sábado, 1 de maio de 2021

A sucessão de erros do governo no combate à Covid

Por Sylvio Costa Junior


Políticas de saúde para combate à pandemia deveriam basear-se em estratégias intersetoriais articuladas com o conjunto da sociedade civil e envolvendo as três esferas de governo. Assim, caberia ao Ministério da Saúde o papel de ora arquiteto de um grande plano nacional ora de provedor de condições objetivas de combate, como insumos, compras internacionais, recursos humanos etc.  

Como diz o dito popular, “quando algo começa errado, tem grande chance de terminar errado” ou, como diria o Barão de Itararé, “de onde menos se espera, dali mesmo não sairá nada”. Temos de um lado um governo federal com ministros de Estado divididos em dois grupos específicos: os incapazes (Ernesto Araújo, Damares, Pazuello/Queiroga e Milton Ribeiro) e os capazes de quaisquer coisas (Ricardo Sales, Sergio Camargo e Paulo Guedes, por exemplo). Do outro lado, setores pedindo lockdown já.



Vamos analisar alguns pontos:

1 - O Brasil ainda não experimentou um verdadeiro lockdown, exceção feita a um ou outro município – como Araraquara/SP, administrado pelo competente prefeito Edinho, do PT (a imprensa coorporativa esconde a filiação do prefeito, mas nós aqui não!). Repetindo, do PT. A medida conhecida como lockdown foi realizada em alguns poucos países, como Inglaterra, partes da China (em particular em megacidades, como Wuhan –  que tem mais de 11 milhões de habitantes), Austrália e Nova Zelândia, entre outros. Lockdown é um forte fechamento do território com proibição expressa de circulação de pessoas. Isso ainda não ocorreu aqui.

2 - Lockdown é um remédio amargo, muito amargo, que é dado em conjunto com outas políticas sociais e econômicas. Não podemos falar para a classe trabalhadora em lockdown de forma unilateral: “Fique em casa trancado com um balde de álcool gel e espere a pandemia passar”. Lockdown envolve um robusto apoio financeiro aos segmentos mais fragilizados do nosso tecido social. Envolve custear parte da perda do pequeno comercio com financiamento e garantir segurança alimentar às populações mais frágeis. Resumindo: é uma ação cara que engloba outras tantas, somadas à vacinação em massa e em grande velocidade.    

3 - A classe trabalhadora espremida em ônibus, metrôs e trens das grandes cidades está entregue à própria sorte, vendo sua renda e emprego desaparecerem. O “Fique em casa” é factível para parte da classe média, mas isto é real para o grosso da população? O povo pode ficar em casa? Os governos direitistas e genocidas, como o do estado de São Paulo, optaram pela ação de menor custo. Primeiro foi o “Fique em casa”, agora é o “Use máscara”.  No entanto, o governo não transferiu renda para os mais pobres, não financiou o pequeno comerciante, não tem vacinação em massa. Não tem nada, apenas o “Fique em casa” e o “Use máscara””. Ou seja, gastaram muito pouco e colocaram nas costas da população a responsabilidade de combater a pandemia. O governo do Estado de São Paulo, chamado por algumas pessoas completamente desorientadas de “científico” e “amigo da ciência”, em plena crise sanitária suspendeu a gratuidade para idosos de 60 a 65 anos no transporte público. O ônibus continua rodando normalmente e lotado, mas a gratuidade para quem mais precisa acabou. Entenderam? O governo paulista reproduz a política do governo federal, mas de terno bem cortado e gumex no cabelo.

4 - Durante a crise, a indústria não parou, o transporte público. também não. Já os mais pobres eram empurrados para a covidário das estações da Luz ou da Sé, na capital paulista, ou ainda da Central do Brasil, no Rio de Janeiro.  Porém como a Covid19 é uma doença respiratória e de fácil transmissão, chegou no andar de cima de nossa desumana pirâmide social. Começaram as mortes por Covid entre famosos e endinheirados. Pra isso a direita científica, amiga da ciência, teve uma solução: fazer compras de vacinas pelo setor privado! Ou seja, ao invés de fortalecer uma vacinação com fila única pelo SUS, criaram uma outra porta de entrada, sem qualquer critério que não seja a renda. Para isso, os partidos tradicionais da burguesia (o PSDB de Dória/Eduardo Leite/Fernando Henrique e o DEM de Mandetta/ACM Neto) aprovaram, no início de abril, no Congresso essa loucura – justamente no momento em que a disponibilidade de vacinas no mundo é escassa. Quero dizer: como não há no momento quantidades grandes quantidades de imunizantes disponíveis no mundo, o setor privado não complementará a vacinação do SUS, mas vai concorrer com o SUS na compra de vacinas no mercado global de produção de insumos. No mundo real, as coisas são assim.

Por suas características de transmissão, a Covid-19 atingiu o mundo e em particular o Brasil, nas cidades mais industrializadas e com grandes contingentes populacionais. Diferente do ebola ou da malária, que acometem mais fortemente populações rurais e distantes dos grandes centros urbanos, o novo coronavírus tem maior prevalência em centros industriais das economias capitalistas. Foi assim na Itália, região de Bergamo/Milão como epicentro; na Espanha; em Madri e Barcelona; Inglaterra; EUA e Brasil.

Quero assim apontar que o governo Bolsonaro é responsável pela tragédia brasileira, mas não o único. A direita tradicional reproduz a mesma política genocida de saúde, mantem tudo aberto, não ajuda os mais frágeis, empurra a classe trabalhadora para morrer no transporte público e combate ao vírus com discurso o vazio do “Fique em casa”, do “Use máscara” ou, pior ainda: “se a doença está sem controle é porque o povo não se cuida”. 

O primeiro de maio, desigualdades e a luta das trabalhadoras e trabalhadores

Por Edson Diniz*

Em mais um primeiro de maio, talvez o mais difícil dos últimos anos, cabe nos perguntar novamente se essa data deve ser comemorada ou não. O que os trabalhadores do mundo, em especial as brasileiras e brasileiros, teriam para celebrar diante do que vivem hoje?


Para responder a essa pergunta é preciso, em primeiro lugar, olhar para as transformações pelas quais passou o mundo do trabalho nos últimos anos. Em seguida, precisamos discutir como tais transformações afetaram a vida daquelas e daqueles que verdadeiramente produzem a riqueza do país com seu trabalho diário.

Isso mesmo, são as trabalhadoras e trabalhadores que produzem as riquezas!  É preciso lembrarmos desse fato sobretudo no Dia do Trabalho, pois, apesar de produzirem toda a riqueza do país, as trabalhadoras e trabalhadoras não se apropriam dela. Pelo contrário, são aqueles que exploram o seu trabalho, os donos do capital, que acabam por concentrar em suas mãos a riqueza produzida. Tal fato só aumenta as desigualdades entre capital e trabalho e condena milhões de pessoas a uma vida de dificuldades.

Vejamos: durante a atual crise provocada pela pandemia da COVID-19, houve um aumento da riqueza acumulada pelos bilionários no mundo e no Brasil. Segundo pesquisa realizada pelo Banco Suíço UBS, o aumento da riqueza dos bilionários em 2020 ultrapassou os US$ 10 trilhões. E todo esse montante foi apropriado por apenas 2.189 pessoas,. Se levarmos em consideração que o mundo possui 7,8 bilhões de pessoas, podemos ver claramente o nível de concentração de renda que esses dados denunciam.

 Na outra ponta, a pobreza aumentou em todos os países de forma alarmante. Dados do Banco Mundial estimam que neste ano, chegaremos a 150 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, ou seja, vivendo com menos de US$ 1,9 por dia,. Só no Brasil, temos 13 milhões de pessoas nessa situação. É só andar pelas ruas das cidades brasileiras para ver os efeitos concretos desse aumento das desigualdades. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, a cada dia aumenta o número de trabalhadoras e trabalhadores sem emprego obrigadas/os a morar nas ruas com suas famílias. O Censo da população em situação de rua realizado em 2020 pela prefeitura carioca, aponta um total de 7.272 pessoas em situação de rua, o que pode ter aumentado com o agravamento da pandemia1. A estimativa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) é, pGFeRa PNC sS, por exemplo, fala em pelo menos 222 mil pessoas em situação de rua no país. A maioria dessas pessoas  negra, pobre moradora de periferias e favelas e que, para sobreviver, passa a morar nas ruas do Centro e de bairros nobres para conseguir alguma forma de sustento. A fome, o desemprego e a falta de moradia, portanto, têm um corte racial.

