercício de caça. Por mais que ame Gary, Catherine não consegue deixar de sentir uma extrema ojeriza a tudo o que lhe é revelado e, com isso, sua lealdade ao FBI prevalece sobre seus sentimentos passionais.

As investigações foram iniciadas após o assassinato de um radialista liberal judeu. A palavra ZOG é o enleio, pois fora pichada sobre o corpo do comunicador (e é a sigla do exercício de caça praticado pelos supremacistas). 

Em nosso salto temporal, encontramos muitos elementos de comunicação do que está sendo denunciado no filme de 1988 e o que andamos vivendo agora, mas em sua forma embrionária: o ovo da serpente!

Pois se foi o discurso de ódio inflamado pela frustração de uma classe média em extinção nas zonas rurais dos Estados Unidos que formou as células neonazistas e reavivou a Ku Klux Klan: foi esse sentimento de impotência que lançou laços de representação política e terrorista com ataques e assaltos a banco precisos e estratégicos. Tudo isso deságua na eleição de Trump, sendo que este encarna o estereótipo do protestantismo branco, o qual se encontra em declínio, estando cada vez mais nublado por cidadãos que não querem professar fé alguma ou compactuar com justificativas cada vez mais absurdas das acumulações e violência aos direitos de igualdade ou mesmo sobrevivência do povo. 

Estar cego sobre uma realidade que exige mudanças e acessos para equilíbrio da própria civilização, o trumpismo é um câncer que combate as instituições que garantem um mínimo de coesão social, frente ao anarcocapitalismo (ou capitalismo cocainômano) excessivamente desagregador e destruidor.

Aqui abaixo da linha do Equador, mais especificamente o Brasil, surge a figura repugnante de um incompetente que, para a lembrança da importância da filosofia, transmite a essência do que seja a BOÇALIDADE DO MAL. Fala-se aqui, por mais claro que seja, do Lepra, do Inominado, do Capitão dos Estúpidos, enfim, DELE! 

Uma caricatura que consegue ser pior do que Figueiredo falando, consegue por meio da frustração e da ideologia de dominação e servilismo popular se impor e vai cumprindo sua função de promover discursos de ódio, imitando ridiculamente um “patriotismo” associado a um desejo de sair vendendo tudo o que for estratégico ao país (que só não é posto em prática por total incompetência do minonstro Ipiranga) – não podemos esquecer do Acordo de Salvaguarda Tecnológico (AST), que, na prática, deu Alcântara para o Trump. Agora para qualquer cidadão ou autoridade brasileira ou estrangeira que queira acessar o local tático para lançamento de foguetes espaciais, tem que pedir permissão aos States!

Esquizofrenia pessoal que se espraia aos órgãos diretamente ligados à Administração Pública federal, transpõe para nossas plagas o vazio do discurso à moda Trump; traveste uma xenofobia e um fanatismo religioso (na base do “Deus acima de tudo, PORRA!!!”) totalmente estranhos à história do comportamento brasileiro e mesmo estranho aos interesses de qualquer pessoa decente no território nacional. 

O que o Inominado faz — e ele não é tão estúpido como quer aparentar ser — é replicar nos espaços dos aparelhos de Estado o ódio que insufla a classe média produtora de insumos estadunidense que, por sua vez, formou grupos neonazistas como forma de resistência à especulação desenfreada e à decadência de seu poder aquisitivo. Por outro lado, este mesmo desvio da crítica à origem real dos problemas de gestão da miséria engendrou o trumpismo e, como cópia caricata e atrasada, irrompeu no Brasil o neonazismo.

Voltando ao filme, ataques terroristas em escolas, em igrejas frequentadas por negros estão na pauta dos extremistas brasileiros para macaquear os estadunidenses: além dos praticados pelos militares nos estertores da ditadura, de 1978 a 1987 — classificados assim pelo próprio SNI —, temos o ataque ao Porta dos Fundos em 2019 e a ressurreição tão esperada do Integralismo. 

É dar tempo ao tempo para vermos o desenvolvimento do nazismo no Brasil —até o presente o que vemos é a tentativa ainda deflagrada de o presidente e seus asseclas declararem frases de efeito e lemas nazistas e aguardar a reação da opinião pública: esta, por enquanto, ainda não aceita esse tipo de ideologia.

E quanto aos assaltos a bancos promovidos por células nazistas formada por brancos cristãos protestantes para arrecadar fundos para uma vindoura revolução? Acontece aqui?

Como mostrado no filme são organizados e possuem armamentos pesados. Pergunta: o que aconteceu em Criciúma (Santa Catarina), Cametá, Belém do Pará, Ipixuna do Pará; São Domingos do Capim (Pará); interior de São Paulo:  Ourinhos; Botucatu; e Araraquara?

Talvez o que se chama amedrontadamente de “Novo Cangaço” seja um meio de angariar fundos para o nazismo auriverde. Os indícios batem: discurso de ódio, projeto político vazio, estímulo aberto ao ressurgimento do nazismo; apoio de grupos paramilitares (milícias); o uso da frustração popular e a artificialidade de um messias político; tudo encaminha para uma ligação entre o que se propaga ideologicamente pelo comando do país e essa nova prática de assaltos — isso é uma especulação, mas encontra um esteio no filme do Costa-Gravas. Pensemos e pensemos rápido antes que seja tarde!

A realidade muitas vezes imita a ficção!

Catherine é descoberta como agente infiltrada por Gary, o amor se expressa até o último encontro entre os dois. Quando Gary é morto pela amada, a expressão do amor está nos olhos marejados de lágrimas dos dois envolvidos. Contudo, antes desse desfecho (não aguentei e contei o final), a filha do líder da extrema direita entende por meio de Catherine que podemos nos expressar livremente, mas não podemos maltratar pessoas (antes a menina expusera toda a lavagem cerebral que vem desde o berço nesses meios, quando diz antes de dormir “negros e judeus devem morrer”).

 Assim, depois de tudo o que passou, a agente volta para a localidade para reencontrar a filha de seu amado. A criança defende Catherine frente a uma multidão açodada de ódio, sabem que fora ela a responsável pela morte de Gary. A ideia magistral é: aquela turba está dominada pelo pensamento nazista da extrema direta, está seduzida pelo ódio, mas aquela linda garota já está com a semente da liberdade e vai germinar.

O intuito deste texto é lançar mais uma semente e que germine em boa terra!


GUILHERME MAIA