Porém, esse quadro sombrio para as trabalhadoras e trabalhadores não se deve apenas à pandemia. Esta, agravada pela omissão e atitude irresponsável do governo federal, apenas escancarou as desigualdades e injustiças históricas contra aqueles que produzem a riqueza do país.

Na verdade, há um projeto de “modernização” em curso que, entre outras ações, atacou os direitos das trabalhadoras e trabalhadores e os substituiu pela insegurança e precariedade. Começando pelas “novas leis trabalhistas” que retiraram direitos históricos e que, somadas à “reforma da previdência”, deixaram a classe trabalhadora ainda mais desamparada.   

Esse projeto, defendido pelas elites econômicas como a salvação econômica do Brasil, obedece aos preceitos do neoliberalismo. Este, por sua vez, com sua lógica da concorrência de mercado transportada para todos os espaços da vida, recomenda a destruição do Estado de bem-estar social, a retirada de toda rede de proteção ao trabalho e o completo domínio do capital sobre o trabalho vivo. Nesse modelo de funcionamento social, econômico e cultural, o que vale é o lucro e as pessoas são apenas meios de se aumentar a acumulação de capital. 

Um dos resultados da política neoliberal é o processo de “uberização do trabalho”: As pessoas trabalham cada vez mais, recebem cada vez menos e não controlam mais suas vidas; tudo está a serviço do lucro das grandes empresas. E mesmo aqueles que trabalham a partir das demandas de um “app”, e que, portanto, têm em seu cotidiano a sensação de maior autonomia por não ter a figura de um “chefe”, se enganam. Essas trabalhadoras e trabalhadores são totalmente dependentes do poder de um aplicativo sobre o qual não têm qualquer controle. Essas pessoas não têm direitos trabalhistas, pois nem são reconhecidas como empregadas das companhias que estão por trás dos serviços que prestam, para onde vai o lucro principal. Tal situação só é possível porque temos no Brasil de hoje 14 milhões de desempregados e mais de 40% de nossa população no trabalho informal. 

Ainda temos os “terceirizados”, cujo trabalho é explorado ao extremo por organizações que prestam serviços a outras organizações que, por sua vez, cometem todo tipo de abusos contra as trabalhadoras e trabalhadores. Um caso recorrente é o das chamadas O.S. (Organizações Sociais) na área da saúde, no Rio de Janeiro, que oferecem salários baixíssimos, atrasam os pagamentos, e que, em muitos casos simplesmente desaparecem sem pagar seus empregados.

A saída oferecida pelo ideário neoliberal? Seja um empreendedor! Conceito que virou moda entre a classe média – outra vítima da crise – que realmente acredita que a solução dos problemas do mundo do trabalho passa apenas pelo “esforço individual”. Mas como imaginar alguém que vive com menos de R$ 10,00 por dia ter condições de virar um empreendedor? A solução para a precarização do trabalho, obviamente, não pode ser individual, mas sim coletiva. 

Diante desse quadro, e para não perdermos a esperança, precisamos manter e aprofundar a luta por direitos e trabalho digno. Para tanto, devemos fazer uma crítica à sociedade capitalista, reconstruir a união dos trabalhadores em torno de programas políticos de classe, e caminhar juntos a partir da ideia do “Comum”:. Ideia baseada no reconhecimento de que a humanidade só tem futuro se for capaz de superar as marcas do capitalismo e construir outra sociedade firmada na solidariedade, cooperação e humanização do trabalho

Por fim – e  embora isso não seja uma novidade, pois um velho pensador alemão já o dizia há mais de 170 anos – sempre é bom reafirmar: “trabalhadores de todo o mundo, uni-vos”! 1 3 4 5 6 DSEsSESPH FDH


Referências:

https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/10/07/riqueza-dos-bilionarios-cresce-durante-a-pandemia-e-atinge-marca-recorde-de-us-102-trilhoes.ghtml   (Acessado em 27/04/21)

2 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54470607. (acessado em 27/04021)

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/12/31/censo-mostra-que-rio-tem-mais-de-7-mil-pessoas-em-situacao-de-rua.ghtml. (acessado em 27/04/21)

https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&id=35811 (acessado em 27/04/21)

DARDOT, Pierre; LAVAL. Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo,2017.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto do Partido Comunista. Porto Alegre: L&P,2006.


Sobre o autor:

*Edson Diniz, 50 anos, morou na Favela da Maré por 40 anos, historiador, outor em ociologia da ducação pela PUC-Rio. Cofundador da Redes de Desenvolvimento da Maré, criador do Núcleo de Memória e Identidade dos Moradores da Maré (NUMIM). Desenvolve pesquisas nas áreas de sociologia da educação, segurança pública, história das favelas e direitos humanos.


Termos para Glossário: Capital, donos do capital, direitos históricos, Reforma da Previdência, Neoliberalismo, Estado de bem-estar social, domínio do Capital sobre o trabalho vivo, trabalho vivo, app, trabalho informal, terceirizados, ideário, sociedade capitalista

A Reforma Trabalhista é um crime cometido pelo neoliberalismo

Wadih Damous

A "Reforma Trabalhista", com as inúmeras alterações na legislação reguladora do trabalho e sua contratação subordinada, já está entre nós há tempos. A Lei 13.467/17, contendo mais de cem "novidades" nas regras celetistas, foi promulgada em julho de 2017 e passou a viger em 10 de novembro de 2017. E desde então, a redução, a supressão e a modificação de direitos promovidos agravaram, enormemente, a situação já precária da classe trabalhadora e de suas entidades representativas - o que se sobrelevou ainda mais com a pandemia da covid-19.


Propagandeada como a solução para os vários males que se abatiam sobre o país de então, notadamente como forma de combater a crise econômica e incrementar os níveis de empregabilidade, o certo é que as promessas não se cumpriram. Houve demonstrações evidentes de que, se o desemprego e a estagnação econômica já galopavam antes e durante os debates sobre as reformas, assim prosseguiram mesmo depois de aprovadas. 

A prevalência do negociado sobre o legislado, a possibilidade de rescisão contratual por mútuo consentimento, a negociação direta sobre as férias, a instituição de banco de horas por acordo individual, o trabalho intermitente, as obrigações processuais impostas ao reclamante, antes gratuitas - a liquidação prévia dos valores postulados e o pagamento de honorários, entre as mais preocupantes - em nada contribuíram para "modernizar" as relações de trabalho e, facilitada a dispensa pela individualização do relacionamento e consequente afastamento das entidades sindicais das pactuações - um capítulo à parte na malsinada Reforma -, somente deterioraram o quadro de desemprego. Isso deixou ao desamparo milhões de trabalhadoras e trabalhadores, corroendo as atividades econômicas do país. 

Atividades econômicas que, curiosamente e para pôr uma pá de cal nas mentiras que embalaram a Reforma, iam de vento em popa ao tempo em que as políticas públicas investiram no pleno emprego, sob os auspícios da antiga e eficaz CLT, desfigurada a partir de 2016.

Se a esquerda for vitoriosa nas eleições de 2022, deverá organizar e propor um referendo revogatório dessa e de outras “reformas” que só retiraram direitos, como a da Previdência.


*Advogado trabalhista. Foi presidente da OAB no Rio de Janeiro por dois mandatos, presidiu a Comissão da Verdade do Rio e a Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB. 

sexta-feira, 30 de abril de 2021

A HISTÓRIA DO 1° DE MAIO

Ernesto Germano Parés

 

O século XIX marcou a grande arrancada do Sistema Capitalista e o grau de exploração sobre os trabalhadores atingia uma violência inigualável. A “Revolução Industrial”, o surgimento das primeiras máquinas e o aparecimento das fábricas levavam milhões de seres humanos a uma situação de extrema submissão ao Capital.

 

Era comum o trabalho de crianças, mulheres grávidas e trabalhadores em jornadas que duravam até 18 horas diárias, sem interrupção!

 


Os primeiros movimentos pela redução da jornada de trabalho começaram na Inglaterra, ainda na década de 1820, e foram se espalhando pela Europa. Posteriormente chegaram aos EUA e Austrália.

 Em 1886, em Chicago, os operários estadunidenses, que já haviam acumulado experiência com várias mobilizações pela redução da jornada para 8 horas diárias, resolveram que estava na hora de começar as grandes ações. Em 1° de maio de 1886 teve início a Greve Geral que contou com a adesão de mais de um milhão de trabalhadores em todo o território estadunidense. Pensem nisto: um milhão de trabalhadores parados, em pleno século XIX!

Isso incomodou muito o sistema e os patrões resolveram usar todos os artifícios para impedir que a Greve se ampliasse ainda mais. A repressão, já no primeiro dia, foi violenta e não poupou ninguém. Centenas de trabalhadores foram espancados e presos, mas o movimento ganhava mais força. No dia dois, uma grande passeata tomou conta das ruas de Chicago e os trabalhadores carregavam cartazes e faixas reivindicando a jornada de 8 horas.

A polícia não dormiu. A repressão se tornou ainda mais violenta e, no dia quatro, quando estava marcada uma grande assembleia na Praça Hay Market, uma bomba explodiu no meio da multidão matando dezenas de trabalhadores e ferindo mais de 200 pessoas, inclusive alguns policiais. 

Oito líderes do movimento foram presos, acusados de terem provocado o tumulto, e julgados: Alberto Parson, tipógrafo (39 anos); August Spies, tipógrafo (32 anos); Adolf Fischer, tipógrafo (31 anos); George Engels, tipógrafo (51 anos); Ludwig Lingg, carpinteiro (23 anos); Michael Schwab, encadernador (34 anos); Samuel Fielden, operário têxtil (39 anos); e Oscar Neeb, funileiro (35). Os quatro primeiros foram condenados à morte e enforcados no dia 11 de novembro de 1887. Os demais foram condenados à prisão perpétua. Ludwig Lingg suicidou-se na cadeia.

A luta dos trabalhadores estadunidenses, no entanto, não parou aí. Centenas de outros movimentos ocorreram e, em 1890, o Congresso dos EUA votou a lei que estabelecia a jornada de 8 horas diárias.

Em 1893, a Justiça dos EUA reabriu o processo contra os oito operários e ficou comprovado que todas as provas apresentadas durante o julgamento haviam sido forjadas e que a bomba havia sido colocada pela própria polícia para incriminar os manifestantes. Foi reconhecida a inocência dos condenados e os três operários que ainda estavam na cadeia foram libertados.

Nos EUA, até hoje, não se comemora o 1° de Maio. Canadá, Austrália e EUA são os únicos países que não comemoram a data.

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As comemorações do 1° de Maio 

Em 1889, reunidos em Londres, representantes de centenas de entidades de trabalhadores aprovaram uma resolução: que em todos os países, em todas as cidades, os trabalhadores lutassem pela redução da jornada de trabalho para 8 horas diárias e que se consagrasse o 1° de maio de cada ano a esta luta (em memória do ocorrido no 1° de maio de 1886, em Chicago). Veja como foram as comemorações no Brasil: 

1894 - Em Santos, no 1° de Maio, o Centro Socialista realiza palestra e debate. Alguns autores consideram a primeira comemoração da data, no Brasil.

1900 - Em 25/09 é fundado em São José do Rio Pardo (SP) o Clube Democrático Socialista Os Filhos do Trabalho. O manifesto do Clube para o 1° de maio de1901 foi escrito pelo socialista Euclides da Cunha que dizia ser necessária “a reabilitação do proletariado, pela exata distribuição da justiça, cuja fórmula suprema consiste em dar a cada um o que cada um merece, abolindo-se os privilégios quer de nascimento, quer de fortuna, quer da força.”

1906 - O 1° de maio foi comemorado em várias cidades. Em São Paulo, o Sindicato dos Gráficos uniu-se a outros sindicatos para realizar apresentações teatrais, em vários teatros da cidade. No Rio de Janeiro houve comemoração em praça pública. Em Santos houve comemoração, mesmo com uma violenta repressão enviada pelo governo (navios de guerra ancoraram no porto para intimidar). Em Campinas, surgiu o primeiro número do jornal A Voz Operária.

1907 - O 1° de maio foi comemorado em todas as grandes cidades brasileiras e marca o início da luta pela jornada de 8 horas em nosso país.

1909 - O número 10 do jornal A Voz do Trabalhador (1° de maio de 1909) publicava, pela primeira vez no Brasil, a letra do hino A Internacional, composto por Pierre Degeyter e Eugène Pottier, em 1871, e que já virara o hino das comemorações do 1° de maio na Europa (junto com a bandeira vermelha usada pelos operários de Paris).

1929 - Em 1° de Maio é criada a Confederação Geral dos Trabalhadores que, em março do ano seguinte, promove um Congresso de Agricultores e inicia a fundação de Sindicatos Rurais.

* É a partir dos primeiros anos da década de 40 que o governo passa a assumir as comemorações do 1° de maio e a transformar o dia de luta (pela jornada de 8 horas diárias de trabalho e de outras resistências para os trabalhadores) em festas com futebol de graça, shows com artistas e bailes para desviar o sentido das comemorações. O “Dia Internacional de Luta da Classe Trabalhadora” passou a ser usado para iludir o próprio trabalhador.

1968 – Já na ditadura militar, no 1º de maio, estudantes e trabalhadores se unem para organizar o Dia do Trabalhador. O governador de São Paulo, Abreu Sodré, alimentava o sonho de suceder Costa e Silva e resolve se promover, autorizando o ato e mandando construir um palanque. Ao chegar à praça com sua comitiva, é recebido com pedradas e palavras de ordem contra a ditadura, fugindo do local. Os manifestantes queimam o palanque oficial e saem em passeata pelas ruas da capital.

1981 - A bomba do Riocentro - A comemoração do 1° de maio, organizada pelo Centro Brasil Democrático (Cebrade), seria realizada no pavilhão do Riocentro. Cerca de 20.000 pessoas já se encontravam no local e aplaudiam um show da Elba Ramalho quando todo o local foi sacudido por uma explosão. No estacionamento do pavilhão, perto da casa de força do Riocentro, uma bomba explodiu dentro de um carro Puma com dois oficiais do exército. O caso até hoje não tem explicação, e os ministros militares anunciaram na época que os militares é que teriam sido alvos de um atentado.


Um 1° de Maio marcante Quando os metalúrgicos do ABC (São Paulo) entram em greve, em abril de 1980, o movimento já tinha algo de diferente, antes mesmo de começar. O adesivo que convocava para a Assembleia era claro: "Chegou a hora! Vamos matar nossa sede." Por seu lado, o governo anunciava sua determinação de reprimir e lembrava que o sindicato já sofrera intervenção em 1979. A assembleia do dia 30 de março, um domingo, votou pela greve. O movimento começou, e todos sabiam que seria longo e difícil. Um "Comitê de Solidariedade" foi criado e contava com setores da Igreja Católica, associações de moradores e setores da esquerda. No dia 17 de abril, às 18:30 h, o Ministro assina o decreto, determinando a intervenção no Sindicato e afastando a diretoria. No dia seguinte, helicópteros do exército sobrevoavam São Bernardo, enquanto tropas da Polícia Militar, com carros "brucutus" e policiais da temida ROTA (polícia do estado de São Paulo) cercavam o sindicato. Do outro lado, o movimento ia crescendo e conquistando todo o descontentamento popular contra o regime. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Comissão de Justiça e Paz e centenas de outras entidades e organizações passaram a apoiar e mostrar adesão a uma greve iniciada pelos “peões” do ABC. O 1° de Maio foi comemorado em São Bernardo (eu estive lá) por lideranças de todo o país, mesmo com a sede do sindicato fechada e sob intervenção. A greve continuava!


Uma bomba no Memorial No dia 1° de maio de 1989, em Volta Redonda (Rio de Janeiro), os metalúrgicos da Companhia Siderúrgica Nacional - CSN - inauguraram o Memorial projetado por Oscar Niemeyer em homenagem aos três metalúrgicos assassinados pelo exército durante a Greve de Novembro (09/11/1988). A Central Única dos Trabalhadores (CUT) havia indicado a cidade de Volta Redonda como a sede da comemoração oficial do 1° de maio, e caravanas de trabalhadores chegavam dos estados próximos para a homenagem. A inauguração do memorial foi presenciada por cerca de 20 mil trabalhadores que lotaram a praça e as ruas próximas. Na madrugada seguinte, dia 02, por volta das três horas, Volta Redonda acordou com o barulho de uma explosão. Na praça, centenas de pessoas atraídas pelo barulho olhavam para o memorial tombado por duas bombas de alto poder explosivo!


Termos para Glossário: Sistema Capitalista, Revolução Industrial, Capital, socialista, proletariado, ditadura

A prevenção do genocídio e a colonialidade da justiça

Julio José Araujo Junior


Em 2020, a luta dos povos indígenas no Brasil ganhou repercussão nacional e internacional. O descaso do governo federal e as mobilizações em defesa da pauta socioambiental e da Amazônia realçaram a importância de concretizar a Constituição de 1988 e assegurar a demarcação dos territórios indígenas, inclusive mediante a expulsão de invasores e a proibição de práticas depredatórias, como desmatamento, mineração e garimpo.



Diante da pandemia de Covid-19, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi provocado a garantir medidas emergenciais em favor dos povos indígenas na Arguição de Descumprimento Fundamental (ADPF) 709. Após medida cautelar concedida pelo Min. Roberto Barroso, os ministros determinaram a instalação de barreiras sanitárias nas terras indígenas e a proteção dos indígenas em isolamento voluntário ou de recente contato. A medida foi bastante aplaudida e tratada como um autêntico cumprimento do papel da Suprema Corte em defesa de minorias.

Desde então, o governo já apresentou quatro planos para efetivar as medidas, porém estes foram rejeitados, por serem considerados insatisfatórios. A recalcitrância do Poder Executivo, que não aceita a efetivação dos direitos indígenas na forma prevista na Constituição e prefere um modelo que os trate como pessoas inferiores a serem integradas à “comunhão nacional”, ainda pesa. Na prática, os indígenas ganharam, mas ainda não levaram.

Há, contudo, um outro julgamento importante que está por vir. De nada adiantará todo o esforço de mobilização e conscientização em favor dos direitos indígenas se o STF decidir pela aplicação do chamado “marco temporal” no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, ainda sem data. A tese em questão foi aventada isoladamente no julgamento do caso Raposa Serra do Sol e estabelece que o direito ao território indígena está condicionado à presença efetiva na área em 5 de outubro de 1988. 

O processo aborda o direito do povo Xokleng (SC) a seu território e a constitucionalidade do Parecer 01/2017, da Advocacia-Geral da União, que pretendeu estender a aplicação da tese do marco temporal para todos os casos, o que acarretou na paralisação pelo governo federal de todas as demarcações e a não continuidade de processos.

Como já afirmei em obra específica, o marco temporal não se sustenta por diversos fundamentos. Cabe aqui destacar alguns. Em primeiro lugar, ele denota uma perspectiva assimilacionista do STF acerca das trajetórias de diversos povos indígenas, que foram despojados de suas terras e não podiam estar nelas em 5 de outubro de 1988. Tratados como incapazes e submetidos a processos de expulsões e violências reais e simbólicas, muitos indígenas não podiam estar em seus territórios nessa data. Afinal, somente após a Constituição de 1988 esses grupos puderam afirmar efetivamente a sua identidade e a sua autonomia. 

Existe, em verdade, uma segurança jurídica seletiva, que está preocupada com supostos “proprietários”, naturalizando a opressão sobre os grupos étnicos. A segurança jurídica não contempla os índios, pois estes devem assistir às definições que os brancos fazem em favor da “verdade registral” das propriedades, cuja naturalização provoca o apagamento da subalternização permanente. 

O marco temporal promove, por via indireta, um controle da identidade indígena, já que pressupõe que apenas são merecedores da proteção dos direitos territoriais indígenas os grupos que estavam em suas terras em 5 de outubro de 1988. Há, é verdade, a exceção do chamado “renitente esbulho”, porém a ideia limita, na prática, a garantia de direitos territoriais a “grupos indígenas do passado”. Além disso, a limitação no tempo não esconde uma proteção privilegiada à propriedade privada, já que tem o assumido propósito de estabilizar os conflitos em favor dos atuais proprietários. 


Essa história não começou em 1988

Esta concepção está atrelada a análises estigmatizantes que favorecem a subalternização permanente dos índios, enviesando toda a análise da legislação e de princípios constitucionais. Ainda que toda essa crítica não fosse possível, pode-se dizer que o verdadeiro marco temporal residiria na Constituição de 1934, que foi a primeira a abordar os direitos dos indígenas às suas terras. Como os próprios indígenas afirmam, essa história não começou em 1988.

Negar a territorialidade indígena é um fator de risco para atrocidades massivas e até mesmo de genocídios. Afinal, sem os espaços onde podem desenvolver seus modos de vida, costumes e tradições, os povos indígenas se tornam vulneráveis a ameaças e deixam de exercer livremente sua identidade, o que afeta a sua sobrevivência física e cultural. Assim, a decisão de “não demarcar um centímetro de terra”, propalada pela Presidência da República, associada ao marco temporal, representa, por via direta ou indireta, a morte total ou parcial de um povo.

Em suma, o marco temporal é uma tese que escancara as colonialidades ainda tão presentes no sistema de justiça. Como afirma Rita Segato, em abordagem sobre o sistema penal que aqui se mostra plenamente aplicável, descolonizar a justiça implica refazer o cálculo das dívidas, com a consequente redistribuição das posições entre devedores e credores. Trata-se não apenas de uma meta democrática, mas de um dever de prevenção de genocídios.

Isso significa, em outras palavras, reconhecer que os direitos territoriais indígenas não são uma medida apenas de reconhecimento, mas também de redistribuição, em oposição à concentração fundiária e a uma cidadania de segunda classe que foi e continua sendo imposta a esses povos. É necessário pensar nos povos indígenas com os olhos para o presente e para o futuro, em atenção às suas mobilizações e reivindicações. O STF tem uma tarefa histórica a cumprir: mostrar que a descolonização da justiça passa por concretizar as terras indígenas, sem essencialismos e sem limitações inconstitucionais.


Você sabia que indígena também é cidadão brasileiro?

Cristiane Santos e Mani Ceiba

Oiê... Vamos acender o pavio de mais algumas perguntas que parecem óbvias, mas na prática não são bem assim. 

Os indígenas representam 5% da população mundial, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Os povos indígenas compõem um terço da população mais pobre do planeta e estão expostos a sérios problemas – doenças, discriminação, perseguição, racismo, baixa expectativa de vida, ameaças territoriais e pouca garantia de direitos humanos. 

No Censo Demográfico de 2010, foi verificado que a população indígena no Brasil era de 896 mil pessoas – 572 mil (ou 63,8 %) viviam na área rural e 517 mil (57,5 %) moravam em Terras Indígenas oficialmente reconhecidas.

O Censo que estava programado para 2020 foi transferido para 2021 por causa da pandemia e acaba de ser adiado mais uma vez. O montante de R$2 bilhões previsto para a pesquisa sofreu corte de R$1,76 bilhão, cerca de 90% do total. 



Caso o levantamento censitário levasse em consideração perguntas para avaliar o nível de descontentamento, raiva, falta de representatividade e indignação, os povos indígenas teriam muito o que dizer. 

No primeiro Censo realizado pelo IBGE, em 1940, e somente neste único, para saber quantos estrangeiros viviam no Brasil, foi adicionada a pergunta: Você fala português? Ela possibilitou, meio sem intenção, a descoberta de que 3,6% dos habitantes falavam algum idioma nativo, como o guarani. 

Em nenhum outro Censo houve mais informações sobre os povos indígenas. Em 2000, foi introduzida a pergunta sobre cor ou raça. Mas foi preciso esperar o Censo de 2010 para saber da existência no Brasil de 274 línguas indígenas autodeclaradas, de 896.917 indígenas e de 305 etnias. Os dados de certas áreas, quando existem, são incompletos e insuficientes. 

Barreiras no mercado de trabalho – Morar nas cidades por exemplo, sem ocultar a ancestralidade e as próprias referências, é ainda uma luta para mais de 315 mil indígenas, segundo dados do mesmo Censo de 2010. 

Em busca de melhores condições de vida, muitos indígenas e descendentes vivem em centros urbanos em situação de pobreza. Têm dificuldades de conseguir emprego e a principal fonte de renda é o artesanato. Os que buscam emprego muitas vezes não declaram ser indígenas pela dificuldade e preconceito. A visão distorcida ensinada nos livros de história –  nos quais o indígena foi substituído pela mão de obra do povo negro por ser preguiçoso, insolente, selvagem e incapaz –  perpetua-se até hoje na visão do não indígena.

Você conhece alguém que tenha repetido essa versão preconceituosa? Nós conhecemos...

Apesar de a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 7, reiterar a igualdade de direitos entre todos os trabalhadores urbanos, rurais e outros, com a proibição de diferença de salários, de exercícios de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor, ou estado civil, o Instituto Ethos nos alerta que a população indígena não conta com representantes indígenas nos quadros de conselho administrativo e executivo dentro das 500 maiores empresas  do Brasil.

A remuneração de trabalhadores indígenas é em média inferior a R$ 937. Ocupam funções de pedreiros, boias-frias e empregos domésticos.  

Uma outra realidade são as vagas para os jovens nos programas de “jovem aprendiz”. Eles só conseguem ocupar vagas se esconderem a sua identidade indígena; o que mais uma vez comprova o preconceito. Passam então a ser pardos, nordestinos, brasileiros, pois há uma parcela da população que acredita que indígenas não são brasileiros.

Um dos pedidos, quando se consegue o emprego, é não usar seus adornos e pinturas corporais. Parece que a representação de identidade de um povo só pode ser usada na cidade em um feriado chamado carnaval. 

Efeitos da pandemia – Segundo um estudo da Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV Social), utilizando os dados do IBGE, os indígenas foram os mais afetados pelos impactos da pandemia no mercado de trabalho.

“Os indígenas, de todos os grupos, são os que mais perderam. Perderam 28,6% de renda, o desemprego aumentou mais do que o dos outros grupos, a participação no mercado de trabalho caiu bem mais do que dos outros grupos, e a jornada caiu tanto quanto a de pardos, por exemplo”, afirma Marcelo Neri, diretor do FGV Social.

Um dos motivos pode ser exatamente a informalidade. E as consequências disso ainda são incertas.

Enquanto temos o aumento de 52,5% no ano de 2016 de indígenas ingressando nas universidades, entendemos que a educação é o meio principal de acesso a melhores cargos. Mas esse quadro não se repete de maneira proporcional quando falamos de mercado de trabalho.

Reescrever a história – A solução para combater a discriminação e o racismo com a população indígena é reescrever a história do Brasil, com a aplicação da Lei n 11.645/08, que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática referente à história e à cultura indígena. Os conteúdos devem ser apresentados já na Educação Básica, indo até a universidade, incorporando datas comemorativas datas comemorativas indígenas nos calendários escolares e nacional. 

Dessa forma, a visão discriminatória do indígena aos poucos desaparecerá e iremos compreender que ele faz parte da construção do Brasil, pois aqui quando os escravizados chegaram já havia uma cidade construída em cada região do país. Isso vemos no livro Índios, Guerreiros e Úteis Povoadores, escrito por Silene Orlando Ribeiro, no qual ela relata a vida dos indígenas, seus salários e colaboração na construção da cidade de Cabo Frio.   

Indígena, um ser que descerá de uma estrela colorida brilhante, pois é mais fácil um ET ter mais direitos que o próprio indígena em sua Terra Mãe.


Referências: Agência Brasil/IBGE/FUNAI/OCA-coletivodeartesãos

sábado, 10 de abril de 2021

Informação em saúde salva vidas, desinformação mata



Na pandemia causada pelo novo coronavírus, um grave problema do SUS veio à tona, a (des)informação em saúde. A Informação em Saúde é um direito do usuário, quando diz respeito à sua própria saúde e também quando trata da coletividade. Assim, informação em saúde não é um privilégio, mas um direito conquistado. Ela configura em última instância a relação Estado/sociedade enquanto espaço de decisão e de negociação de interesses coletivos.

Durante o curso de 2020 essa relação Estado/sociedade mostrou-se deteriorada. O mais simbólico exemplo foi dado pelo governo bolsonaro com o boicote aos dados apresentados pelo Ministério da Saúde no início da pandemia em março, depois com a alteração do horário que as informações estariam disponíveis para que não fosse apresentado nos telejornais noturno e, por fim, com a decisão covarde de não mais divulgar dados sobre o número de mortes e de casos diários, como fazem as nações civilizadas do mundo. Como sabemos, os números que possuímos da pandemia no Brasil são apresentados por um consórcio de empresas de comunicação privadas que consolidam os números enviados pelas secretarias municipais de Saúde.

Esse comportamento obedece a uma orientação: se há uma pandemia sem controle, a melhor forma de tranquilizar a população é esconder os números ao invés de enfrentar a evolução da doença sobre a população. Essa decisão política de esconder números da doença não é só vergonhosa, é criminosa, uma vez que colocam pessoas expostas sem que se saiba a verdadeira situação sanitária do território, seja município, estado ou país. Sem um norte dado pelo governo bolsonaro, os mais de 5570 municípios ficaram à deriva e expondo números sem qualquer padronização ou orientação mais balizada.

Cenário da pandemia em Resende

Isto posto, diversas prefeituras tem apresentado números que são difíceis de entender. No caso da prefeitura de Resende, o Conselho Municipal de Saúde apresentou às autoridades locais uma sugestão de enfrentamento à pandemia com a criação de um gabinete de crise composto por diversos atores e a criação de um painel de indicadores que fosse traduzido da melhor forma para a população. Até o momento não foi feito e os números da PMR/SMS são contraditórios. Vamos a eles:

  1. Dados apresentados devem ter a possibilidade de exportação em planilhas de Excel/CSV para que possam ser trabalhados, tanto para análise quanto para publicações de artigos para sociedade acadêmica. Não há essas possibilidade;

  2. Mais grave e inquietante: segundo o gráfico abaixo, ao contrário de todo o país, a linha de tendência de contaminação, em vermelho, cai em Resende. Por exemplo, dia 13/03 a cidade só teve 1 caso confirmado e que de janeiro até hoje o número de casos cai vertiginosamente, ao contrário de todo Brasil;


Sendo verdade qual ação efetiva a PMR/SMS realizou para que esse milagre acontecesse em Resende enquanto o resto país derrete em função da Covid19? Seria importante estudar isso!

  1. No gráfico abaixo mostra o bairro da Cidade da Alegria inteira, mais de 25.000 pessoas, mas só 14 casos ativos com covid atualmente?


  1. Como os dados não podem ser exportados para análise, farei a análise no “olhometro”: o número de óbitos/dia tem aumentado na faixa entre novembro de 2020 até março de 2021 se comparado com março de 2020 até outubro de 2020. Reparem que há mais linhas condensadas no período citado acima. Repare: se o número de casos despencou como mostrado no item 2, como pode o número de mortes ter aumentado? No mundo o número de mortes só aumenta se o número de casos aumenta também, em uma relação direta, mas como em Resende isso se dá de forma inversa?


Deparamos-nos com um dilema: ou a informação em saúde, direito da população sobre a padrão de vida da comunidade no território está sendo levado de forma desleixada e deixando a população e atores sociais as escuras ou temos um Resende uma cepa nova do vírus, uma variante do Vale do Café, que não foi pesquisada ainda. A resposta eu deixo com vocês!


Vamos acender o pavio do multiculturalismo nas expressões artísticas?


Oiê… então, se te pergunto sobre um escritor negro, quanto tempo demoraria pra lembrar de Machado de Assis? E se te pergunto se conhece algum artista plástico negro na sua cidade, você saberia dizer? Somos um povo de misturas, quem nunca ouviu que o Brasil é feito de misturas e contrastes? É sim, mas será que sabemos mesmo identificar e valorizar quem somos?

Esse é um convite, para pensarmos na arte e na cultura e toda a sua diversidade, bem como nas suas formas de comunicação.

Cultura é fenômeno humano, todo grupo humano produz cultura e não existe melhor ou pior, é um produto da diversidade dos povos.

E aí entra nosso foco: o multiculturalismo! Uma ferramenta para o entendimento dessas culturas, valorização e proteção de suas identidades culturais


Proteção? Como assim?

Bom, é aqui que o pavio começa a queimar...

A troca de saberes é fundamental para construção de um povo. Mas sem uma proteção à identidade cultural de um grupo, o capitalismo e as ideologias dominantes, pasteurizam as culturas, passando como um trator homogeneizando tudo e todos.

Somos invadidos por vários elementos dos quais não fazemos parte, passamos a acreditar que aquela música, dança, história do povo, cinema e até o corte de cabelo são mais interessantes que os nossos e assim perdemos nossas referências. Por isso a necessidade de proteção.

Nos inspirando e bebendo em Paulo Freire - para valorizar o senso comum é necessário promover encontros e somente chego a ser eu mesmo quando os demais chegam a ser eles mesmos. E somente com diálogos e trocas isso é possível. É a relação de empatia para combater o que é desamoroso, autossuficiente e arrogante.

Fazemos sim essa mistura de contrastes, mastigando tudo como no Manifesto Antropofágico da Semana da Arte de 1922, mas antes devemos ter consciência das nossas cores, cheiros, gostos e talentos. Quando se pensa na arte e na cultura, é necessário pensar nas diferenças, mas principalmente nas defesas delas. Caso contrário,  nessa miscelânea, vozes são silenciadas, culturas são desmerecidas e trabalhos são esquecidos.  Não por críticas de qualidade, mas na verdade por serem produzidos por culturas oprimidas como por exemplo negros, mulheres, indígenas, em que até o próprio indivíduo não reconhece seu valor cultural.

Para aumentar ainda mais esse fogo no pavio, o tal do país das misturas é reconhecido também pela evidente falta de representatividade nas artes das minorias. Em uma pesquisa feita pelo projeto Negrestudo, em 2020, em SP, dos 619 nomes de artistas em exposição, apenas 46 não eram brancos; desses, 27 eram negros, apenas 4 mulheres. Apenas uma artista era indígena e não era brasileira.

Outro pavio que tem muito o que queimar se refere aos povos nativos e escancara essa falta de visibilidade cultural. Povos que tradicionalmente se comunicam pela arte através de pinturas, cerâmica, adornos, cestarias… não são valorizados devidamente. São mão de obra explorada de artesanato para gringos e servem para fantasia de carnaval. 

Na tentativa de melhorar esse cenário, surgem os institutos, movimentos e coletivos para resgatar e fornecer visibilidade para a arte de povos originários, mulheres, negros, trans e tudo mais que saibam se respeitar e valorizar as diferentes misturas de beleza que somos.

Essa é a ideia desse espaço. Acender esse pavio de divulgação, fomentar essas discussões pela valorização das artes feitas aqui, na região e no mundo, com foco no multiculturalismo.

Eu, como um exemplo dessa mistura toda, fruto da união de guarani mbá com italiano, negro, espanhol e árabe, mulher, artista visual, ceramista, feminista, viajante, militante de algumas bandeiras polêmicas, acendedora de pavio e muito apaixonada por arte, faço esse convite para descobrirmos juntos, por aqui, todas as manifestações do multiculturalismo.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Acendedoras e acendedores de pavio uni-vos!


De BBB ao programa da Ana Maria Braga; de lives com conteúdos acadêmicos aos feeds do Instagram, Facebook e Twitter, as insistentes, e equivocadamente chamadas, “pautas identitárias” estão em todo lugar causando muito reboliço.

Mas o que vem a ser isso que sacode tanto as redes sociais e anti-sociais? Pois bem, este é o pavio que desejo acender por aqui.

Falar sobre gênero, raça e classe é falar sobre aquilo que estrutura a sociedade em que vivemos - uma sociedade patriarcal, ou seja, que se organiza sob o domínio masculino cisheteronormativo1 e que é informada por raça e classe. Portanto, não se trata de discutir quem é machista, misógino, racista ou classista e quem não é para apontar o dedo, pois a verdade é que somos todas e todos, homens e mulheres, cis e trans, brancos e negros, pobres, ricos e classe média, constituídos, enquanto sujeitos, a partir destas opressões. Sem escapar ninguém! A diferença reside em ter consciência ou não disso e de adotar postura antirracista, anticlassista e antisexista. Mas não só isso.


Homem universal”

O professor Silvio de Almeida (2018), em “O que é racismo estrutural?”, explica sobre o surgimento do “homem universal”, esta suposta representação da humanidade materializada em um homem cis, hétero, branco e europeu, resultado das relações de poder do período da expansão mercantilista e da descoberta do novo mundo, em meados do século XVI. É neste contexto que emerge a ideia de um “homem” moderno, se opondo à ideia de pertencimento a uma comunidade específica, até então vigente. É o período onde surgem reflexões sobre a unidade e a multiplicidade humana.

O colonialismo é o nome da experiência que visava levar as “maravilhas” do Estado liberal e do mercado, portanto, “da civilização”, aos povos “primitivos”. Levar os valores civilizatórios ao novo mundo era a “missão” dos iluminados europeus. Mas a experiência da colonização se mostrou absolutamente antiliberal; um processo de espoliação violento.

Ficou evidente que liberdade, igualdade e fraternidade, lemas da Revolução Francesa, que fundaram a ideia de Estado Moderno, não passavam de um discurso vazio que só servia a poucos privilegiados. Com a colonização nasceu também um processo de desumanização dos povos não europeus, retratados como bestiais, primitivos, degenerados, sem história. Destes processos nasceram as práticas discriminatórias e o genocídio que marcaram a história do nosso país.

Escravidão

Portanto, não há como falar em raça sem discutir gênero e classe, sobretudo no Brasil, vez que são opressões que nasceram do paradigma colonizador do sujeito universal: homem hétero, branco e europeu. Da mesma forma como não podemos discutir o país em que vivemos, e avançar em análises mais profundas, desconsiderando a escravidão como violência fundadora - escravidão que é parte do processo de expansão do capitalismo.

Simone de Beauvoir (1970), em “O segundo sexo”, vai questionar o que é “ser mulher” e, ao fazê-lo, questiona também o que é “ser homem”. A autora abriu um campo imenso para inúmeras teorias e ideias que vão surgir a partir daí. Antes dela, Soujorner Truth, em seu célebre discurso2, questionou: “não sou eu uma mulher?”, referindo-se à sua condição de mulher negra. Ao fazê-lo, denunciou que tudo aquilo pelo que protestavam as mulheres brancas de classe média não passava de privilégios de raça e classe e que, portanto, não poderiam falar e nome de todas as mulheres, vez que as mulheres negras não estavam incluídas em suas pautas.

Como se vê, não dá pra discutir gênero, raça e classe isoladamente, né? Nem tampouco descolados da realidade concreta em que vivemos – sob a ordem do capital. Pois é sobre isso que iremos dialogar aqui, neste espaço. Temos um longo caminho pela frente se quisermos compreender o Brasil e este estado de coisas bolsonarista que nos assola. E sem compreender a realidade em que vivemos não conseguiremos transformá-la.

Bora acender este pavio juntos e juntas?


Referência bibliográfica:

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. Coleção Feminismos Plurais. Coord. Djamila Ribeiro.

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, Col. Feminismos Plurais, 2018, p. 20.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro. 4. ed. 1970.

1 O termo cisheteronormativo ou cisheteropatriarcado remete ao “sistema político modelador da cultura e dominação masculina, especialmente contra as mulheres. É reforçado pela religião e família nuclear que impõem papéis de gênero desde a infância baseados em identidades binárias, informadas pelas noções de homem e mulher biológicos, sendo as pessoas cisgêneras aquelas não cabíveis, necessariamente, nas masculinidades e feminilidades duas hegemônicas. Consultar ‘Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos’, um guia técnico sobre pessoas transexuais, travestis e demais transgêneros formulado pela pesquisadora Jaqueline Gomes de Jesus”. (AKOTIRENE, 2019, p.118, item 3).

2 Sojourner Truth (1797-1883) foi uma ativista norte americana dos direitos das mulheres. Uma escrava alforriada, que ficou registrada na história com um discurso que proferiu na Convenção de Mulheres, em 1851, Ohio, nos EUA. No seu célere discurso disse: “Aquele homem ali diz que as mulheres precisam ser ajudadas a entrar em carruagens, e erguidas para passar sobre valas e ter os melhores lugares em todas as partes. Ninguém nunca me ajudou a entrar em carruagens, a passar por cima de poças de lama ou me deu qualquer bom lugar! Eu não sou mulher? Olhem pra mim! Olhem pro meu braço! Tenho arado e plantado, e juntado em celeiros, e nenhum homem poderia me liderar! Eu não sou mulher? Posso trabalhar tanto quanto e comer tanto quanto um homem - quando consigo o que comer - e agüentar o chicote também! Eu não sou mulher? Dei à luz treze filhos, e vi a grande maioria ser vendida para a escravidão, e quando eu chorei com minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus me ouviu! Eu não sou mulher? (...)”. Depois que conquistou sua liberdade, em 1827, Sojourner tornou-se uma conhecida oradora abolicionista. O discurso completo se encontra disponível na internet em diversos sites, entre eles no https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth onde pesquisei. Acesso em: 08 de março de 2021.


O Balanço de um Desastre

 


A pandemia causada pelo novo coronavirus no Brasil, iniciada há 12 meses atrás, em março de 2020, já matou mais de 280 mil pessoas. Podemos fazer um rápido balanço da caminhada trágica que fizemos até aqui nesse último ano.

No início da pandemia, em um cenário distante das vacinas atualmente disponíveis, poderíamos ter olhado experiências exitosas mundo afora, que salvaram milhares de vidas, tais como:

1-        Criação de uma coordenação nacional para enfrentamento da pandemia;

2-        Apoio governamental às camadas mais frágeis do tecido social e determinados setores da economia como pequenos comerciantes;

3-        Testagem em massa para rastreio da doença;

4-        Monitoramento dos casos confirmados e suspeitos;

5-        Ampliação da rede hospitalar para tratamento de Covid19;

6-        Incentivo a população para o uso de mascaras e álcool gel;

7-        Em casos extremos ferramentas como a restrição drástica da circulação de pessoas.

O Brasil historicamente tem expertise em planos nacionais de imunização e conta com uma rede capilarizada para efetivação de estratégias atomizadas de vacinação em larga escala. O SUS conta com 44 mil equipes de saúde em mais de 5570 municípios Brasil afora, assim caberia ao Ministério da Saúde a compra das vacinas, definição de um cronograma, haja vista que a rede de saúde para executar a vacinação já está dada, pronta para tal ação. Vale lembrar que recentemente o SUS vacinou 100 milhões de brasileiros em 3 meses apenas contra a H1N1. Em casos de pandemia deve ser feito um esforço de guerra para enfrentamento desse inimigo invisível. Mas o que foi feito desde março de 2020 no Brasil?

Em nome de uma ideologia nada racional e apoiada uma visão deformada da realidade política e social o governo federal não fez compra de testes suficientes (o Brasil foi um dos países que menos testou no mundo), faz jogo de empurra no combate a Covid dizendo que a responsabilidades era de prefeitos e governadores, sabotou medidas de uso de máscaras, de restrição da circulação de pessoas, fez o papel de um verdadeiro mercador da morte vendendo a ilusão sobre um milagroso spray e até o incentivo ao uso de remédio sem qualquer eficácia para combate ao novo coronavírus, como Cloroquina e Ivermectina.

Temos hoje 280 mil mortos, chegaremos a 300 mil mortes em questão de dias e com isso o Brasil se tornou um cemitério a céu aberto, uma enorme cova, com os sobreviventes da desastrada condução da pandemia vendo seus empregos e rendas virarem pó. Jair Bolsonaro não é só um péssimo presidente, é um também um bárbaro genocida. Esperamos assim que além da contagem de nossos mortos, muitos deles familiares e amigos, não apenas a história julgue o Governo Bolsonaro, mas também tribunais nacionais e internacionais.

sábado, 3 de abril de 2021

É tempo de acender os pavios da memória no sul fluminense

 


Nos últimos anos, vimos assistindo ao avanço de uma onda revisionista e negacionista no Brasil. Ela teve início com a negação, por parte dos setores militares e conservadores, da existência do terrorismo de Estado (torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados) e de práticas antidemocráticas durante o regime (fechamento do Congresso, suspensão do direito de habeas corpus etc). Trata-se da negação da verdade, do testemunho concreto das vítimas do regime que historicamente não encontraram um espaço público de escuta.

Entre os setores conservadores, há ainda aqueles que, mesmo admitindo a existência da ditadura, buscam abrandar suas consequências, graves, nefastas, falando em termos de “ditabranda” – 434 mortos e desaparecidos políticos não seriam um número significativo se comparado com as ditaduras dos países vizinhos, Argentina e Chile, que chegaram a 20 e 30 mil mortos – ou reduzindo a virulência do regime militar aos anos de chumbo (1968-1974).

De outra parte, temos os setores progressistas que compõem uma polifonia de vozes que falam desde lugares e ações distintos e se encontram no grande campo dos defensores dos direitos humanos. O Grupo Tortura Nunca Mais e os movimentos que integram o campo memória, verdade e justiça vêm pleiteando há pelo menos 40 anos uma justiça de transição capaz de garantir a efetivação da justiça, através da garantia do direito à memória e à verdade, bem como do direito à reparação, não apenas material, mas que passe também pela instituição de práticas pedagógicas, participativas e, se for o caso, reconciliadoras.

Comissão da Verdade

A criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e das comissões da verdade em nível estadual e municipal foram, sem dúvida, um marco importante deste processo transicional, uma iniciativa de passar o passado a limpo. As CV se dedicaram às investigações dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro, sua estrutura de funcionamento e as estratégias de luta e resistência da oposição política, bem como as violações aos direitos humanos dirigidas de forma difusa contra o conjunto da sociedade, através da implementação de uma política de arrocho salarial, cujo resultado foi o aumento da desigualdade social.

Além das revelações contidas nos relatórios produzidos pelas comissões da verdade, foram feitas diversas recomendações de políticas públicas a serem implementadas pelo Estado. As recomendações abarcam um conjunto amplo de mudanças: medidas institucionais, como a revisão da Lei de Anistia e a proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964; reformas constitucionais e legais, como a revogação da Lei de Segurança Nacional e a desmilitarização das polícias militares estaduais; e medidas de seguimento das ações e recomendações da CNV, como continuidade das investigações para identificação do paradeiro dos desaparecidos políticos e preservação da memória das graves violações de direitos humanos.

No que se refere às iniciativas na área da memória e patrimônio, as recomendações vão desde a mudança do nome de ruas e escolas que homenageiem torturadores até a construção de roteiros pedagógicos e museus dedicados à história e memória da ditadura. O contato da sociedade com os espaços físicos, o conhecimento e a consciência sobre os usos dos espaços no passado, abrem janelas de consciência, contribuindo para a constituição de sujeitos críticos e pleno exercício da cidadania.

Na região sul fluminense, a Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda (CMV-VR) (2013-2015) proporcionou pela primeira vez aos habitantes locais um conhecimento pormenorizado sobre o passado ditatorial na região, atravessado pelo sofrimento e pelo esquecimento. Em seu relatório final, podemos conhecer 14 casos de violações aos direitos humanos ocorridos em Volta Redonda e Barra Mansa, cujos impactos foram devastadores para a classe trabalhadora e suas famílias, grupos progressistas da Igreja católica, grupos da esquerda revolucionária, jornalistas e coletivos culturais, entre outros.

Tempo de conhecer

O espaço hoje chamado de Parque da Cidade, administrado pela Prefeitura de Barra Mansa, já foi sede do antigo 1° Batalhão de Infantaria Blindada do Exército, entre 1950 e 1972. No local, funcionam atualmente algumas unidades administrativas da municipalidade, o Tiro de Guerra, a Secretaria de Ordem Pública de Barra Mansa, além de alguns projetos culturais, como a Orquestra Sinfônica de Barra Mansa e o grupo teatral Sala Preta. Desde sua criação, nos anos 1990, o espaço já foi palco de shows, feiras agropecuárias, feiras de negócios e outras atividades de entretenimento e lazer. Os eventos e atividades lá realizados atraem antigas e novas gerações que pouco conhecimento têm sobre os usos do espaço no passado recente, contribuindo para o esquecimento induzido.

O 1° BIB foi criado em 1950 com a função de “assegurar a ordem pública” na região. Localizado estrategicamente, o batalhão ficava a cerca de 10km da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), inaugurada pouco antes, em 1946, como parte do projeto nacional desenvolvimentista do governo Vargas. Desde cedo, a empresa siderúrgica e o batalhão caminhariam juntas no controle e repressão à classe trabalhadora.

No dia 1° de abril de 1964, o 1° BIB teve como alvo principal os trabalhadores da CSN, sobretudo os líderes sindicais que organizaram uma resistência grevista na usina, no sindicato e na rádio siderúrgica, em Volta Redonda. Naquele mesmo dia, as lideranças sindicais foram presas, no 1° BIB ou na Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende, e nos dois meses subsequentes mais de 200 trabalhadores foram demitidos ou aposentados compulsoriamente, pelo Ato Institucional n° 1, e 185 funcionários foram punidos pela empresa. Desses, 77 permaneceram presos no BIB ou na AMAN, até 6 meses depois. O caráter de classe do Golpe de 1964 ficou claro desde o primeiro dia.

Além das prisões arbitrárias, as forças repressivas invadiram a sede do Sindicato dos Metalúrgicos, em Volta Redonda, confiscaram documentos históricos, destruíram mobiliário, cassaram os mandatos da diretoria democraticamente eleita e determinaram um interventor em seu lugar, impactando assim a capacidade de reivindicação de seus direitos por parte dos trabalhadores. Ao lado da perseguição aos sindicalistas, foram instaurados Inquérito Policiais Militares (IPM) contra o chamado “Grupo dos Onze” e contra o Partido Comunista que atuava nas cidades de Volta Redonda, Barra Mansa, Barra do Piraí e Piraí.

A partir de 1966, com a chegada do bispo Dom Waldyr Calheiros à região, os católicos progressistas se tornaram o novo alvo das perseguições políticas. A Igreja de Dom Waldyr assumiu um trabalho pastoral junto às comunidades mais pobres e foi uma força de oposição política ao regime de extrema importância. Padres e militantes católicos foram, tal qual os sindicalistas, intimados, obrigados a prestarem depoimentos, presos e torturados. Após o AI-5, a tortura foi institucionalizada no batalhão, atingindo trabalhadores, militantes católicos, militantes de organizações revolucionárias e, até mesmo, militares de baixa patente.

O 1° BIB foi um centro militar de perseguição e tortura para opositores do regime na região sul fluminense. O encerramento de suas atividades repressivas, em 1972, foi um acontecimento inédito na história da ditadura. Após a comprovação de que militares haviam torturado 15 soldados do próprio batalhão, o que resultou na morte de quatro deles, entre 1971 e 1972, os militares envolvidos com as torturas foram condenados à prisão, por determinação da própria Justiça Militar.

Em 1973, no auge da repressão política durante o governo Médici, a Justiça Militar condenou os militares envolvidos e encerrou as atividades do 1° BIB. Trata-se do único caso no Brasil em que militares foram responsabilizados e punidos por suas práticas violadoras durante (e após) o regime militar. Após 1979, com a Lei de Anistia, nenhum outro torturador poderia mais ser condenado por seus atos criminosos. Resta, ainda, como entulho autoritário, um entrave para a efetivação da justiça.

Recentemente, nova fagulha de esperança se acendeu entre os militantes de direitos humanos com a decisão inédita da justiça contra o sargento reformado do Exército Antonio Waneir Pinheiro de Lima, acusado pelo crime de sequestro, cárcere privado e estupro da jovem militante Inês Etienne, em 1971, na Casa da Morte, centro clandestino de prisão e tortura localizada em Petrópolis (RJ). Este ano, por ocasião das efemérides da semana do golpe de 1964, os movimentos por memória, verdade e justiça lançaram a campanha #ReinterpretaJáSTF, como forma de pressão política e midiativismo.

São muitas as idas e vindas. No sul fluminense, após a condenação dos militares envolvidos no assassinato dos quatro soldados, o 1° BIB foi desativado, com a intenção deliberada de apagamento das memórias traumáticas, e no mesmo espaço foi instalado o 22° Batalhão de Infantaria Motorizada do Exército, que passou a comandar a repressão política na região. A prática de torturas físicas não foi mais registrada, porém deu continuidade ao papel repressivo do antigo 1° BIB, especialmente contra a classe trabalhadora.

Mesmo com o fim formal da ditadura em 1985 e a promulgação da nova Constituição em 1988, os militares do 22° BIMtz responderam com forte violência ao movimento grevista dos anos 1980, em especial na histórica greve de novembro de 1988, o que culminou, uma vez mais, no assassinato de três operários no interior da usina siderúrgica, William, Valmir e Barroso e, posteriormente, no atentado terrorista ao monumento 9 de novembro, na Praça Juarez Antunes, em Volta Redonda, em homenagem aos operários assassinados.

Tempo de planejar

Como fruto deste processo e de maneira a garantir a continuidade das investigações da CMV-VR e implementação de suas recomendações, o Centro de Memória do Sul Fluminense Genival Luiz da Silva, ligado à Universidade Federal Fluminense (CEMESF/UFF) estabeleceu como missão a preservação das memórias e histórias das lutas políticas na região. A partir de 2015, teve início o processo de transformação do antigo 1° BIB em centro de memória e defesa dos direitos humanos. Tais iniciativas se inscrevem no rol das políticas de memória e reparação, no quadro da justiça de transição e sua efetivação na região sul fluminense.

Este processo tem como amparo legal o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) n° 3/2016, firmado entre o Ministério Público Federal e a Prefeitura Municipal de Barra Mansa. O TAC prevê “assegurar reparações simbólicas em favor da preservação da memória e do patrimônio histórico nacional na área correspondente ao quartel onde funcionou o 1° Batalhão de Infantaria Blindada (1° BIB) e o parque ao redor”.

Para que as determinações do TAC pudessem ser cumpridas, foi formado um grupo de trabalho, coordenado pelo CEMESF/UFF, que identificou as áreas de interesse histórico, especialmente relacionadas aos eventos ocorridos durante a ditadura civil-militar, e dividiu o espaço em três grandes conjuntos de edificações: Tulhas, Intendência e Praça da Memória.

Como forma de sensibilizar e informar a população local sobre as graves violações praticadas na região, são desenvolvidos no espaço dois projetos de extensão, coordenados pelo CEMESF/UFF: Cine Arquivo e Visitas compartilhadas ao antigo BIB. Os projetos são voltados para atender a rede básica de ensino dos municípios de Volta Redonda e Barra Mansa e estão comprometidos em garantir o direito à verdade e à memória na região sul fluminense.

Em 2020, finalmente nasceu o projeto para o futuro Museu do Trabalho e dos Direitos Humanos, situado na Praça da Memória, no atual Parque da Cidade de Barra Mansa. Através da colaboração de duas consultorias, encarregadas de elaborar o pré-projeto arquitetônico e o Plano Museológico para o espaço do antigo batalhão, abriu-se um canal de escuta e de estruturação das propostas com a comunidade local.

De maneira a garantir uma construção mais participativa, o CEMESF/UFF promoveu encontros com grupos focais – ex-presos políticos, educadores, profissionais da cultura e ocupantes do Parque da Cidade, secretarias municipais de Barra Mansa e Volta Redonda – contribuindo para a ativação da rede de atingidos pela ditadura e de “empreendedores da memória” e provocando a imaginação comprometida com os direitos humanos, a cidadania e a democracia em torno das potencialidades para a transformação desse antigo centro de terror, hoje esvaziado de sentido, em lugar de memória e de re(existências).

Tempo de imaginar...

Agora, é tempo de imaginar. Imaginar o inimaginável, cuja voz nos sussurra histórias passadas, de um tempo que esperamos nunca mais.

Lascas de tempo, de memória, essa coisa não escrita que ganha matéria, vida, forma, até escapulir em imaginação. Aqui. Agora. Imaginar um tempo de medo, do não dito, ainda inaudito porque faltam ouvidos. As vozes estão por aí, por toda parte, abaixo e acima das paredes, da terra, do rio. Se dissipam em som, essa força etérea que atravessa o tempo, vagam passageiras no ritmo cadenciado do trem de minério e sangue, nas asas dos quero-quero (que lembram liberdade), no leve soluço do Paraíba (que embala a dor).

Mas, essas vozes, o que contam? O que podem contar? O que queremos ouvir? O que podemos ouvir? É preciso coração para aprender. Também coragem.